Tinha treinado para ser déspota. Tal era a imagem que tinha de si. Era, aliás, motivo de vaidade. Era, ao mesmo tempo, uma patologia não autorreconhecida: era como se ser déspota fosse condição recomendável.
Os assuntos não eram participados. Eram decididos por ele. Unilateralmente. O déspota exultava por comunicar os assuntos que já tinha decidido. Considerava uma sublime manifestação das suas credenciais democráticas e de respeito pelos subordinados. Pois todos eram subordinados e assim eram tratados pelo déspota.
No entanto, ninguém se lembrava como foi possível o déspota açambarcar todo aquele poder. Ninguém se lembrava se foi eleito ou se foi fautor de um golpe palaciano. Ninguém sabia dos estudos do déspota. Ninguém lhe reconhecia carisma. Mas todos o respeitavam como se fosse um letrado com dotes acima da média, um supino condutor de homens. Talvez não percebessem que este raciocínio contaminado explicava o que eles não conseguiam explicar. Aquele era um lugar composto por gente pusilânime. Os súbditos confundiam temor com respeito. Só num lugar destes é que seria possível um farsante ocupar o poder durante a longa temporada sem prazo de validade.
Neste lugar, havia palavras que tinham sido banidas dos dicionários, por ordenança do déspota. Quem as dissesse em público era notificado para um julgamento sumário sem direito a contraditório. Uma dessas palavras era “farsa” (e as suas derivativas, como “farsante”). O déspota temia que “farsante” fosse a linguagem codificada para o retratar. E temia que “farsa” fosse a súmula do lugar que ele conduzia com mão de ferro.
Certo dia, chegou aos ouvidos do déspota que um mecenas da cultura, distinto homem de negócios que ficou conhecido pela generosidade e pela filantropia, dele disse palavras que superaram as cobras e os lagartos. O mecenas teria dito, em território forasteiro, no exílio que escolheu para fugir das perseguições soezes, que uma farsa não se conta em dois dias. À distância, com os dentes iracundos a mostrarem o desejo de apanhar o dissidente pela canela, o déspota protestou. O mecenas corrigiu. Mandou dizer que o que queria ter dito é que uma farsa não se monta em dois dias.
O déspota foi acometido por uma arritmia e esteve perto de deixar de o ser.
Sem comentários:
Enviar um comentário