20.4.21

Não atravessou o fio da navalha e ficou sem saber o que é o avesso do dia

Working Men’s Club, “John Cooper Clarke”, in https://www.youtube.com/watch?v=kyHc00hjo5A

Uma palete cheia de carvão: assim era o tempo coevo, e ele que não deixava de ser coeso no acaso da bússola que escolhera. Os dias repetiam-se. Em câmara lenta, como se o percurso do tempo fosse uma longa reta que atravessava uma planície plana e sem vegetação. Sem que a monotonia fosse sequaz.

Não lhe pedissem afoiteza, nem gestos que suspeitassem uma fratura com o tempo estabelecido. Não lhe pedissem palavras destemidas, que ele estremecia só de pressentir os escombros do terramoto consequente. O medo era substantivo, verbo e adjetivo, ao mesmo tempo. Era modo de vida. Ou melhor: modo de letargia, o medo – o medo de ter medo e de ser esvaziado por dentro de um vórtice de água que não tinha fundo.

Se houvesse desafio a condizer, perdia-se na macieza dos preceitos, no deslumbramento que não passava de um fingimento. E, todavia, não estava cansado de ser quem era. Se o acusassem de ser conservador, não era acusação; era o melhor elogio que lhe podiam dirigir. 

Todavia, manifestava insatisfação à primeira oportunidade. Os contornos do mundo e a sua identidade perante ele ficavam aquém de um ideal. Intimamente, tinha ambições. Formulava sonhos em páginas e páginas que depois eram rejeitadas para a lareira, perdendo-se em cinzas efémeras. Era como se lograsse apenas uma existência reprimida por dentro. Mas era o produto da vontade. Aprendera que não se contraria a vontade, nem quando uma vontade de sinal contrário formula outras tantas páginas que são o contrabando propositado das que tinham o seu cunho. Nele havia duas personagens, simetricamente desiguais.

Em muito novo se iniciou nos imperativos categóricos, sufocando as interrogações que ainda eram novas para lhes ser administrado o soro da anestesia. O eu triunfal, que se sobrepunha sobre o outro eu rival, sabia de todas as manhas que eram precisas para impedir que o outro eu o desafiasse. Não sabia de cor se não uns poucos vocábulos, um punhado de lugares que se repetiam sem exaustão, o leito gasto de um rio invadido pelo salitre do mar, o rosto que perdera identidade. 

Não sabia que armas terçar se fosse raptado do lugar de conforto. Talvez perdesse a cintilação do avesso do dia. Mas ninguém podia garantir que no avesso do dia havia claridade em vez de um carvão apodrecido que tomara conta das cores todas. 

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