Era quando o comboio passava no Entroncamento: vinha à janela apreciar o emaranhado de linhas, como elas se desdobram em ramais que se enovelam num palimpsesto de ramais. Costumava dizer (mas só para eu ouvir): “chegámos ao delta do Entroncamento”. Aquela forma ampla de ramais lembrava-me o delta de um rio. Nunca fiz a pergunta lugar-comum (“é por isto que se fala dos fenómenos do Entroncamento?”), porque não misturava os assuntos e não tinha propensão para a matéria esotérica. Tinha a ideia que a povoação (soube, mais tarde, que ganhou a comenda de cidade) existia porque existiam comboios que ali passavam. Nunca me informei sobre o gigantismo dos ramais que enfeitavam a estação do Entroncamento. Ou por que motivo se chamou àquele povoado “Entroncamento”. Sabia, quando o comboio proclamava a saída da estação, que aqueles ramais entroncavam num par de linhas, fosse Norte ou Sul o rumo do comboio. Não saía da janela do comboio enquanto as desmultiplicações das linhas não eram validadas. À chegada da estação, parecia que um matemático tinha ordenado uma equação que fazia crescer os fatores numa ordem exponencial. À saída da estação, o emagrecimento dos ramais repunha a verdade: quase sempre, a viagem faz-se numa via dupla. E se uma via dupla encerra alguma complexidade (pense-se naquelas pessoas que mantêm uma vida dupla com o consentimento do trio), o desdobramento que se exponencia radica no magma mais profundo que habita em nós. Lá bem no fundo, onde uma alma pequena se agiganta, habita o magma em combustão oferecendo as múltiplas possibilidades de sermos – os alter ego, os cambiantes de personalidade, os estados de espírito, a volubilidade do ser, as estrias que pressagiam as rugas que são a devastação da experiência. As vidas são como os ramais da estação do Entroncamento. São vários entroncamentos. Ramificam-se, sucessivamente, até voltarem a repousar na modéstia da via dupla.
21.4.21
Magma (short stories #316)
Dry Cleaning, “Viking Hair”, in https://www.youtube.com/watch?v=d5MNSuhiIGM
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