15.4.21

O burguês sem bigode (short stories #314)

Blur, “Fool’s Day”, in https://www.youtube.com/watch?v=huFBnYok4ag

          Fingindo que estava convencido das empreitadas, o burguês fugiu de mansinho pela porta do cavalo. Não se esperasse dele sentido de responsabilidade (“responsabilidade social”, como está na moda). Assim acontece com todos os burgueses: penhores de um egoísmo soez, levam a peito a divisa “cada um por si”. Ele disfarçava a sua condição burguesa. Por aqueles dias, era voz corrente que os varões que fizessem gala da sua burguesa condição ostentavam bigode. Por falta de bigode, o burguês não era tido como burguês, muito embora os maneirismos, se fossem olhados com atenção, o denunciassem como tal. Quando alguém descobriu, acusou-o de ser um espião a soldo de capitalistas desaforidos que desconfiam dos sindicatos e conspiram contra a organização do operariado. O burguês, acossado pela brigada que jogava ao gato e ao rato com a espionagem burguesa, jurava pelo que lhe era mais valioso que não era o caso. Apertaram a jugular com o bico afiado de uma navalha para que revelasse o que era mais valioso. Só quando uma gota de sangue irrompeu uns milímetros ao lado da jugular (o carcereiro sabia da poda), o burguês sem bigode confessou: “é a menina Odete, que trabalha na fábrica das conservas, que me traz embeiçado.” Os operários sossegaram. O burguês não queria minar por dentro a sua organização. “Eu nem percebo nada de política, acreditem. E não tenho culpa de ter o berço que tenho”, acrescentou em sua defesa. Chamaram a menina Odete, que chegou aos aposentos onde o burguês sem bigode estava a ser interrogado nos mesmos preparos em que saiu da fábrica: a tresandar a peixe processado. E nem assim o burguês sem bigode esboçou um esgar de desprazer. Os operários ficaram convencidos. Só não sabiam que o burguês não tinha bigode porque ficara sem olfato a meio da adolescência.

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