13.5.21

As cartas que nunca escrevemos (terapia)

Moderat, “Therapy” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=qdtuF5y76Is

Coisa certa: hoje mal se escrevem cartas. Cartas como dantes, quando os dedos não tinham medo do papel e os que muito escreviam eram descobertos pelos calos que a escrita abundante pontuava nos dedos. 

Mas as cartas não ficam presas ao emudecimento. Elas perseveram no dever geral de comunicar, nas pessoas gregárias que querem saber de outras pessoas para não se sentirem vírgulas únicas no mar largo em que as palavras são navegantes. É preciso um remédio estilístico para resgatar as cartas da memória já pouco mais do que arqueológica. Devolver a lucidez ao idioma, o lugar da gramática e o hábito da comunicação sem as costuras da modernidade. 

Talvez, um chamamento para escrever as cartas que nunca foram escritas. E como sabemos inventariar uma carta que nunca foi escrita? Começamos por exclusão de partes: as que já foram escritas não se compreendem no exercício heurístico. E as demais? Não participamos na matéria dos oráculos para deles retirar a resposta. Pode ser que não passe de especulação: procuramos escrever uma carta que nunca escrevemos sem saber do destinatário, sem sequer saber sobre as palavras que serão vertidas, as ideias que lhes dão corpo. O exercício não deve começar pelo lugar-comum de identificar a quem se destina a carta nunca dantes escrita. Que seja vagaroso o débito das palavras que tiram a virgindade ao papel. No fim – a carta já escrita –, não se imponha o dever de fixar um destinatário. A carta que estava por escrever pode dirigir-se a ninguém, ou a uma personagem sem reconhecimento, ou apenas ao autor.

Nas cartas que haviam de ser escritas não podem as palavras ficar pendentes. Não podem ficar pendentes de preconceitos tolos (ou preconceitos, apenas), de medos, de sensibilidades, da dialética entre verdade e mentira. Escrevem-se, apenas. Exorcizando mitos. Refazendo o porvir. Desaconselhando partidas categóricas. Juntando com as mãos as palavras que andaram proibidas enquanto o tempo foi o embaraço dos apressados. Nas cartas que nunca escrevemos, deixamos à solta um eu que possivelmente não conhecíamos (ou que fingíamos desconhecer). 

As cartas que nunca escrevemos esperam por um gesto de audácia. O olhar desembaraçado dá o mote. O pensamento sem estrangulamentos confere outra dimensão. Ao bel-prazer dos autores, as cartas que ficaram em fila de espera vão saber como é existir fora das fronteiras dos seus procuradores. 

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