27.4.21

Queimar tempo

Queens of the Stone Age, “Domesticated Animals” (live at KCRW), in https://www.youtube.com/watch?v=1X0unuTSGXU

Não olhemos para os relógios – nem para as nuvens que dançam no céu tardio, ou para os seráficos oráculos que nos desapreciam com o desdém dos arrogantes. Não olhemos para o tempo enquanto cresce uma maré sem domínio. Porque o tempo é uma maré sem domínio e nós somos os seus servidores. 

Não sejamos servis à selva em que se transformou o tempo que arroga uma servidão. Às promessas vindouras não oferecemos o rosto; damos a ossatura como aval da posteridade. Prosseguimos como se não houvesse tempo de permeio. A nossa intenção é queimar o tempo. Como fazem os que arrastam o tempo antes que sejam derrotados por causa do seu andamento. Esquecem-se dos danos colaterais. O tempo queimado agora é tempo por gastar depois. É como se não aprouvesse uma meticulosa medida de poupança, como se os recursos fossem inesgotáveis e não dependêssemos da poupança para guardarmos um módico que é caução do depois.

Mas o tempo que queimamos fica a arder nas nossas mãos. Subimos a escadaria alcantilada sem ser por profecia ou por juramento. Não damos conta das preces dos outros. Oxalá – dizemos, sabendo da sua impossibilidade – a intemporalidade tivesse as raízes bem fundas na carne de que somos feitos. Mas sabemos que não é assim. E, mesmo assim, partimos para a queima de tempo, como se a combustão fosse um alvará para o seu entesouramento.

Dos dias em diante não sabemos nada. E mesmo dos dias que emoldurados em memória guardamos uma furtiva centelha: questionamos se as imagens que acendem a memória (ou que são acesas pela memória – ninguém sabe bem) cumprem o exercício fidedigno da sua reprodução. Pode ser que sejamos atraiçoados pela memória. E nem do tempo pretérito guardamos uma medida precisa. Por isso, a queima de tempo: pressente-se num adiamento que resgata o tempo diluído numa memória contrafeita. Queima-se o tempo numa valsa de fingimentos.

Da queima do tempo se dirá ser uma indigência. Como se fôssemos ladrões de nós mesmos e os juízes que os sentam no banco dos réus. 

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