13.4.21

Os corpos que dançam no Verão (short stories #312)

Marcus Amadeus ft. Napoleão Mira, “O Beijo”, in https://www.youtube.com/watch?v=4D9-k88_KQo

          Não se reveem nas paredes encardidas do cais, enquanto o sol lembra que o Verão se desacerta pelos relógios da maresia. Os corpos, despojados, atiram-se contra a anomia dos sentidos. São fiéis depositários do desejo, açambarcados pela temperatura escaldante dos dias mais exigentes de Verão. Até à noite as peles suadas não param. Os verbos ajardinados fundem-se na trémula imagem que distorce o horizonte. Em vez de roupas, corpos à mostra – ou partes significativas de corpos, à mostra. Percebe-se que a igreja seja contra o Verão: as pessoas, emancipadas da tutela dos espíritos, não suam mais do que devem suar. Nota-se uma certa italianização dos costumes. Frívolos, dirão – mas em rima clara com a temporada estival. Percebe-se que as árvores voltem a vicejar na Primavera: autorizam as sombras que evitam males maiores aos corpos tisnados. E os corpos, inebriados pelo culto geodésico do Verão, dançam. Meneiam-se, na extravagância do calor a despropósito. Insinuam-se, na volúpia da pele que é amostra e desata o desejo. Dançam, enquanto a noite não for destronada pela manhã. Desafiando os contratempos que aprisionam as pessoas, os corpos eximem-se às quatro paredes e procuram a perenidade do céu a descoberto. Não há murmúrios ao relento – o Verão não se desperdiça. Esses corpos traduzem as almas dantes mitigadas. As árvores centenárias já se habituaram aos corpos aliviados de vestuário. As árvores deixaram a igreja para a frente no campeonato do conservadorismo. Alguém chama a luz farta para os poros falarem por si. As palavras, dispensáveis. Em cascata, encavalitados uns nos outros como se fosse uma orgia autorizada pelos costumes, os corpos que dançam no Verão aformoseiam o palco. Não se esperem se não acasos, sílabas fortuitas, bocas saciadas pelo álcool, bocas saciadas. Não se espere que o Verão seja menos tortuoso do que o Inverno.

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