Do refúgio na montanha, o montanhês cumpria o sonho misantropo. Havia dias a fio que não via centelha de gente. Perguntavam-lhe, os visitantes infrequentes, se não tinha medo da solidão; se não o amedrontava o exílio das pessoas. O montanhês respondia com silêncio e um rosto impassível. Era a sua forma de desviar a conversa. Os ocasionais interlocutores sabiam que repetir a pergunta não tinha serventia. Um dia, uma jovem curiosa pelo ascetismo do montanhês perguntou-lhe o que gostaria que ela trouxesse da civilização se o pedido fosse feito. O montanhês parou para pensar e repetiu o silêncio sibilino que era usual quando os curiosos da metrópole paravam no seu abrigo para fazer perguntas. Desta vez, o rosto não ficou imperturbável. Era o rosto que personificava o pensamento cavado nas rochas indúcteis das serranias limítrofes. Na sua voz porosa, o montanhês retorquiu: “queria saber como é um corpo salgado.” A barba cerdosa, invadida pelo clima rígido das cumeadas, nunca ficara à mercê da maresia. Aquele lugar era longe de mais para que chegassem vestígios de maresia. A rapariga ficou atónita, sem reação. O seu silêncio sobrepôs-se ao silêncio estrutural do montanhês. Já não sabia se a pergunta fora um exercício de retórica, ou se o montanhês estava à espera que ela desse cumprimento à resposta – como se a resposta fosse entendida como uma encomenda. E não sabia como ler a resposta do montanhês: cederia espaço ao sentido literal, ou era apenas uma metáfora? O montanhês só queria saber como é o sal que é feito de mar. Pois do sal useiro, feito de salicórnia, abundante nas altas montanhas, sabia ele. A ascese a que se remetera, como resposta à pulsão misantropa, não permitia a venalidade dos prazeres carnais.
16.4.21
O montanhês que não sabia o que era um corpo salgado (short stories #315)
Três Tristes Tigres, “Subida aos Céus”, in https://www.youtube.com/watch?v=uj5pxwOOzI4
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