29.4.21

O dia em que deixou de haver boletim meteorológico (short stories #318)

Deftones, “Ceremony”, in https://www.youtube.com/watch?v=Kbl0aSRzvKg

          O país tinha um suserano que era um tiranete com maus fígados. Um médico, que em tempos prestou serviço na casa presidencial, confidenciou que o suserano lhe confidenciou que tinha úlceras por causa da felicidade exsudada pelos súbditos. Era deste jaez, o soberano. Numa manhã que se seguiu a uma noite com mau recorte, ele interditou o boletim meteorológico. O país ficaria às escuras no que ao tempo diz respeito – e só acrescentou uma camada de trevas ao céu que tinha o país como mapa. O soberano decidiu que os súbditos não tinham de estar informados sobre o tempo; era uma distração. Se houvesse tempestades nas proximidades, o ministério da tutela, sob instrução de sua excelência, cuidaria de arvorar o alerta vermelho. Descontada esta extravagância meteorológica, os súbditos limitar-se-iam a ser zelosos operários e extremosos maridos e mulheres e filhos e filhas. Deviam saber o seu lugar na ordem cósmica, diligentemente desenhada nas equações do suserano, para altear o país na comparação com os outros países. O que nunca foi dito é que o soberano queria o tempo só para si porque era agricultor e floricultor nos tempos livres. Ou seja: grande parte do dia era passada na lavoura. O soberano-agricultor queria o tempo só para si para saber como conduzir as sementeiras, quando fazer a poda, quando colher os legumes e os frutos e as flores. Só para ser o melhor produtor no mercado da cidade. Sempre fora o sonho de uma vida inteira. Mais importante do que continuar a oprimir os cidadãos. Os cuidados da pátria, deixava-os para os ministros que se entretinham meticulosamente com a função e despachavam avulsamente com o soberano. Os ministros mais importantes – escusado seria dizê-lo – eram o da meteorologia e o da agricultura.

Sem comentários: