26.4.21

Bandeira

The Chemical Brothers, “The Darkness That You Fear”, in https://www.youtube.com/watch?v=b-mGA4V2LK0

Não se cumpre um destino. As pregas do riso coçam as costas só de saberem que um par de contratempos espreita entre as vírgulas do tempo. Mas as pessoas acreditam nos mitos. Acreditam que uma bandeira lhes confere resguardo contra as intempéries da vida.

“Em sexteto, em sexteto”, advertia, com voz tonitruante, o capataz da obra para ensinar aos transeuntes por onde passar enquanto a trovoada da obra emudecia o cantar da cidade. Alguém não seguiu o preceituado e o capataz saiu do seu posto para colocar o dissidente em sentido. Ele não se incomodou com os gestos extravagantes do capataz, que procurava substituir a voz gutural pelos gestos espalhafatosos. O homem que avançou sem ser em sexteto apontou para uma bandeira à lapela, onde estava escrito “surdo-mudo”. O capataz não se incomodou. Só sabia ler cirílico.

À entrada do metro, uma rapariga acabada de sair da adolescência tocava guitarra acústica e cantava as trovas que se encontram nos discos que popularizaram os trovadores dos anos setenta. Um iletrado militante de causas radicais aproximou-se da rapariga e pagou a lhaneza da musiqueta com uns pregões achincalhantes, os perdigotos a serem salivados para cima da rapariga amedrontada (“esses comunistas que cantas deviam ter ido para a Sibéria e de lá nunca haveriam de sair”). E puxou da bandeira à lapela, a bandeira que tanto o orgulhava, da pátria que perdeu o jogo da decadência.

A poetisa embarcou a medo (“é sempre com um irremediável desconforto que sinto que o chão sob os meus pés é feito de água”). A vernissage de apresentação do seu novo livro estava marcada para o Tejo. O comandante tinha instruções para estacionar a embarcação num ponto equidistante das duas margens, com a proa virada para Lisboa. Com visível perturbação – que tomou conta da voz da poetisa, trémula como não se lhe conhecia – ela agradeceu a cortesia da editora e a presença de gente tão amável. E confessou, apontando o braço na direção de Lisboa, “esta é a minha bandeira”.

No arsenal das bandeiras, havia-as de todas as cores, umas puídas outras que pareciam ter sido diligentemente polidas, umas que perderam serventia outras que teimavam em ser hodiernas. Alguém procurava por uma bandeira particular – “onde está a bandeira da lucidez, onde está? Alguém sabe dela?” O silêncio dos circunstantes foi a resposta cabal.

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