Há um cabo que desafia o fim do mundo. Antecipa-se ao fim do mundo, segundo os marinheiros que já experimentaram esse lugar mítico. Os ecos dos contos dos marinheiros perduram na memória coletiva. As pessoas, fazendo fé na memória dos marinheiros, e tendo-os como pessoas confiáveis por causa das hostilidades que enfrentam, nunca os puseram em causa.
Também se conta que o cabo é pouco frequentado pelos locais e não é por ser um lugar inóspito. Em tempos de que já não se conserva memória, um padre suicidou-se quando se atirou do promontório para o vazio. O corpo nunca apareceu, devorado pelo mar iracundo que se desfaz contra os rochedos persistentes. Conta-se que o padre se enamorou por uma viúva ainda jovem. Temendo o escrutínio dos aldeões, não quis nada com a vida. Mal sabia que os aldeões não lhe perdoariam, nas exéquias contumazes, por ter feito aquela mulher viúva pela segunda vez.
As pessoas acreditavam nas histórias que eram herdadas da História. Não lhes passava pela cabeça desmentirem as narrativas dos antepassados. Que interesse teriam os antepassados em doar uma liturgia mendaz aos que viessem depois? Só havia um punhado de aldeões que desafiavam a mitologia que cimentava a pertença. Eram os párias, gente malquista pela maioria sossegada dos habitantes do lugar.
Os párias não se queriam comprometer com o legado dos antepassados. Preferiam ser eles a construir a argamassa que os fazia aderir a algo. Não eram os costumes enquistados, que consideravam banais. Era um olhar que prescindia das reservas mentais e da anemia de quem se limitava a reproduzir as medidas arcaicas. Não tinham muitos amigos, estes párias. Mas nem assim se sentiam acossados. Uma pertença é ao lugar e não às pessoas que o habitam. Se as pessoas exibem uma dança diferente, não é motivo para um exilio forçado. Os lugares contam mais do que as pessoas que os habitam.
Era a custo que os párias faziam vida normal. Os outros, poucos lhes falavam. Não tinham direito a desconto no comércio local. Na distribuição de favores com o alto patrocínio do edil, para os párias sobrava a discriminação. Não capitulavam. Era preferível ter a cerviz intacta a transigir com a meação do fingimento. Em vez da vertigem, eles preferiam a clareza dos dias que se pressentia no oráculo sem nome.
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