Acordo como silvo das gaivotas. Sinto que esvoaçam numa rasante à minha janela, deixando o seu rasto pela voz esganiçada que a espaços soltam para o ar. Estes silvos parecem, por vezes, gritos desesperados. Como se o voo das gaivotas quisesse anunciar más notícias. Falta do peixe necessário para a sua nutrição? Num esgar de dor, revelam que o estômago vive à míngua, carentes de alimento que é reclamando com o zunido estrepitoso e aflito. Ou é apenas um ritual típico das gaivotas, que na sua dança matinal, aproveitando-se da vila ainda imersa no sono, soltam os gritos estrídulos num código impaciente que só elas compreendem?
Quando escuto as gaivotas, ainda no torpor de um sono retemperador, vêm à memória os tempos que passei em Brighton, já lá vão quase quatro anos. Dou comigo a pensar como é curioso que a mente tenha destes comportamentos reflexivos. Um determinado sinal, uma certa palavra, um odor que paira no ar – tudo serve para puxar à superfície recordações do passado. Até parece que o cérebro possui um interruptor que detona as recordações localizadas no tempo e no espaço logo que um certo acontecimento é processado pela memória. Comigo e com as gaivotas, a ligação estabelece-se logo com Brighton – apesar de ter vivido quase toda a minha vida junto ao mar, não sendo alheio à existência de gaivotas.
Nunca vi tantas gaivotas como em Brighton. Andam em magotes, rompendo com o que me habituei a ver no Porto, onde sempre me pareceu que as gaivotas eram pouco sociáveis. É raro vê-las em bando. Quando muito, damos com duas ou três gaivotas juntas. Em Brighton as gaivotas pairavam no ar, próximo do mar, um pouco mais dentro da cidade, junto a locais onde o lixo abunda. Aos milhares, com um grito típico que me acostumei a ter como presença sempre que andava pelas ruas de Brighton. Um som que trouxe guardado na minha memória, o som característico de Brighton. Como noutros locais o som de máquinas a laborar, de automóveis num bulício frenético, ou do simples sussurrar das folhas batidas pelo vento, é a alusão que fica gravada na memória.
Como sinal da profusão de gaivotas característica desta cidade inglesa, o clube de futebol local, o Albion, tem associada a imagem de marca das gaivotas. Aliás, na tradição estabelecida em Inglaterra de atribuir alcunhas aos clubes de futebol, o Albion também é conhecido como Seaguls – gaivotas em inglês. A silhueta da gaivota é a imagem de marca do clube. A imagem que foi herdada pelos habitantes da cidade, que se revêem, garbosos, na multidão de gaivotas que faz de Brighton o seu poiso obrigatório.
Se bem me recordo, esta é a única cidade que conheço que tem um animal como ex-libris. Não é um edifício, nem um feito histórico, ou um certo atributo da natureza como uma especial característica geográfica. Quem fica a conhecer Brighton traz a marca indelével da presença das gaivotas. Apesar de se destacar também pelo ar estival que a sua localização à beira-mar lhe confere – por ser uma das praias preferidas dos habitantes de Londres – Brighton fica na memória pela abundância de gaivotas que se habituaram a partilhar o espaço envolvente com os residentes. Entre pessoas e gaivotas cultivou-se uma cumplicidade inusitada. Que cresceu ao ponto das pessoas construírem, como laço identitário, uma ligação forte à ave esguia e esbranquiçada que é presença constante no seu dia-a-dia.
Os meandros da memória levam-me sempre a recordar os tempos de Brighton de cada vez que ouço o silvo das gaivotas. A prova de como uma imagem de marca que se associa a um certo local pode perdurar, bem inerte, no álbum de recordações que o tempo e os locais se encarregam de construir.
(Em Sanxenxo)
30.6.04
29.6.04
A barbárie num aquário de marisco
Repouso na esplanada do restaurante onde vou degustar o jantar. A luz do dia esvai-se, deixando entrar o breu da noite, que a cada minuto toma conta do céu. As pessoas passeiam-se num andar compassado que exibe a despreocupação da época estival. Aproveitam a temperatura quente, antes que o vento fresco tome conta da noite e chame por um agasalho.
Estou sentado na esplanada, mesmo junto à entrada do edifício do restaurante. Três degraus escalados e, no lado esquerdo, um aquário de grandes dimensões aloja as lagostas, lavagantes e santolas que são o engodo de quem quer tragar as delícias que o mar oferece. Todos os exemplares que se acumulam dentro do aquário estão vivos. É necessário provar ao cliente que a sua escolha é merecedora de confiança. O marisco que ali se consome é fresco, tão fresco que ainda está vivo. Vivo mas manietado. Os bichos não têm liberdade de acção, por terem as suas garras amordaçadas, quiçá para que o seu instinto de vida não os leve a uma reacção agressiva contra a pessoa que os for pescar com a pinça.
As crianças de tenra idade são levadas pela curiosidade e param, atónitas, perante tal quadro. Perguntam aos pais que bicho é este, que se diferencia do outro que tem umas patas diferentes. Testemunham a sua limitada movimentação, porque as garras estão bem atadas por cordéis de fio grosso. Não sei o que desperta a curiosidade destas crianças. Não sei se é uma curiosidade diria científica, própria de quem desperta para os fenómenos da natureza. Ou se é uma curiosidade mórbida, típica da natureza humana, sempre pronta a sacrificar, com espectáculo degradante pelo meio, a vida de animais para saciar apetites gastronómicos. Ou se é uma manifestação imberbe de crianças insensíveis, que ficam especadas olhando para os lavagantes, lagostas e santolas como adornos de um aquário, sem perceberem que estão ali prestes a deixar a vida para irem parar ao estômago dos comensais. Como se fossem simples brinquedos, chamariz de uma clientela mais jovem que ignora o destino fadado para aqueles bichos.
Eis senão que, muitos minutos passados, houve um pedido de um lavagante. O empregado de mesa serviu-se de uma pinça com uma longa haste para escolher o exemplar. À medida que a pinça navegava nas águas do aquário, os bichos fugiam em desespero. Adivinhavam que a fuga momentânea da pinça era o passaporte para mais uns minutos, ou horas, de vida. O reboliço leva-os a atropelarem-se uns aos outros. Na lei do salve-se quem puder, um infeliz foi contemplado. Acabou por ser apanhado pela pinça que o puxou à superfície. Debatia-se com energia, mostrando as patas amarradas. São os derradeiros momentos de vida que se esvaem naqueles movimentos vigorosos. A mão do empregado senta-se sobre o dorso do lavagante, depositando-o numa travessa de inox que lhe serve de leito de morte.
O resto não vi. Adivinho que os breves metros do trajecto entre o aquário e a cozinha terão sido percorridos com mais tentativas desesperadas para fugir ao destino traçado. Até que mergulhou na água fervente, despedindo-se lentamente da vida que teve nas águas de um mar que, para ele, foi de liberdade.
Em tempos li algures que estes espécimes não têm sistema nervoso central. Por esse motivo nada sentem quando o seu corpo é depositado na água que ferve a mais de cem graus centígrados. Morrem sem dor, cozidos pela água fervente. Mais recentemente, alguém mais familiar em biologia trouxe-me conhecimento contrário. Disse-me que estes bichos sofrem ao serem depositados num tacho com água que borbulha a uma temperatura muito elevada. Se é verdade, o “conhecimento oficial” da ausência de sistema nervoso central só serve para que os mais sensíveis se consigam apaziguar com a consciência quando comem estes lautos petiscos. É uma forma de enganar estas pessoas, que se repugnam com o espectáculo triste de levar para o leito da morte, directamente do aquário, um animal que está agora vivo e que, minutos depois, aparece morto e delicioso na mesa do comensal.
Por via das dúvidas, é bicho que não vem para ao meu prato.
(Em Sanxenxo)
Estou sentado na esplanada, mesmo junto à entrada do edifício do restaurante. Três degraus escalados e, no lado esquerdo, um aquário de grandes dimensões aloja as lagostas, lavagantes e santolas que são o engodo de quem quer tragar as delícias que o mar oferece. Todos os exemplares que se acumulam dentro do aquário estão vivos. É necessário provar ao cliente que a sua escolha é merecedora de confiança. O marisco que ali se consome é fresco, tão fresco que ainda está vivo. Vivo mas manietado. Os bichos não têm liberdade de acção, por terem as suas garras amordaçadas, quiçá para que o seu instinto de vida não os leve a uma reacção agressiva contra a pessoa que os for pescar com a pinça.
As crianças de tenra idade são levadas pela curiosidade e param, atónitas, perante tal quadro. Perguntam aos pais que bicho é este, que se diferencia do outro que tem umas patas diferentes. Testemunham a sua limitada movimentação, porque as garras estão bem atadas por cordéis de fio grosso. Não sei o que desperta a curiosidade destas crianças. Não sei se é uma curiosidade diria científica, própria de quem desperta para os fenómenos da natureza. Ou se é uma curiosidade mórbida, típica da natureza humana, sempre pronta a sacrificar, com espectáculo degradante pelo meio, a vida de animais para saciar apetites gastronómicos. Ou se é uma manifestação imberbe de crianças insensíveis, que ficam especadas olhando para os lavagantes, lagostas e santolas como adornos de um aquário, sem perceberem que estão ali prestes a deixar a vida para irem parar ao estômago dos comensais. Como se fossem simples brinquedos, chamariz de uma clientela mais jovem que ignora o destino fadado para aqueles bichos.
Eis senão que, muitos minutos passados, houve um pedido de um lavagante. O empregado de mesa serviu-se de uma pinça com uma longa haste para escolher o exemplar. À medida que a pinça navegava nas águas do aquário, os bichos fugiam em desespero. Adivinhavam que a fuga momentânea da pinça era o passaporte para mais uns minutos, ou horas, de vida. O reboliço leva-os a atropelarem-se uns aos outros. Na lei do salve-se quem puder, um infeliz foi contemplado. Acabou por ser apanhado pela pinça que o puxou à superfície. Debatia-se com energia, mostrando as patas amarradas. São os derradeiros momentos de vida que se esvaem naqueles movimentos vigorosos. A mão do empregado senta-se sobre o dorso do lavagante, depositando-o numa travessa de inox que lhe serve de leito de morte.
O resto não vi. Adivinho que os breves metros do trajecto entre o aquário e a cozinha terão sido percorridos com mais tentativas desesperadas para fugir ao destino traçado. Até que mergulhou na água fervente, despedindo-se lentamente da vida que teve nas águas de um mar que, para ele, foi de liberdade.
Em tempos li algures que estes espécimes não têm sistema nervoso central. Por esse motivo nada sentem quando o seu corpo é depositado na água que ferve a mais de cem graus centígrados. Morrem sem dor, cozidos pela água fervente. Mais recentemente, alguém mais familiar em biologia trouxe-me conhecimento contrário. Disse-me que estes bichos sofrem ao serem depositados num tacho com água que borbulha a uma temperatura muito elevada. Se é verdade, o “conhecimento oficial” da ausência de sistema nervoso central só serve para que os mais sensíveis se consigam apaziguar com a consciência quando comem estes lautos petiscos. É uma forma de enganar estas pessoas, que se repugnam com o espectáculo triste de levar para o leito da morte, directamente do aquário, um animal que está agora vivo e que, minutos depois, aparece morto e delicioso na mesa do comensal.
Por via das dúvidas, é bicho que não vem para ao meu prato.
(Em Sanxenxo)
28.6.04
A banhos
O felino vai descansar durante uma semana. Domingo, novas actualizações, com o que for entretanto escrevendo.
Águas agitadas
Tenho que dar a mão à palmatória: o Euro 2004 é um sucesso. No passado fui céptico em relação ao evento. Temi que levasse a uma enxurrada de gastos megalómanos, sem retorno visível no longo prazo. Que fosse mais uma sucessão de obras públicas sumptuosas, sem apetência para inscrever o país na rota de um desenvolvimento que rivalize com os parceiros europeus que estão léguas à nossa frente. Mais uma obra para adensar os privilégios absurdos do meio futebolístico nacional.
Até ao momento, estou rendido ao Euro 2004. Pelo colorido trazido pelos adeptos de diferentes países, pelos relatos de adeptos apaixonados pelo país, pelo frenesim favorável à economia nacional. Indicadores que deixam boas expectativas para o futuro. Sugere-se que mais turistas virão a Portugal com o chamariz de quem cá esteve e leva uma boa imagem do lado bom do país. E que mais gente estrangeira, em final de vida activa, fará de Portugal o abrigo para as suas reformas depois de terem provado as delícias que o prazenteiro país tem oferecido. Para culminar em beleza, o Euro 2004 até terá sido responsável por um português ser o próximo inquilino da presidência da Comissão Europeia…
Enquanto grande parte do país anda entretido com o futebol, outra parte, talvez já com saudades de uma boa arenga política, tem soprado ventos tempestuosos a propósito da nomeação de Durão Barroso como presidente da Comissão Europeia. Andamos agora atarefados a escavar o terreno da especulação. Uns com o orgulho inflamado pela honra de ter um português a presidir aos destinos da Comissão. Outros já direccionam a sua atenção para o day after.
Discute-se se Sampaio deve convocar eleições antecipadas. Desdobram-se as opiniões acerca do sucessor de Durão, caso o presidente da república aposte na estabilidade política e não convoque eleições antecipadas. Incoerências vêm ao de cima: sobretudo entre aqueles que defendiam António Vitorino como candidato à presidência da Comissão, como se de um “imperativo nacional” se tratasse, num bolorento patriotismo que soava a mero oportunismo político. Os mesmos que agora criticam Durão por ter aceite o cargo que, na sua maneira de ver, estava fadado para Vitorino. Mistérios insondáveis da politiquice nacional, ou nem por isso…
Não vejo onde Portugal possa ganhar com Durão Barroso como presidente da Comissão. Durão vai assumir o cargo fazendo juras solenes de independência política. Não pode receber instruções de nenhum Estado membro (o que é muito relativo: pode ser sempre instrumentalizado pelas pressões de países dotados de muita força), nem pode actuar em favor de certos interesses nacionais. É ainda menos crível que Durão vá para Bruxelas para defender interesses nacionais. Se o fizesse não chegava a aquecer o lugar. Aliás, como representante de um país pequeno, será mais fácil instrumentalizar Durão enquanto presidente da Comissão. Adivinho que os seus tempos vindouros não serão dóceis. Ficará exposto a um fogo cruzado de influências contrárias. A sua margem de manobra será escassa, andando sempre na mira dos Estados membros mais poderosos. Se tudo isto apenas enobrece o país de onde vem Durão, apetece dizer que é daqueles rebuçados que se degustam sem saberem a nada: fogo-fátuo efémero, glória vã que requenta o orgulho nacional sem trazer benefícios palpáveis.
Nota final para o vendaval político que se instalou em Portugal. Compreende-se que todas as esquerdas queiram eleições antecipadas. Estão a fazer o seu papel, agarrando-se ao oportunismo que caracteriza todas as formações políticas. Se os papéis se invertessem, o PSD e o CDS-PP também viriam a terreiro exigir eleições antecipadas. É para além do oportunismo político que se deve analisar o caso. Os defensores da antecipação de eleições argumentam com a ilegitimidade política de quem vier a suceder a Durão à frente do governo. Reclamam que os eleitores não votaram em Santana Lopes ou noutro qualquer que vier a ser designado como novo primeiro-ministro.
Estes sectores esquecem-se que há um regime político que é mais forte do que as suas vontades secretas. Nas eleições para a assembleia da república os cidadãos votam em listas que representam os candidatos dos partidos. Não votam em candidatos a primeiros-ministros. Se a legislatura tem uma duração de quatro anos, há mecanismos previstos para a levar até ao final caso suceda algo com um primeiro-ministro que o leve a renunciar ou a abdicar o cargo. Sugerem os partidários de eleições antecipadas que a legitimidade política pesa mais do que os preceitos da Constituição. Pasmo com tal teoria – ela própria manifestação do oportunismo político, do desespero de quem vê nesta oportunidade uma janela de ouro para regressar ao poder mais cedo do que previsto (ou, se calhar, a única hipótese de alguma vez chagar ao cadeirão de primeiro-ministro…). Se esta tese tivesse vencimento, fazia-se tábua rasa das normas da Constituição em nome de juízos ao sabor do momento, em nome de uma pretensa “legitimidade política” carregada de subjectivismo.
Que haja muita gente desgostosa com o cenário que se adivinha – Santana Lopes a primeiro-ministro – é de compreender. Para mim é uma hipótese repugnante, a de ver este senhor gerir os destinos de Portugal durante dois anos. Mas é lamentável que considerações pessoais se sobreponham à imparcialidade, à objectividade com que a situação deve ser analisada. Alguns críticos já protestaram com o argumento de que os votantes do PSD depositaram o seu voto no pressuposto de que o primeiro-ministro seria Durão, não Santana Lopes. Mas deviam saber que Santana Lopes era vice-presidente do PSD, logo se perfilava como substituto natural caso Durão renunciasse ao cargo.
Se querem penalizar o PSD pela escolha errada de Santana Lopes, devem esperar mais dois anos, que a legislatura vá até ao fim. Devem esperar pelas políticas de Santana, devem deixar fluir os dois anos de governação mediática e glamourosa, o neón brilhar, o país afundar-se um pouco mais no populismo acéfalo de quem se anuncia como novo primeiro-ministro. Então será o momento do verdadeiro julgamento. Não agora, por um motivo que não ouvi ser aduzido por ninguém: é politicamente legítimo passar por cima da vontade dos eleitores que votaram nos partidos da coligação governamental e que, em teoria, desejam que a legislatura se esgote até ao final? Fazer a vontade à minoria, sacrificando a vontade da maioria, está de acordo com os cânones da ética democrática?
Até ao momento, estou rendido ao Euro 2004. Pelo colorido trazido pelos adeptos de diferentes países, pelos relatos de adeptos apaixonados pelo país, pelo frenesim favorável à economia nacional. Indicadores que deixam boas expectativas para o futuro. Sugere-se que mais turistas virão a Portugal com o chamariz de quem cá esteve e leva uma boa imagem do lado bom do país. E que mais gente estrangeira, em final de vida activa, fará de Portugal o abrigo para as suas reformas depois de terem provado as delícias que o prazenteiro país tem oferecido. Para culminar em beleza, o Euro 2004 até terá sido responsável por um português ser o próximo inquilino da presidência da Comissão Europeia…
Enquanto grande parte do país anda entretido com o futebol, outra parte, talvez já com saudades de uma boa arenga política, tem soprado ventos tempestuosos a propósito da nomeação de Durão Barroso como presidente da Comissão Europeia. Andamos agora atarefados a escavar o terreno da especulação. Uns com o orgulho inflamado pela honra de ter um português a presidir aos destinos da Comissão. Outros já direccionam a sua atenção para o day after.
Discute-se se Sampaio deve convocar eleições antecipadas. Desdobram-se as opiniões acerca do sucessor de Durão, caso o presidente da república aposte na estabilidade política e não convoque eleições antecipadas. Incoerências vêm ao de cima: sobretudo entre aqueles que defendiam António Vitorino como candidato à presidência da Comissão, como se de um “imperativo nacional” se tratasse, num bolorento patriotismo que soava a mero oportunismo político. Os mesmos que agora criticam Durão por ter aceite o cargo que, na sua maneira de ver, estava fadado para Vitorino. Mistérios insondáveis da politiquice nacional, ou nem por isso…
Não vejo onde Portugal possa ganhar com Durão Barroso como presidente da Comissão. Durão vai assumir o cargo fazendo juras solenes de independência política. Não pode receber instruções de nenhum Estado membro (o que é muito relativo: pode ser sempre instrumentalizado pelas pressões de países dotados de muita força), nem pode actuar em favor de certos interesses nacionais. É ainda menos crível que Durão vá para Bruxelas para defender interesses nacionais. Se o fizesse não chegava a aquecer o lugar. Aliás, como representante de um país pequeno, será mais fácil instrumentalizar Durão enquanto presidente da Comissão. Adivinho que os seus tempos vindouros não serão dóceis. Ficará exposto a um fogo cruzado de influências contrárias. A sua margem de manobra será escassa, andando sempre na mira dos Estados membros mais poderosos. Se tudo isto apenas enobrece o país de onde vem Durão, apetece dizer que é daqueles rebuçados que se degustam sem saberem a nada: fogo-fátuo efémero, glória vã que requenta o orgulho nacional sem trazer benefícios palpáveis.
Nota final para o vendaval político que se instalou em Portugal. Compreende-se que todas as esquerdas queiram eleições antecipadas. Estão a fazer o seu papel, agarrando-se ao oportunismo que caracteriza todas as formações políticas. Se os papéis se invertessem, o PSD e o CDS-PP também viriam a terreiro exigir eleições antecipadas. É para além do oportunismo político que se deve analisar o caso. Os defensores da antecipação de eleições argumentam com a ilegitimidade política de quem vier a suceder a Durão à frente do governo. Reclamam que os eleitores não votaram em Santana Lopes ou noutro qualquer que vier a ser designado como novo primeiro-ministro.
Estes sectores esquecem-se que há um regime político que é mais forte do que as suas vontades secretas. Nas eleições para a assembleia da república os cidadãos votam em listas que representam os candidatos dos partidos. Não votam em candidatos a primeiros-ministros. Se a legislatura tem uma duração de quatro anos, há mecanismos previstos para a levar até ao final caso suceda algo com um primeiro-ministro que o leve a renunciar ou a abdicar o cargo. Sugerem os partidários de eleições antecipadas que a legitimidade política pesa mais do que os preceitos da Constituição. Pasmo com tal teoria – ela própria manifestação do oportunismo político, do desespero de quem vê nesta oportunidade uma janela de ouro para regressar ao poder mais cedo do que previsto (ou, se calhar, a única hipótese de alguma vez chagar ao cadeirão de primeiro-ministro…). Se esta tese tivesse vencimento, fazia-se tábua rasa das normas da Constituição em nome de juízos ao sabor do momento, em nome de uma pretensa “legitimidade política” carregada de subjectivismo.
Que haja muita gente desgostosa com o cenário que se adivinha – Santana Lopes a primeiro-ministro – é de compreender. Para mim é uma hipótese repugnante, a de ver este senhor gerir os destinos de Portugal durante dois anos. Mas é lamentável que considerações pessoais se sobreponham à imparcialidade, à objectividade com que a situação deve ser analisada. Alguns críticos já protestaram com o argumento de que os votantes do PSD depositaram o seu voto no pressuposto de que o primeiro-ministro seria Durão, não Santana Lopes. Mas deviam saber que Santana Lopes era vice-presidente do PSD, logo se perfilava como substituto natural caso Durão renunciasse ao cargo.
Se querem penalizar o PSD pela escolha errada de Santana Lopes, devem esperar mais dois anos, que a legislatura vá até ao fim. Devem esperar pelas políticas de Santana, devem deixar fluir os dois anos de governação mediática e glamourosa, o neón brilhar, o país afundar-se um pouco mais no populismo acéfalo de quem se anuncia como novo primeiro-ministro. Então será o momento do verdadeiro julgamento. Não agora, por um motivo que não ouvi ser aduzido por ninguém: é politicamente legítimo passar por cima da vontade dos eleitores que votaram nos partidos da coligação governamental e que, em teoria, desejam que a legislatura se esgote até ao final? Fazer a vontade à minoria, sacrificando a vontade da maioria, está de acordo com os cânones da ética democrática?
25.6.04
O renovado entusiasmo pelo futebol e a (re)identificação nacional
Há que o admitir: o campeonato da Europa de futebol está a exceder as minhas expectativas. Não, não pelas façanhas desportivas da selecção portuguesa. São outros factores que me levam àquela asserção: o entusiasmo vibrante com que a população portuguesa está a viver os êxitos da equipa nacional, o colorido contagiante dos adeptos de diferentes países que convivem alegremente nas ruas das cidades, enfim, o facto de muita gente estar a despertar para um desporto que lhes era pouco mais do que indiferente.
Começo por este fenómeno. Basta andar pelas ruas com os ouvidos atentos às conversas que connosco se cruzam. Basta escutar o tema de conversa numa roda de amigos ou em família. E constatar que tanta gente que antes era indiferente ao futebol vive agora os jogos com entusiasmo, quer ter mais informação sobre o que se está a passar, já avança com nomes que outrora eram apenas uma nebulosa cortina de fumo que só os especialistas do desporto conheciam. É certo que muito deste entusiasmo pelo futebol se confunde com a euforia em torno da selecção nacional.
Resta ver se, no futuro, este entusiasmo se vai prolongar para as competições que todos anos se organizam à escala nacional. Estou para ver se a euforia desencadeada pelo Euro 2004 se vai traduzir numa reconciliação entre o “futebol clubístico” e as pessoas. Então se irá tirar a prova dos nove, para ver se os estádios vão estar mais compostos, para saber se os meandros tortuosos da convivência tenebrosa entre futebol, política, negócios obscuros e corrupção dão lugar ao desporto puro que tem atraído tanta gente que estava adormecida.
É neste contexto que tenho que dar a mão à palmatória e admitir que o campeonato tem excedido as expectativas. Há algo que me deixa admirado: o “fervor nacionalista” é o móbil para uma festa que tem andado de braço dado com o futebol. É uma diferença abismal entre um campeonato como este, em que se defrontam selecções de países, e o futebol que põe frente a frente clubes (do mesmo ou de diferentes países). No futebol clubístico as paixões são exacerbadas, irracionais, com maiores probabilidades da rivalidade cegar a racionalidade e levar a excessos de violência. Tal não se verifica nos duelos entre selecções nacionais.
O colorido que preenche as bancadas, que nos entra pelos olhos dentro quando circulamos pelas ruas da cidade, é o sinal evidente da festa que se vive. Repetidamente, vemos imagens de festa em que adeptos de diferentes países trajam as respectivas cores nacionais e convivem em respeito. Avanço uma possível explicação: quem vem aos jogos são os adeptos que não frequentam muito as competições onde o fervor clubista vem ao de cima. Não são tanto os adeptos cegos pela clubite aguda, antes aqueles adeptos de circunstância que aproveitam um campeonato da Europa para acompanharem a sua equipa nacional e ao mesmo tempo fazerem turismo. A prova é a quantidade de mulheres que tem ido aos estádios, bem acima do normal em jogos de outras competições clubistas.
Há dias li algures dois artigos publicados por académicos reputados na área da integração europeia. Faziam uma análise sociológica das movimentações de massas que se deslocam numa peregrinação fiel atrás das respectivas equipas nacionais. Questionavam-se se, numa Europa unida – e cada vez mais unida – estas expressões de nacionalismo exacerbado ainda fazem sentido. Estou à vontade para discordar das análises distanciadas dos académicos em causa. Porque o meu fervor nacionalista é muito próximo do zero. Admitindo que o nacionalismo é subjectivo, é a minha ausência nacionalista que faz de mim uma excepção patológica.
Discordo daquela análise porque ela se alicerça num pressuposto errado. De acordo com os académicos, agora que a União Europa acentuou os traços de unificação com o acordo da Constituição da União Europeia, faz cada vez menos sentido exaltar os sentimentos nacionalistas. Está errado, porque a União assenta no valor da diversidade (“união na diversidade”). É uma união de Estados, que são ainda o património genético da diversidade que deve ser preservada a todo o custo, sob pena de o devir da União se encaminhar para um totalitarismo inaceitável que espezinha os traços de especificidade de cada país.
Há que não esquecer que a União Europeia se alicerça na unidade na diversidade. Não numa união forçada de povos que ainda se continuam a ver mais como povos de um determinado Estado membro, não como povo da União Europeia. Negar esta evidência é distorcer as vontades das pessoas que dirigirem os seus laços identitários para as nações. Assim sendo, continua a haver lugar às competições desportivas que permitem a rivalidade entre atletas que representam diferentes Estados membros da União, sem que isso ponha em causa os valores nobres que constituem o esteio da União.
Quanto à bebedeira nacional proporcionada pelos sucessos desportivos da equipa nacional, ficará para outro dia…
Começo por este fenómeno. Basta andar pelas ruas com os ouvidos atentos às conversas que connosco se cruzam. Basta escutar o tema de conversa numa roda de amigos ou em família. E constatar que tanta gente que antes era indiferente ao futebol vive agora os jogos com entusiasmo, quer ter mais informação sobre o que se está a passar, já avança com nomes que outrora eram apenas uma nebulosa cortina de fumo que só os especialistas do desporto conheciam. É certo que muito deste entusiasmo pelo futebol se confunde com a euforia em torno da selecção nacional.
Resta ver se, no futuro, este entusiasmo se vai prolongar para as competições que todos anos se organizam à escala nacional. Estou para ver se a euforia desencadeada pelo Euro 2004 se vai traduzir numa reconciliação entre o “futebol clubístico” e as pessoas. Então se irá tirar a prova dos nove, para ver se os estádios vão estar mais compostos, para saber se os meandros tortuosos da convivência tenebrosa entre futebol, política, negócios obscuros e corrupção dão lugar ao desporto puro que tem atraído tanta gente que estava adormecida.
É neste contexto que tenho que dar a mão à palmatória e admitir que o campeonato tem excedido as expectativas. Há algo que me deixa admirado: o “fervor nacionalista” é o móbil para uma festa que tem andado de braço dado com o futebol. É uma diferença abismal entre um campeonato como este, em que se defrontam selecções de países, e o futebol que põe frente a frente clubes (do mesmo ou de diferentes países). No futebol clubístico as paixões são exacerbadas, irracionais, com maiores probabilidades da rivalidade cegar a racionalidade e levar a excessos de violência. Tal não se verifica nos duelos entre selecções nacionais.
O colorido que preenche as bancadas, que nos entra pelos olhos dentro quando circulamos pelas ruas da cidade, é o sinal evidente da festa que se vive. Repetidamente, vemos imagens de festa em que adeptos de diferentes países trajam as respectivas cores nacionais e convivem em respeito. Avanço uma possível explicação: quem vem aos jogos são os adeptos que não frequentam muito as competições onde o fervor clubista vem ao de cima. Não são tanto os adeptos cegos pela clubite aguda, antes aqueles adeptos de circunstância que aproveitam um campeonato da Europa para acompanharem a sua equipa nacional e ao mesmo tempo fazerem turismo. A prova é a quantidade de mulheres que tem ido aos estádios, bem acima do normal em jogos de outras competições clubistas.
Há dias li algures dois artigos publicados por académicos reputados na área da integração europeia. Faziam uma análise sociológica das movimentações de massas que se deslocam numa peregrinação fiel atrás das respectivas equipas nacionais. Questionavam-se se, numa Europa unida – e cada vez mais unida – estas expressões de nacionalismo exacerbado ainda fazem sentido. Estou à vontade para discordar das análises distanciadas dos académicos em causa. Porque o meu fervor nacionalista é muito próximo do zero. Admitindo que o nacionalismo é subjectivo, é a minha ausência nacionalista que faz de mim uma excepção patológica.
Discordo daquela análise porque ela se alicerça num pressuposto errado. De acordo com os académicos, agora que a União Europa acentuou os traços de unificação com o acordo da Constituição da União Europeia, faz cada vez menos sentido exaltar os sentimentos nacionalistas. Está errado, porque a União assenta no valor da diversidade (“união na diversidade”). É uma união de Estados, que são ainda o património genético da diversidade que deve ser preservada a todo o custo, sob pena de o devir da União se encaminhar para um totalitarismo inaceitável que espezinha os traços de especificidade de cada país.
Há que não esquecer que a União Europeia se alicerça na unidade na diversidade. Não numa união forçada de povos que ainda se continuam a ver mais como povos de um determinado Estado membro, não como povo da União Europeia. Negar esta evidência é distorcer as vontades das pessoas que dirigirem os seus laços identitários para as nações. Assim sendo, continua a haver lugar às competições desportivas que permitem a rivalidade entre atletas que representam diferentes Estados membros da União, sem que isso ponha em causa os valores nobres que constituem o esteio da União.
Quanto à bebedeira nacional proporcionada pelos sucessos desportivos da equipa nacional, ficará para outro dia…
24.6.04
O Bloco de Esquerda e os neonazis reunidos em Portugal
No último fim-de-semana houve uma reunião de neonazis em Portugal. Os skinheads de toda a Europa fizeram as malas e vieram gozar do sol lusitano enquanto gizavam estratégias em nome dos seus ideais totalitários. Ao mesmo tempo o Bloco da Esquerda, essa colectividade política que é um notável guardião das liberdades, verdadeiro tutelar da democracia parlamentar representativa, exibiu o seu protesto pelo pseudo-congresso dos skinheads europeus.
Não me interessa discutir as ideias dos neonazis – o racismo, a xenofobia, o cercear das liberdades individuais. Apenas manifesto aqui a total repulsa pelo que elas representam agora e no passado. Diferente é a postura de quem convive mal com a tolerância, valor essencial para o reconhecimento das liberdades individuais. O que questiono é se a defesa dos valores de tolerância, da integração de quem pensa diferente de mim, se compadece com atitudes que tentam vedar o acesso à arena política daquelas formações que não respeitam estes mesmos valores. Seremos democráticos e inclusivos se rejeitamos a participação dos que não se revêem nos valores que alicerçam o sistema? Não estaremos, pelo contrário, a jogar o mesmo jogo de quem é anti-democrático ao impedir que eles tenham acesso à antena?
Estas interrogações vêm a propósito de mais um acto solene do Bloco de Esquerda, que se pôs em bicos de pés para vincar o protagonismo que se lhe reconhece desde que conquistou “respeitabilidade política” (desde que passou a ter representação parlamentar). Só o Bloco de Esquerda deu conta da peregrinação turística dos neonazis europeus, protestando contra o conclave desta gente de extrema-direita. Dirigiu uma petição ao presidente da assembleia da república manifestando o seu desagrado. Veio para os jornais numa campanha ruidosa, desgostoso por Portugal dar coutada a tantos energúmenos que são uma ameaça à liberdade. Se o Bloco de Esquerda mandasse os neonazis não passariam da fronteira.
Fico admirado por se dar tanta atenção aos protestos do Bloco de Esquerda, quando esta espécie de coligação agrupa partidos que não são conhecidos por respeitarem os valores da liberdade individual, por ainda professarem valores como a ditadura do proletariado, por não se terem desprendido da figura tutelar de Trotsky. Basta dar um passeio pelos sites do PSR e da UDP para verificar que estes objectivos programáticos constam, intactos e actuais, dos respectivos programas de acção.
É por isto que me pergunto que legitimidade tem o Bloco de Esquerda para se insurgir contra a reunião de neonazis em Portugal. Porque os neonazis são uma ameaça à democracia? Serão mesmo? Por acaso os serviços secretos de toda a Europa convergiram a Portugal perante a “séria ameaça” de um golpe de Estado que varresse do mapa a tão querida democracia? E, já agora, não representa o Bloco de Esquerda (pelos valores políticos que ainda não foram renegados) uma ameaça idêntica ao valor da tolerância, às regras do jogo democrático? Os métodos serão diferentes da extrema-direita. Sabe-se que a extrema-esquerda onde se acoita o Bloco de Esquerda não tem o passado tão manchado de sangue como a extrema-direita. Mas os objectivos finais serão assim tão diferentes quando se compara a extrema-direita com esta extrema-esquerda?
O respeito escrupuloso pelo valor da tolerância não se compadece com decisões arbitrárias que impedem as franjas totalitárias de exprimirem as suas opiniões. É esta a verdadeira diferença entre quem se afirma tributário do valor da tolerância e aqueles que o menosprezam. Os primeiros sabem dar o flanco para que os segundos combatam o sistema por dentro. A decisão final cabe a quem vai votar: se preferem ter o direito de continuar a votar, ou se preferem, com o voto nas formações totalitárias, deixar de votar no futuro.
Negar a existência de partidos totalitários é a negação da democracia. Seria como corroer a democracia por dentro, aniquilando a liberdade de expressão a que os opositores do regime democrático têm direito. Os que se ergueram contra a presença dos neonazis deram a melhor imagem de como são a antítese da tolerância democrática, de como eles mesmos constituem um perigo para a democracia.
Não me interessa discutir as ideias dos neonazis – o racismo, a xenofobia, o cercear das liberdades individuais. Apenas manifesto aqui a total repulsa pelo que elas representam agora e no passado. Diferente é a postura de quem convive mal com a tolerância, valor essencial para o reconhecimento das liberdades individuais. O que questiono é se a defesa dos valores de tolerância, da integração de quem pensa diferente de mim, se compadece com atitudes que tentam vedar o acesso à arena política daquelas formações que não respeitam estes mesmos valores. Seremos democráticos e inclusivos se rejeitamos a participação dos que não se revêem nos valores que alicerçam o sistema? Não estaremos, pelo contrário, a jogar o mesmo jogo de quem é anti-democrático ao impedir que eles tenham acesso à antena?
Estas interrogações vêm a propósito de mais um acto solene do Bloco de Esquerda, que se pôs em bicos de pés para vincar o protagonismo que se lhe reconhece desde que conquistou “respeitabilidade política” (desde que passou a ter representação parlamentar). Só o Bloco de Esquerda deu conta da peregrinação turística dos neonazis europeus, protestando contra o conclave desta gente de extrema-direita. Dirigiu uma petição ao presidente da assembleia da república manifestando o seu desagrado. Veio para os jornais numa campanha ruidosa, desgostoso por Portugal dar coutada a tantos energúmenos que são uma ameaça à liberdade. Se o Bloco de Esquerda mandasse os neonazis não passariam da fronteira.
Fico admirado por se dar tanta atenção aos protestos do Bloco de Esquerda, quando esta espécie de coligação agrupa partidos que não são conhecidos por respeitarem os valores da liberdade individual, por ainda professarem valores como a ditadura do proletariado, por não se terem desprendido da figura tutelar de Trotsky. Basta dar um passeio pelos sites do PSR e da UDP para verificar que estes objectivos programáticos constam, intactos e actuais, dos respectivos programas de acção.
É por isto que me pergunto que legitimidade tem o Bloco de Esquerda para se insurgir contra a reunião de neonazis em Portugal. Porque os neonazis são uma ameaça à democracia? Serão mesmo? Por acaso os serviços secretos de toda a Europa convergiram a Portugal perante a “séria ameaça” de um golpe de Estado que varresse do mapa a tão querida democracia? E, já agora, não representa o Bloco de Esquerda (pelos valores políticos que ainda não foram renegados) uma ameaça idêntica ao valor da tolerância, às regras do jogo democrático? Os métodos serão diferentes da extrema-direita. Sabe-se que a extrema-esquerda onde se acoita o Bloco de Esquerda não tem o passado tão manchado de sangue como a extrema-direita. Mas os objectivos finais serão assim tão diferentes quando se compara a extrema-direita com esta extrema-esquerda?
O respeito escrupuloso pelo valor da tolerância não se compadece com decisões arbitrárias que impedem as franjas totalitárias de exprimirem as suas opiniões. É esta a verdadeira diferença entre quem se afirma tributário do valor da tolerância e aqueles que o menosprezam. Os primeiros sabem dar o flanco para que os segundos combatam o sistema por dentro. A decisão final cabe a quem vai votar: se preferem ter o direito de continuar a votar, ou se preferem, com o voto nas formações totalitárias, deixar de votar no futuro.
Negar a existência de partidos totalitários é a negação da democracia. Seria como corroer a democracia por dentro, aniquilando a liberdade de expressão a que os opositores do regime democrático têm direito. Os que se ergueram contra a presença dos neonazis deram a melhor imagem de como são a antítese da tolerância democrática, de como eles mesmos constituem um perigo para a democracia.
23.6.04
Porque somos louvados depois de mortos?
A pergunta tem que ser feita de outra forma, por uma exigência de rigor: porque só somos louvados depois de partirmos do mundo dos vivos? Faço esta pergunta sempre que uma personagem pública morre e logo de seguida desfila o carpir de mágoas, acompanhado por um relambório que quase endeusa a pessoa que acabou de falecer. Mesmo que, enquanto viva, motivasse uma divisão de opiniões acerca do seu mérito, ou fossem muitas as críticas a determinados traços da sua personalidade, ou ainda que essa pessoa tenha ficado conhecida por uma passagem menos feliz num certo cargo de notoriedade.
Após a sua partida, esta pessoa deixa de ter defeitos. A morte das personalidades públicas que tiveram algum destaque permite um apaziguamento colectivo no momento da morte. Em respeito pela memória de quem faleceu, todos os epitáfios que se escrevem ou se dizem não andam longe de hagiografias. Como referi há pouco, a morte encarrega-se de levar para a cova os defeitos da pessoa que parte deste mundo. Sobram as virtudes. Como se a ida do mundo dos vivos corporizasse a desumanização de quem morre através da eliminação dos defeitos que conferem sempre uma dimensão humana aos que estão entre os vivos.
Não consigo compreender esta tendência que coloca as pessoas mortas nos píncaros, logo após o momento da sua morte. Não consigo perceber as elegias que enaltecem o falecido, num pranto colectivo que tantas vezes soa a falso. A mesma pessoa que é tão elogiada no momento fúnebre é a mesma pessoa que em vida foi vituperada por alguns dos que prestam as homenagens de serviço. O que soa a falso, deixando vir à superfície a hipocrisia humana que se vulgarizou na sociedade em que vivemos.
Nesta consagração unânime feita nos tristes momentos que se seguem à morte de alguém, há uma sagração da morte que é, ao mesmo tempo, uma subalternização da vida. De outro modo, como compreender que em vida destoemos nas críticas em relação a quem está vivo? Raramente temos tempo para enfatizar os elogios que são devidos às qualidades inatas de uma certa pessoa (excepto quando a notoriedade é tão elevada que se organizam homenagens em vida). Mas quando a morte bate assustadoramente à porta, convertemos o nosso comportamento e fazemos uma inversão de 180 graus. Onde em vida existia rivalidade, crítica, muitas vezes com aspereza, a morte traz consigo as lágrimas vertidas acompanhadas de um rol infindável de elogios.
Daí que surja a interrogação: será hipocrisia apenas? Será o hábito socialmente conveniente de respeitar a memória de quem morre, nem que se passe uma esponja pelo passado e se faça de conta que quem morreu foi um herói em vida cuja heroicidade apenas é enaltecida após a morte? Ou será o medo da terrível morte que empurra os vivos a representarem o respeito pela memória de quem morre, como se quem presta o elogio fúnebre esteja a destilar a inquietação interior de não saber se é o próximo a partir do mundo dos vivos?
É lamentável, para quem morre, que só seja elogiado quando já não pode escutar os elogios. Com a morte os sentidos esvaíram-se. E com eles foi a possibilidade de afagar o ego ao escutar tantos elogios que nunca foram ouvidos enquanto a vida durou. Só aí é que faz sentido exaltar a personalidade de alguém – quando ele ou ela estão vivos. Os elogios fúnebres só servem para descarregar um necessário dever social que coincide com o hábito instalado do “respeito pelos mortos”.
Após a sua partida, esta pessoa deixa de ter defeitos. A morte das personalidades públicas que tiveram algum destaque permite um apaziguamento colectivo no momento da morte. Em respeito pela memória de quem faleceu, todos os epitáfios que se escrevem ou se dizem não andam longe de hagiografias. Como referi há pouco, a morte encarrega-se de levar para a cova os defeitos da pessoa que parte deste mundo. Sobram as virtudes. Como se a ida do mundo dos vivos corporizasse a desumanização de quem morre através da eliminação dos defeitos que conferem sempre uma dimensão humana aos que estão entre os vivos.
Não consigo compreender esta tendência que coloca as pessoas mortas nos píncaros, logo após o momento da sua morte. Não consigo perceber as elegias que enaltecem o falecido, num pranto colectivo que tantas vezes soa a falso. A mesma pessoa que é tão elogiada no momento fúnebre é a mesma pessoa que em vida foi vituperada por alguns dos que prestam as homenagens de serviço. O que soa a falso, deixando vir à superfície a hipocrisia humana que se vulgarizou na sociedade em que vivemos.
Nesta consagração unânime feita nos tristes momentos que se seguem à morte de alguém, há uma sagração da morte que é, ao mesmo tempo, uma subalternização da vida. De outro modo, como compreender que em vida destoemos nas críticas em relação a quem está vivo? Raramente temos tempo para enfatizar os elogios que são devidos às qualidades inatas de uma certa pessoa (excepto quando a notoriedade é tão elevada que se organizam homenagens em vida). Mas quando a morte bate assustadoramente à porta, convertemos o nosso comportamento e fazemos uma inversão de 180 graus. Onde em vida existia rivalidade, crítica, muitas vezes com aspereza, a morte traz consigo as lágrimas vertidas acompanhadas de um rol infindável de elogios.
Daí que surja a interrogação: será hipocrisia apenas? Será o hábito socialmente conveniente de respeitar a memória de quem morre, nem que se passe uma esponja pelo passado e se faça de conta que quem morreu foi um herói em vida cuja heroicidade apenas é enaltecida após a morte? Ou será o medo da terrível morte que empurra os vivos a representarem o respeito pela memória de quem morre, como se quem presta o elogio fúnebre esteja a destilar a inquietação interior de não saber se é o próximo a partir do mundo dos vivos?
É lamentável, para quem morre, que só seja elogiado quando já não pode escutar os elogios. Com a morte os sentidos esvaíram-se. E com eles foi a possibilidade de afagar o ego ao escutar tantos elogios que nunca foram ouvidos enquanto a vida durou. Só aí é que faz sentido exaltar a personalidade de alguém – quando ele ou ela estão vivos. Os elogios fúnebres só servem para descarregar um necessário dever social que coincide com o hábito instalado do “respeito pelos mortos”.
22.6.04
Avelino Ferreira Torres: o abismo do apego ao poder
Há duas semanas, o presidente da câmara do Marco de Canavezes foi condenado à perda de mandato por ter sido culpado dos crimes de peculato e abuso de poder. A reacção desabrida, bem ao jeito do que Avelino Ferreira Torres (AVT) nos habituou, não se fez esperar. Anunciou em voz alta que não vai prescindir do poder, apesar de um tribunal ter sentenciado nesse sentido. Prometeu um recurso para tribunais superiores, para esgotar todas as possibilidades que evitem a perda do mandato.
Entretanto, AVT foi dissertando sobre os juízes que tiveram a ousadia de o julgar. Ao jeito dos piores tiranetes sul-americanos, o autarca não se coibiu de lançar suspeitas sobre um dos juízes devido ao processo de falência de uma empresa da zona. Para outra juíza, AVT reservou uma tirada do pior mau gosto que esta personagem nos foi habituando ao longo de anos infindáveis de intervenções públicas arruaceiras. Convidou os que ouviam o seu recital a irem até Bragança e perguntarem aos habitantes da cidade sobre a tal juíza. E concluiu com um intolerável dislate: que a senhora juíza só há pouco tempo terá deixado de beber leite…
Confesso que, ao ler a notícia, fiquei atónito com esta suspeita que AVT, qual víbora venenosa, cuspiu para o ar. Terá sugerido que a juíza é nova e que, como tal, não possui a experiência suficiente para o julgar? Talvez AVT considere que só as pessoas acima de uma determinada idade (que ele não especificou) podem ser juízes. Ou seja, AVT faz lei na sua coutada. Dentro dos seus domínios (o concelho do Marco de Canavezes) ele dita leis, ele possui legitimidade para fazer normas diferentes das que cobrem Portugal de uma ponta à outra. Também aqui só os desprevenidos são apanhados de surpresa. Do passado fica um rol interminável de actuações lamentáveis de AVT, com entorses sucessivas à democracia, com actos próprios de um ditador que se acoberta nas maiorias absolutas conquistadas nas urnas para actuar como se estivesse investido de poder para espezinhar todos os que não se revêem na sua governação.
A esperança é que o tempo de AVT se esteja a esgotar. O golpe fatal foi dado pelo tribunal que o julgou e lhe retirou o mandato de autarca em virtude da gravidade das acusações que foram provadas. AVT pode não gostar da sentença. Mas se não se quer afundar mais no atoleiro ditatorial em que sempre viveu mergulhado, não tenha a insensatez de desprezar um valor fundamental do Estado de direito – a separação de poderes, a inaceitabilidade da intrusão dos políticos nos meandros da justiça.
O problema é que os AVT estão espalhados no mapa autárquico português. Com diferenças de estilo, sem o estardalhaço típico do autarca marcoense, a verdade é que os meios utilizados por inúmeros presidentes da câmara são idênticos. Passam incólumes porque não cometem a imprudência de actuarem como um elefante em loja de porcelana. Não fazem como AVT, que de cada vez que abre a boca sai asneira da grossa, mais condizente com o homem do campo ou das obras que não hesita em ameaçar com o uso de violência contra aqueles que ousam enfrentá-lo. Teimando em atropelar os valores que cimentam o Estado de direito, quando devia dar o exemplo no seu acatamento.
Ao constatar como proliferam que nem cogumelos venenosos estes “autarcas-tipo”, dou-me conta de como é difícil apoiar um sistema de descentralização de poder que ponha nas mãos dos municípios mais competências e mais recursos financeiros – ainda que, em teoria, seja partidário deste sistema. Se com a escassa descentralização municipal que temos já somos obrigados a deparar com estes casos de autarcas que criam clientelas perversas, que se entronizam no poder como senhores absolutos, em que abundam as suspeitas de enriquecimentos fabulosos em poucos anos de mandato – o que seria se os municípios fossem empossados de mais poderes? Quantos AVT não se multiplicariam de norte a sul?
Entretanto, AVT foi dissertando sobre os juízes que tiveram a ousadia de o julgar. Ao jeito dos piores tiranetes sul-americanos, o autarca não se coibiu de lançar suspeitas sobre um dos juízes devido ao processo de falência de uma empresa da zona. Para outra juíza, AVT reservou uma tirada do pior mau gosto que esta personagem nos foi habituando ao longo de anos infindáveis de intervenções públicas arruaceiras. Convidou os que ouviam o seu recital a irem até Bragança e perguntarem aos habitantes da cidade sobre a tal juíza. E concluiu com um intolerável dislate: que a senhora juíza só há pouco tempo terá deixado de beber leite…
Confesso que, ao ler a notícia, fiquei atónito com esta suspeita que AVT, qual víbora venenosa, cuspiu para o ar. Terá sugerido que a juíza é nova e que, como tal, não possui a experiência suficiente para o julgar? Talvez AVT considere que só as pessoas acima de uma determinada idade (que ele não especificou) podem ser juízes. Ou seja, AVT faz lei na sua coutada. Dentro dos seus domínios (o concelho do Marco de Canavezes) ele dita leis, ele possui legitimidade para fazer normas diferentes das que cobrem Portugal de uma ponta à outra. Também aqui só os desprevenidos são apanhados de surpresa. Do passado fica um rol interminável de actuações lamentáveis de AVT, com entorses sucessivas à democracia, com actos próprios de um ditador que se acoberta nas maiorias absolutas conquistadas nas urnas para actuar como se estivesse investido de poder para espezinhar todos os que não se revêem na sua governação.
A esperança é que o tempo de AVT se esteja a esgotar. O golpe fatal foi dado pelo tribunal que o julgou e lhe retirou o mandato de autarca em virtude da gravidade das acusações que foram provadas. AVT pode não gostar da sentença. Mas se não se quer afundar mais no atoleiro ditatorial em que sempre viveu mergulhado, não tenha a insensatez de desprezar um valor fundamental do Estado de direito – a separação de poderes, a inaceitabilidade da intrusão dos políticos nos meandros da justiça.
O problema é que os AVT estão espalhados no mapa autárquico português. Com diferenças de estilo, sem o estardalhaço típico do autarca marcoense, a verdade é que os meios utilizados por inúmeros presidentes da câmara são idênticos. Passam incólumes porque não cometem a imprudência de actuarem como um elefante em loja de porcelana. Não fazem como AVT, que de cada vez que abre a boca sai asneira da grossa, mais condizente com o homem do campo ou das obras que não hesita em ameaçar com o uso de violência contra aqueles que ousam enfrentá-lo. Teimando em atropelar os valores que cimentam o Estado de direito, quando devia dar o exemplo no seu acatamento.
Ao constatar como proliferam que nem cogumelos venenosos estes “autarcas-tipo”, dou-me conta de como é difícil apoiar um sistema de descentralização de poder que ponha nas mãos dos municípios mais competências e mais recursos financeiros – ainda que, em teoria, seja partidário deste sistema. Se com a escassa descentralização municipal que temos já somos obrigados a deparar com estes casos de autarcas que criam clientelas perversas, que se entronizam no poder como senhores absolutos, em que abundam as suspeitas de enriquecimentos fabulosos em poucos anos de mandato – o que seria se os municípios fossem empossados de mais poderes? Quantos AVT não se multiplicariam de norte a sul?
21.6.04
Vilarinho das Furnas: um exílio necessário?
Sábado de manhã, à espera de um dia de actividades radicais. Antes, a parte educativa com a visita ao museu etnográfico de Vilarinho das Furnas. Esta pequena aldeia, encravada entre as serras Amarela e do Gerês, ficou conhecida por ser uma das últimas aldeias com tradições comunitárias em Portugal. Vilarinho das Furnas ficou condenada a desaparecer em 1968, quando as obras da barragem findaram e as águas começaram a subir tragando terrenos e casas.
O museu etnográfico mantém vivas as lembranças de uma aldeia que está submersa pelas águas da albufeira. Desta visita retive dois aspectos. Um pela positiva: um exemplo de vida em comum, em que as pessoas se conseguiam organizar em torno de regras não escritas mas assimiladas por todos os habitantes. Salta à vista um sentimento de confiança recíproca que permitia a vida em comum, sem necessidade de uma autoridade a vigiar o funcionamento harmonioso da aldeia.
Vilarinho das Furnas representa um pequeno laboratório de convivência social que se alicerça no respeito comum, para haver respeito pelos direitos de cada indivíduo. E na desnecessidade de uma organização social típica, que exige a presença do Estado para impor a autoridade sobre os indivíduos, porque de outro modo os indivíduos tendem para a anomia. Vilarinho das Furnas era, em suma, o paradigma de como o Estado é inútil quando o respeito mútuo está enraizado como regra de conduta individual (não como regra de conduta colectiva).
A visita também me deixou uma marca negativa. Os textos que ilustravam a exposição do museu tinham uma carga crítica em relação à decisão de ali construir uma barragem. Por entre algum aproveitamento político (afinal sempre era mais uma oportunidade de vituperar a ditadura), apercebi-me que os excertos mostravam a desnecessidade da construção da barragem por bulir com uma aldeia específica, verdadeiro património antropológico pelas suas tradições comunitárias que começavam a rarear.
Um dos textos mais marcantes é de Miguel Torga. Com o seu jeito truculento, Torga insurge-se contra o “Estado” (aqui personificado pelo Estado Novo que começava já a definhar) e o “super-Estado” – o acrónimo do capitalismo. Na esteira de Torga, outros autores questionavam se fazia sentido condenar ao exílio uma população com hábitos comunitários tão enraizados. Interrogavam-se se o governo de então não estava a cometer uma injustiça por sentenciar à morte um dos derradeiros exemplos de comunitarismo, cuja presença se estava a esfumar nos tempos idos. Ou seja, se fazia sentido sacrificar umas dezenas de pessoas em favor dos benefícios proporcionados pela construção da barragem a centenas de milhar, senão mesmo alguns escassos milhões de pessoas.
Entre a vida prazenteira de poucas dezenas de habitantes de Vilarinho das Furnas e o bem-estar das muitas pessoas que iriam beneficiar da energia eléctrica ali produzida, não tenho dúvidas na opção. Pode-se questionar a violência do processo que conduziu à deslocação dos habitantes de Vilarinho das Furnas para uma aldeia próxima. Pode-se contestar os métodos utilizados, próprios de um Estado ditatorial. Mas não contesto a utilidade da barragem, nem a necessidade do sacrifício que foi imposto a Vilarinho das Furnas. Até porque, na boa tradição comunitária personificada por Vilarinho das Furnas, os seus habitantes estariam a fazer tábua rasa dos valores intrínsecos dessa tradição se fizessem finca-pé na recusa da construção da barragem.
Quanto à preservação da tradição comunitária em extinção, os antropólogos e historiadores fizeram um trabalho notável no museu etnográfico de Vilarinho das Furnas. O tempo esvai-se, célere, e não se compadece com arcaísmos que apenas são motivo de comprazimento para quem se apega tanto ao passado. A melhor forma de perdurar a tradição comunitária de Vilarinho das Furnas é o legado que o museu deixa a quem o visita. É, também, a melhor homenagem às sucessivas gerações de Vilarinho das Furnas que mantiveram viva a tradição comunitária até onde foi possível.
O museu etnográfico mantém vivas as lembranças de uma aldeia que está submersa pelas águas da albufeira. Desta visita retive dois aspectos. Um pela positiva: um exemplo de vida em comum, em que as pessoas se conseguiam organizar em torno de regras não escritas mas assimiladas por todos os habitantes. Salta à vista um sentimento de confiança recíproca que permitia a vida em comum, sem necessidade de uma autoridade a vigiar o funcionamento harmonioso da aldeia.
Vilarinho das Furnas representa um pequeno laboratório de convivência social que se alicerça no respeito comum, para haver respeito pelos direitos de cada indivíduo. E na desnecessidade de uma organização social típica, que exige a presença do Estado para impor a autoridade sobre os indivíduos, porque de outro modo os indivíduos tendem para a anomia. Vilarinho das Furnas era, em suma, o paradigma de como o Estado é inútil quando o respeito mútuo está enraizado como regra de conduta individual (não como regra de conduta colectiva).
A visita também me deixou uma marca negativa. Os textos que ilustravam a exposição do museu tinham uma carga crítica em relação à decisão de ali construir uma barragem. Por entre algum aproveitamento político (afinal sempre era mais uma oportunidade de vituperar a ditadura), apercebi-me que os excertos mostravam a desnecessidade da construção da barragem por bulir com uma aldeia específica, verdadeiro património antropológico pelas suas tradições comunitárias que começavam a rarear.
Um dos textos mais marcantes é de Miguel Torga. Com o seu jeito truculento, Torga insurge-se contra o “Estado” (aqui personificado pelo Estado Novo que começava já a definhar) e o “super-Estado” – o acrónimo do capitalismo. Na esteira de Torga, outros autores questionavam se fazia sentido condenar ao exílio uma população com hábitos comunitários tão enraizados. Interrogavam-se se o governo de então não estava a cometer uma injustiça por sentenciar à morte um dos derradeiros exemplos de comunitarismo, cuja presença se estava a esfumar nos tempos idos. Ou seja, se fazia sentido sacrificar umas dezenas de pessoas em favor dos benefícios proporcionados pela construção da barragem a centenas de milhar, senão mesmo alguns escassos milhões de pessoas.
Entre a vida prazenteira de poucas dezenas de habitantes de Vilarinho das Furnas e o bem-estar das muitas pessoas que iriam beneficiar da energia eléctrica ali produzida, não tenho dúvidas na opção. Pode-se questionar a violência do processo que conduziu à deslocação dos habitantes de Vilarinho das Furnas para uma aldeia próxima. Pode-se contestar os métodos utilizados, próprios de um Estado ditatorial. Mas não contesto a utilidade da barragem, nem a necessidade do sacrifício que foi imposto a Vilarinho das Furnas. Até porque, na boa tradição comunitária personificada por Vilarinho das Furnas, os seus habitantes estariam a fazer tábua rasa dos valores intrínsecos dessa tradição se fizessem finca-pé na recusa da construção da barragem.
Quanto à preservação da tradição comunitária em extinção, os antropólogos e historiadores fizeram um trabalho notável no museu etnográfico de Vilarinho das Furnas. O tempo esvai-se, célere, e não se compadece com arcaísmos que apenas são motivo de comprazimento para quem se apega tanto ao passado. A melhor forma de perdurar a tradição comunitária de Vilarinho das Furnas é o legado que o museu deixa a quem o visita. É, também, a melhor homenagem às sucessivas gerações de Vilarinho das Furnas que mantiveram viva a tradição comunitária até onde foi possível.
18.6.04
Scolari e Vitorino: unidos pelo mesmo destino
Começo pelo futebol, que os dias que correm só estão sintonizados para o que a populaça convencionou chamar “desporto-rei”. A selecção portuguesa lá ganhou aos russos, que jogaram metade do tempo com menos um – ainda que isso não se fizesse notar com visibilidade, tal o nervosismo que continua a atarantar os bravos lusos que se acagaçam assim que entram nos novos estádios e se colocam perante uma plateia sequiosa de êxitos. O país futebolístico, os treinadores de bancada e os comentadores de ocasião foram unânimes na reacção à estratégia de Scolari: o homem terá deixado de carregar o epíteto de burro, porque a sua consciência lá o convenceu que teria que pôr um onze inicial composto pela coluna vertebral do famoso FC Porto.
Como tantos profetas tinham anunciado com antecedência, se a equipa das quinas fosse feita por metade FC Porto era meio caminho andado para a vitória. Scolari deixou de ser teimoso. E com a teimosia derrubada, imediatamente deixou de transportar as orelhas de burro que os detractores lhe tinham colado como imagem de marca. Agora ouve-se à boca pequena, pelos cantos da cidade, um povo azul e branco finalmente orgulhoso. Perguntam, ufanos, uns aos outros: “então, gostaste da vitória de Portogal?” Reparem, Portogal, numa sapiente reconstrução do nome do país, como se ele se desprendesse do malfadado complexo centralista do Terreiro do Paço em virtude dos ventos de liberdade que sopram da Torre do Dragão e do Estádio com o respectivo nome.
Mudando para a política, nos últimos dias têm regressado as notícias que ventilam a possibilidade de António Vitorino ser nomeado para a presidência da Comissão Europeia. O governo de Durão Barroso, no cumprimento de um indeclinável dever patriótico, anunciou que se iria esforçar por levar Vitorino à presidência da Comissão. Os socialistas cá do burgo não perderam a oportunidade para exigir do governo que faça os possíveis e os impossíveis para que Vitorino chegue ao desejado cargo. Até Soares, o patriarca, veio dissertar sobre o tema. Dizendo que na impossibilidade de colocar Vitorino na presidência da Comissão, o governo da coligação PSD-CDS deveria reconduzir este socialista como representante português na Comissão.
Vou dar o devido desconto às palavras esclerosadas do patriarca. Estou mesmo a vê-lo noutro cenário: governo do PS, comissário português de outro quadrante político; estou mesmo a ver o patriarca (e os demais socialistas) a defenderem a continuidade do comissário do outro partido, que apensar de ser muito competente teria cometido o pecado de não ter o cartão de sócio do partido da rosa. Destino fatal: a não recondução como comissário, preterido que seria por um boy ansioso pelo lugar em Bruxelas. Aqui, como em tantas coisas, “olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”.
Qual é a convergência entre os dois casos? É o afã com que certas pessoas se esforçam por levar todos os demais ao reconhecimento de que as suas opiniões é que estão certas e são incontestáveis. Os fanáticos portistas – aqueles que ouvi em tempos a vaticinarem a derrota para a selecção de Scolari, como vingança das afrontas ao intocável FC Porto – estão agora apaziguados com Scolari. E exigem do país que se preste vassalagem indirecta ao FC Porto, agora que a selecção é meio FC Porto. Os sucessos da equipa nacional são o prolongamento da campanha vitoriosa da agremiação que tanto veneram. Resta saber se os insucessos também serão interpretados da mesma forma…
No caso político, os inefáveis socialistas pressionam o governo a prolongar o job do boy socialista que está na Comissão. Independentemente do mérito de Vitorino, os camaradas do PS esquecem-se de três aspectos importantes. Primeiro, que as hipóteses de Vitorino ser presidente da Comissão não são reais. Segundo, que em nenhum país com direito apenas a um comissário ele é do partido da oposição, quando é chegado o momento de compor uma nova Comissão Europeia. Terceiro, que eles próprios, socialistas, não conseguiam resistir à tentação de indicar alguém da respectiva família política se fossem eles a ocupar a cadeira do poder.
Tal como no exemplo da selecção nacional, também aqui vemos o PS a tentar forçar o governo (e o país) ao reconhecimento público do mérito de um dos seus, como se os socialistas estivessem acima da média em termos de competência. Ou como se a escolha de Vitorino para a presidência da Comissão fosse um imperativo patriótico (no que constitui a negação absoluta do espírito inerente à União Europeia). Eis como o PS quer, através deste dossier, que um país inteiro se curve perante Vitorino – que é como quem diz, indirectamente se curve ao PS.
Na parte que me toca, não dou para nenhum dos peditórios.
Como tantos profetas tinham anunciado com antecedência, se a equipa das quinas fosse feita por metade FC Porto era meio caminho andado para a vitória. Scolari deixou de ser teimoso. E com a teimosia derrubada, imediatamente deixou de transportar as orelhas de burro que os detractores lhe tinham colado como imagem de marca. Agora ouve-se à boca pequena, pelos cantos da cidade, um povo azul e branco finalmente orgulhoso. Perguntam, ufanos, uns aos outros: “então, gostaste da vitória de Portogal?” Reparem, Portogal, numa sapiente reconstrução do nome do país, como se ele se desprendesse do malfadado complexo centralista do Terreiro do Paço em virtude dos ventos de liberdade que sopram da Torre do Dragão e do Estádio com o respectivo nome.
Mudando para a política, nos últimos dias têm regressado as notícias que ventilam a possibilidade de António Vitorino ser nomeado para a presidência da Comissão Europeia. O governo de Durão Barroso, no cumprimento de um indeclinável dever patriótico, anunciou que se iria esforçar por levar Vitorino à presidência da Comissão. Os socialistas cá do burgo não perderam a oportunidade para exigir do governo que faça os possíveis e os impossíveis para que Vitorino chegue ao desejado cargo. Até Soares, o patriarca, veio dissertar sobre o tema. Dizendo que na impossibilidade de colocar Vitorino na presidência da Comissão, o governo da coligação PSD-CDS deveria reconduzir este socialista como representante português na Comissão.
Vou dar o devido desconto às palavras esclerosadas do patriarca. Estou mesmo a vê-lo noutro cenário: governo do PS, comissário português de outro quadrante político; estou mesmo a ver o patriarca (e os demais socialistas) a defenderem a continuidade do comissário do outro partido, que apensar de ser muito competente teria cometido o pecado de não ter o cartão de sócio do partido da rosa. Destino fatal: a não recondução como comissário, preterido que seria por um boy ansioso pelo lugar em Bruxelas. Aqui, como em tantas coisas, “olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”.
Qual é a convergência entre os dois casos? É o afã com que certas pessoas se esforçam por levar todos os demais ao reconhecimento de que as suas opiniões é que estão certas e são incontestáveis. Os fanáticos portistas – aqueles que ouvi em tempos a vaticinarem a derrota para a selecção de Scolari, como vingança das afrontas ao intocável FC Porto – estão agora apaziguados com Scolari. E exigem do país que se preste vassalagem indirecta ao FC Porto, agora que a selecção é meio FC Porto. Os sucessos da equipa nacional são o prolongamento da campanha vitoriosa da agremiação que tanto veneram. Resta saber se os insucessos também serão interpretados da mesma forma…
No caso político, os inefáveis socialistas pressionam o governo a prolongar o job do boy socialista que está na Comissão. Independentemente do mérito de Vitorino, os camaradas do PS esquecem-se de três aspectos importantes. Primeiro, que as hipóteses de Vitorino ser presidente da Comissão não são reais. Segundo, que em nenhum país com direito apenas a um comissário ele é do partido da oposição, quando é chegado o momento de compor uma nova Comissão Europeia. Terceiro, que eles próprios, socialistas, não conseguiam resistir à tentação de indicar alguém da respectiva família política se fossem eles a ocupar a cadeira do poder.
Tal como no exemplo da selecção nacional, também aqui vemos o PS a tentar forçar o governo (e o país) ao reconhecimento público do mérito de um dos seus, como se os socialistas estivessem acima da média em termos de competência. Ou como se a escolha de Vitorino para a presidência da Comissão fosse um imperativo patriótico (no que constitui a negação absoluta do espírito inerente à União Europeia). Eis como o PS quer, através deste dossier, que um país inteiro se curve perante Vitorino – que é como quem diz, indirectamente se curve ao PS.
Na parte que me toca, não dou para nenhum dos peditórios.
17.6.04
A sanha dos diminutivos, ou a propensão para um país “pequenino”
Ao longo da vida deparamos constantemente com diminutivos. Seja nos nomes, seja nas palavras com que lidamos no dia a dia, os diminutivos são presença constante. É o António que se transforma em Toni, o Francisco que passa a ser o Chico, a Anabela que é conhecida como Belinha. Pela manhã tomamos o cafezinho retemperador. Quando vamos ao restaurante o empregado pergunta-nos se queremos um pudinzinho de sobremesa. À tarde entramos numa repartição pública e perguntam-nos se trazemos o papelinho para levantar o documento de que necessitamos. E damos beijinhos.
À partida, pergunto-me se esta propensão para os diminutivos é uma exibição da tendência natural para o carinho que habita dentro de cada um de nós, ou se se trata de um sentir generalizado de pequenez. Na primeira hipótese, transformamos as palavras para lhes dar uma conotação mais afectiva. Talvez seja por isso que transformamos os beijos em beijinhos. Mas, curiosamente, não fazemos o mesmo com o caloroso abraço que enviamos aos amigos. Aqui o abraço mantém-se fiel à sua etimologia, não passa por uma metamorfose semântica. Nunca ouvimos ninguém mandar um abracinho a um amigo – até porque aqui o abracinho teria um sentido diferente, como se fosse um abraço em ponto pequeno, uma expressão de menor afectividade pelo amigo que se cumprimenta.
Também pode fazer algum sentido que os nomes das pessoas levem com diminutivos como expressão de familiaridade, logo de carinho. Quando alguém chama pela Aninhas é decerto uma pessoa que a conhece de perto, o que a autoriza a dar este tratamento mais pessoal. Transpira a afectividade que leva o nome Ana a aparecer como Aninhas. Para os amigos e família, Aninhas, para os outros Ana, simplesmente Ana. Assim se marca a diferença, como se fosse uma porta que franqueia a entrada apenas aos que têm o passe da familiaridade para a tratar como Aninhas.
Onde creio não haver dúvidas da ausência desta conotação afectiva é nas palavras correntes, naquelas em que o seu emprego não tem qualquer dimensão emocional. Um café não tem afectividade. Pode ser essencial para nos manter acordados durante o dia, mas não tem qualquer traço de afectividade. Então porque ouvimos tantas vezes pessoas a pedirem um cafezinho ao empregado de mesa? O mesmo se diga da cervejinha, da camisinha, da bolinha, do chapéuzinho, da cenourinha, das batatinhas, etc.
Quando ouço profusamente estas palavras na sua versão diminutiva, interrogo-me acerca das motivações desta maleita nacional, enraizada em gerações diferentes, que cruza transversalmente a população independentemente de idade, classe social e habilitações académicas. A única resposta que encontro não é simpática. Usamos os diminutivos porque somos um país “pequenino” (para ir na mesma onda dos diminutivos). E somos um país pequenino porque temos um povo que gosta de se apoucar e de resvalar para a mesquinhez, que se deixa enredar em rodriguinhos desnecessários. Perdemos tempo com o óbvio, passamos ao lado do que é essencial – talvez por sabermos que o essencial transporta até nós a dificuldade que obriga ao esforço que tanto custa.
É este o espírito que nos leva ao estigma da pancadinha nas costas como solução para todos os males – nem que sejam soluções absurdas, carregadas de facilitismo, longe de soluções racionais. Se somos um povo pequenino, fautores de um país pequenino, seria de estranhar se a sanha dos diminutivos não abundasse de norte a sul que nem uma praga de gafanhotos que consome a língua portuguesa num esgar de deturpação.
À partida, pergunto-me se esta propensão para os diminutivos é uma exibição da tendência natural para o carinho que habita dentro de cada um de nós, ou se se trata de um sentir generalizado de pequenez. Na primeira hipótese, transformamos as palavras para lhes dar uma conotação mais afectiva. Talvez seja por isso que transformamos os beijos em beijinhos. Mas, curiosamente, não fazemos o mesmo com o caloroso abraço que enviamos aos amigos. Aqui o abraço mantém-se fiel à sua etimologia, não passa por uma metamorfose semântica. Nunca ouvimos ninguém mandar um abracinho a um amigo – até porque aqui o abracinho teria um sentido diferente, como se fosse um abraço em ponto pequeno, uma expressão de menor afectividade pelo amigo que se cumprimenta.
Também pode fazer algum sentido que os nomes das pessoas levem com diminutivos como expressão de familiaridade, logo de carinho. Quando alguém chama pela Aninhas é decerto uma pessoa que a conhece de perto, o que a autoriza a dar este tratamento mais pessoal. Transpira a afectividade que leva o nome Ana a aparecer como Aninhas. Para os amigos e família, Aninhas, para os outros Ana, simplesmente Ana. Assim se marca a diferença, como se fosse uma porta que franqueia a entrada apenas aos que têm o passe da familiaridade para a tratar como Aninhas.
Onde creio não haver dúvidas da ausência desta conotação afectiva é nas palavras correntes, naquelas em que o seu emprego não tem qualquer dimensão emocional. Um café não tem afectividade. Pode ser essencial para nos manter acordados durante o dia, mas não tem qualquer traço de afectividade. Então porque ouvimos tantas vezes pessoas a pedirem um cafezinho ao empregado de mesa? O mesmo se diga da cervejinha, da camisinha, da bolinha, do chapéuzinho, da cenourinha, das batatinhas, etc.
Quando ouço profusamente estas palavras na sua versão diminutiva, interrogo-me acerca das motivações desta maleita nacional, enraizada em gerações diferentes, que cruza transversalmente a população independentemente de idade, classe social e habilitações académicas. A única resposta que encontro não é simpática. Usamos os diminutivos porque somos um país “pequenino” (para ir na mesma onda dos diminutivos). E somos um país pequenino porque temos um povo que gosta de se apoucar e de resvalar para a mesquinhez, que se deixa enredar em rodriguinhos desnecessários. Perdemos tempo com o óbvio, passamos ao lado do que é essencial – talvez por sabermos que o essencial transporta até nós a dificuldade que obriga ao esforço que tanto custa.
É este o espírito que nos leva ao estigma da pancadinha nas costas como solução para todos os males – nem que sejam soluções absurdas, carregadas de facilitismo, longe de soluções racionais. Se somos um povo pequenino, fautores de um país pequenino, seria de estranhar se a sanha dos diminutivos não abundasse de norte a sul que nem uma praga de gafanhotos que consome a língua portuguesa num esgar de deturpação.
16.6.04
Zangam-se as comadres, descobrem-se as verdades
Era uma vez um presidente de câmara. Daqueles que se tem perpetuado no poder, um dos dinossauros da vida autárquica nacional. Um simples senhor, operário, sem grandes qualificações académicas. Mas que conseguiu subir a pulso na vida política, sabe-se lá recorrendo a que artes diabólicas, convencendo barões partidários e formando clientelas locais que o foram sustentando no poder. Um presidente da câmara que transpira desonestidade por todos os poros. Quando fala, quando se emociona em encenações bem maquinadas para comover (e convencer) fiéis seguidores e almas menos crentes, não engana: tudo soa a falso.
A personagem, lídimo representante da classe política, alimentou ambições. O seu município era pequeno demais para essas ambições. O alvo passava a ser nacional: ele queria ser ministro. E o seu partido, depois de dez anos de jejum, lá ganhou as eleições. Esfregou as mãos de contentamento e pensou com os seus botões: é chegado o momento de dar o salto. Os planos saíram furados. Não conseguiu chegar a ministro. Na dança das cadeiras e das pessoas que se punham em bicos de pés para arranjar um lugar de destaque, os barões do partido decidiram sacrificar as ambições da nossa personagem. O máximo que lhe arranjaram foi a sinecura de secretário de Estado.
Ao projectar o seu exílio dourado na capital do país, o autarca teve que preparar o caminho para a sucessão. Faz parte das personalidades que cultivam o ego, que o massajam ao mais elevado expoente, que se consideram a única pessoa imprescindível, uma espécie de timoneiro. Na sua ausência, o caos. Para o evitar, havia que tratar cuidadosamente da sucessão. Um delfim foi escolhido. Um jovem promissor, com uma imagem que reunia as características que faltavam à nossa personagem, que o impediam de ser um político imaculado: formação universitária, bem-falante, imagem cuidada, juventude a rodos, enfim, uma imagem de renovação que era necessária para revitalizar um município que começava a estar cansado da omnipresença do autarca patriarca.
O delfim foi fazendo o seu tirocínio como vice-presidente. Foi estando na sombra do senhor todo-poderoso. Com a passagem do tempo, e sobretudo com a antecipação de que o senhor seria ministeriável, o sucessor foi conquistando protagonismo. A sucessão estava a ser preparada para que o município não ficasse à deriva. Lá chegou o dia em que, um pouco contrariado, o ex-autarca tomou posse como membro do governo.
O delfim ascendia a presidente da câmara. Despontava um aprendiz do mestre que agora estava no governo. Com os mesmos tiques, com a mesmo verborreia, sem mudar uma vírgula na prepotência com que os assuntos autárquicos eram conduzidos, acobertado pela inevitável maioria absoluta. Tratando os opositores com a mesma arrogância que tresandava à intolerância típica de quem cultiva as regras da democracia apenas na teoria, mas vagamente na prática.
O mestre cansou-se de ser “apenas” secretário de Estado. Terá concluído que tinha mais protagonismo, mais poder, enquanto autarca. Demitiu-se e reassumiu o lugar de presidente da câmara, para infelicidade do aspirante que se tentava emancipar da tutela paternalista de quem o lançou para a ribalta. Voltava a ser apenas o delfim, depois de ter gozado os prazeres efémeros do estrelato. Não tardou a que os dois senhores entrassem em rota de colisão. Deixaram de se falar, e começou uma guerra surda que os levou a estar de costas voltadas, a encabeçarem listas diferentes para os órgãos concelhios do seu partido.
A corda foi-se esticando e rebentou numa campanha eleitoral. Quando ambos lutavam pelo protagonismo de aparecerem, perante as câmaras da televisão, de braço dado com o candidato do seu partido, os respectivos apoiantes chegaram a vias de facto. Aqueles que terão (mesmo?) sido amigos no passado trocaram acusações e insultos. O caldo estava entornado. Agora o delfim acusa o seu mestre de despotismo.
Espera-se que o partido de que eles fazem parte não se esquive ao apuramento de responsabilidades. Para não deixar passar incólume este exemplo degradante de fazer política, que trouxe à superfície a manifestação do execrável caciquismo que preenche o mapa político de uma ponta à outra. Também seria desejável que o delfim concretizasse as suas acusações, que não se ficasse por uma anódina acusação de despotismo. Talvez não tenha coragem para ir mais longe. Os rabos-de-palha que prendem as duas personagens devem ser tão densos que não interessa mexer muito com o passado. A melhor estratégia será não fazer muito barulho. Para que, tempo passado, tudo fique como está.
A personagem, lídimo representante da classe política, alimentou ambições. O seu município era pequeno demais para essas ambições. O alvo passava a ser nacional: ele queria ser ministro. E o seu partido, depois de dez anos de jejum, lá ganhou as eleições. Esfregou as mãos de contentamento e pensou com os seus botões: é chegado o momento de dar o salto. Os planos saíram furados. Não conseguiu chegar a ministro. Na dança das cadeiras e das pessoas que se punham em bicos de pés para arranjar um lugar de destaque, os barões do partido decidiram sacrificar as ambições da nossa personagem. O máximo que lhe arranjaram foi a sinecura de secretário de Estado.
Ao projectar o seu exílio dourado na capital do país, o autarca teve que preparar o caminho para a sucessão. Faz parte das personalidades que cultivam o ego, que o massajam ao mais elevado expoente, que se consideram a única pessoa imprescindível, uma espécie de timoneiro. Na sua ausência, o caos. Para o evitar, havia que tratar cuidadosamente da sucessão. Um delfim foi escolhido. Um jovem promissor, com uma imagem que reunia as características que faltavam à nossa personagem, que o impediam de ser um político imaculado: formação universitária, bem-falante, imagem cuidada, juventude a rodos, enfim, uma imagem de renovação que era necessária para revitalizar um município que começava a estar cansado da omnipresença do autarca patriarca.
O delfim foi fazendo o seu tirocínio como vice-presidente. Foi estando na sombra do senhor todo-poderoso. Com a passagem do tempo, e sobretudo com a antecipação de que o senhor seria ministeriável, o sucessor foi conquistando protagonismo. A sucessão estava a ser preparada para que o município não ficasse à deriva. Lá chegou o dia em que, um pouco contrariado, o ex-autarca tomou posse como membro do governo.
O delfim ascendia a presidente da câmara. Despontava um aprendiz do mestre que agora estava no governo. Com os mesmos tiques, com a mesmo verborreia, sem mudar uma vírgula na prepotência com que os assuntos autárquicos eram conduzidos, acobertado pela inevitável maioria absoluta. Tratando os opositores com a mesma arrogância que tresandava à intolerância típica de quem cultiva as regras da democracia apenas na teoria, mas vagamente na prática.
O mestre cansou-se de ser “apenas” secretário de Estado. Terá concluído que tinha mais protagonismo, mais poder, enquanto autarca. Demitiu-se e reassumiu o lugar de presidente da câmara, para infelicidade do aspirante que se tentava emancipar da tutela paternalista de quem o lançou para a ribalta. Voltava a ser apenas o delfim, depois de ter gozado os prazeres efémeros do estrelato. Não tardou a que os dois senhores entrassem em rota de colisão. Deixaram de se falar, e começou uma guerra surda que os levou a estar de costas voltadas, a encabeçarem listas diferentes para os órgãos concelhios do seu partido.
A corda foi-se esticando e rebentou numa campanha eleitoral. Quando ambos lutavam pelo protagonismo de aparecerem, perante as câmaras da televisão, de braço dado com o candidato do seu partido, os respectivos apoiantes chegaram a vias de facto. Aqueles que terão (mesmo?) sido amigos no passado trocaram acusações e insultos. O caldo estava entornado. Agora o delfim acusa o seu mestre de despotismo.
Espera-se que o partido de que eles fazem parte não se esquive ao apuramento de responsabilidades. Para não deixar passar incólume este exemplo degradante de fazer política, que trouxe à superfície a manifestação do execrável caciquismo que preenche o mapa político de uma ponta à outra. Também seria desejável que o delfim concretizasse as suas acusações, que não se ficasse por uma anódina acusação de despotismo. Talvez não tenha coragem para ir mais longe. Os rabos-de-palha que prendem as duas personagens devem ser tão densos que não interessa mexer muito com o passado. A melhor estratégia será não fazer muito barulho. Para que, tempo passado, tudo fique como está.
15.6.04
Mais sobre as eleições europeias
Nas poucas imagens que (felizmente) vi sobre o rescaldo das eleições para o Parlamento Europeu, apreciei o ar vitorioso de Ferro Rodrigues. Ele bem estava necessitado de uma retumbante vitória eleitoral, depois da travessia do deserto motivada por sucessivos tiros no pé. Na face de Ferro Rodrigues notava-se um contraste de sentimentos: orgulho pela “vitória histórica” (como se a abstenção de quase dois terços não contasse para nada…), mas também cansaço, quem sabe se devido à descompressão por uma vitória que tinha todas as condições para ocorrer mas que, com este PS, não se podia dar como certa.
Nas declarações produzidas ao país, as “palavras sábias” do líder do PS tiveram como verdadeiro destinatário o primeiro-ministro. Disse que estas eleições tinham sido um sinal bem claro do eleitorado. Um sinal de que o governo deve equacionar as suas políticas e mudá-las.
Antes de avançar para as propostas (sem conteúdo) do líder socialista, apenas uma nota de perplexidade. Será verdade que Ferro Rodrigues ambiciona ser o próximo primeiro-ministro, na habitual rotação entre os partidos do bloco central? Se essa é a sua ambição, como compreender que esteja tão preocupado com a sobrevivência política do actual primeiro-ministro (enquanto detentor do cargo)? Se o timoneiro dos socialistas avisa o primeiro-ministro que deve mudar as suas políticas para não voltar a ser penalizado pelos eleitores, adivinha-se o que sucederá a Ferro Rodrigues se Durão Barroso fizer uma inflexão que vá ao encontro das supostas preferências dos eleitores. Nessa altura, estes voltarão a votar no PSD (com ou sem coligação) e lá vão as ambições de Ferro Rodrigues à vida. Estranha sina a deste político, que não pára de surpreender pela inabilidade!
Inebriado pelos louros da vitória, o secretário-geral do PS reclama do governo uma mudança de política económica e das “políticas sociais”. Como intróito: será legítimo fazer esta inferência? Afinal, estas eleições tinham como objectivo eleger deputados para o Parlamento Europeu. Como aceitar que destas eleições se tirem ilações sobre penalizações ao governo em funções? Será honesto concluir que o comportamento dos eleitores (todos? Uma maioria? Que maioria?) deve ser interpretado como uma penalização ao governo? E, já agora, descontando a conveniência de tal interpretação para um partido carente de se reencontrar consigo mesmo (e com as vitórias eleitorais), não ficará a sua responsabilidade atingida por uma postura anti-pedagógica, ao confundir o eleitorado por tirar ilações internas de eleições europeias?
Quando Ferro Rodrigues exige uma mudança de política económica, estará a sugerir que se abandone a política de rigor orçamental? Estará a reclamar a necessidade de voltar aos tempos de indisciplina orçamental, copiando o mau exemplo da França e da Alemanha? O perigoso desta proposta é o de regressar a uma política orçamental irresponsável, que adia a resolução dos problemas para o futuro, sem computar os efeitos perversos de longo prazo da acumulação de défices orçamentais e de endividamento público.
Por outro lado, o líder do PS reivindica uma mudança nas “políticas sociais”. Como propostas concretas não foram adiantadas, fico sem saber o que é desejado pelos socialistas. Serão políticas sociais ao estilo das postas em prática pelo seu camarada Schröder, chanceler alemão? Aí Ferro Rodrigues deveria ser cauteloso para analisar toda a envolvente, e não apenas o que mais lhe convém, enviesando a mensagem e enganando os eleitores desprevenidos. Porque essas “políticas sociais” que os seus camaradas alemães (coma ajuda dos inefáveis verdes) têm praticado foram, também elas, amplamente derrotadas nas urnas no passado domingo.
A crer na lógica utilizada por Ferro Rodrigues (a penalização do governo de Durão Barroso), esta é a única conclusão que se pode retirar dos resultados das eleições na Alemanha. O que vem contra as suas propostas de “políticas sociais” mais generosas. Com outra agravante: a riqueza da Alemanha, bem superior à de Portugal, pode dar-se ao luxo de sustentar tais “políticas sociais” activas. Tal não será o caso de Portugal – sob pena de nos afundarmos ainda mais na comparação com os nossos parceiros da União Europeia.
Nas declarações produzidas ao país, as “palavras sábias” do líder do PS tiveram como verdadeiro destinatário o primeiro-ministro. Disse que estas eleições tinham sido um sinal bem claro do eleitorado. Um sinal de que o governo deve equacionar as suas políticas e mudá-las.
Antes de avançar para as propostas (sem conteúdo) do líder socialista, apenas uma nota de perplexidade. Será verdade que Ferro Rodrigues ambiciona ser o próximo primeiro-ministro, na habitual rotação entre os partidos do bloco central? Se essa é a sua ambição, como compreender que esteja tão preocupado com a sobrevivência política do actual primeiro-ministro (enquanto detentor do cargo)? Se o timoneiro dos socialistas avisa o primeiro-ministro que deve mudar as suas políticas para não voltar a ser penalizado pelos eleitores, adivinha-se o que sucederá a Ferro Rodrigues se Durão Barroso fizer uma inflexão que vá ao encontro das supostas preferências dos eleitores. Nessa altura, estes voltarão a votar no PSD (com ou sem coligação) e lá vão as ambições de Ferro Rodrigues à vida. Estranha sina a deste político, que não pára de surpreender pela inabilidade!
Inebriado pelos louros da vitória, o secretário-geral do PS reclama do governo uma mudança de política económica e das “políticas sociais”. Como intróito: será legítimo fazer esta inferência? Afinal, estas eleições tinham como objectivo eleger deputados para o Parlamento Europeu. Como aceitar que destas eleições se tirem ilações sobre penalizações ao governo em funções? Será honesto concluir que o comportamento dos eleitores (todos? Uma maioria? Que maioria?) deve ser interpretado como uma penalização ao governo? E, já agora, descontando a conveniência de tal interpretação para um partido carente de se reencontrar consigo mesmo (e com as vitórias eleitorais), não ficará a sua responsabilidade atingida por uma postura anti-pedagógica, ao confundir o eleitorado por tirar ilações internas de eleições europeias?
Quando Ferro Rodrigues exige uma mudança de política económica, estará a sugerir que se abandone a política de rigor orçamental? Estará a reclamar a necessidade de voltar aos tempos de indisciplina orçamental, copiando o mau exemplo da França e da Alemanha? O perigoso desta proposta é o de regressar a uma política orçamental irresponsável, que adia a resolução dos problemas para o futuro, sem computar os efeitos perversos de longo prazo da acumulação de défices orçamentais e de endividamento público.
Por outro lado, o líder do PS reivindica uma mudança nas “políticas sociais”. Como propostas concretas não foram adiantadas, fico sem saber o que é desejado pelos socialistas. Serão políticas sociais ao estilo das postas em prática pelo seu camarada Schröder, chanceler alemão? Aí Ferro Rodrigues deveria ser cauteloso para analisar toda a envolvente, e não apenas o que mais lhe convém, enviesando a mensagem e enganando os eleitores desprevenidos. Porque essas “políticas sociais” que os seus camaradas alemães (coma ajuda dos inefáveis verdes) têm praticado foram, também elas, amplamente derrotadas nas urnas no passado domingo.
A crer na lógica utilizada por Ferro Rodrigues (a penalização do governo de Durão Barroso), esta é a única conclusão que se pode retirar dos resultados das eleições na Alemanha. O que vem contra as suas propostas de “políticas sociais” mais generosas. Com outra agravante: a riqueza da Alemanha, bem superior à de Portugal, pode dar-se ao luxo de sustentar tais “políticas sociais” activas. Tal não será o caso de Portugal – sob pena de nos afundarmos ainda mais na comparação com os nossos parceiros da União Europeia.
14.6.04
No rescaldo das eleições
Ontem, encerradas as salas de voto, iniciados os programas de informação sobre as eleições, quis evitar uma auto-punição desnecessária. Fugi a sete pés dos programas televisivos que já instalaram uma rotina nas noites eleitorais. Com os comentários feitos por painéis de comentadores que são membros dos principais partidos, como se isso fosse um exercício de imparcialidade e de rigor de análise política. Com o desfile de outros analistas que, na maior parte das vezes, querem passar um manto de imparcialidade política mas deixam-se levar pelas suas simpatias ideológicas ou conveniências momentâneas.
Nesta noite apenas sintonizei por breves momentos um dos canais, logo às 20 horas, para ter uma primeira ideia das sondagens à boca das urnas. Para saber qual a taxa de abstenção prevista e as primeiras projecções de resultados. Este é um acto curioso para quem se quer alhear do fenómeno político nacional. Tentando ficar à margem do que se passa na política, não consigo afastar-me dos resultados de um escrutínio. Trata-se de uma simples curiosidade científica. Própria de um cientista político interessado no fenómeno eleitoral, tentando avançar explicações para as variações de resultados entre as forças políticas. Sem me enredar em politiquices espúrias, mais próprias de quem se deixa mergulhar na luta partidária e perde o norte, enganando sistematicamente o eleitorado.
Dos despojos das eleições restam algumas ilações. A mais importante é pouco valorizada pela comunicação social “de referência” (aquela que vive em intimidade com as forças políticas dominantes) e quase esquecida pelos partidos concorrentes. Refiro-me à taxa de abstenção, que subiu aos 61% – a grande vencedora do acto eleitoral. Nenhum partido conseguiu obter tantos votos quanto o número de pessoas que se abstiveram, reiterando uma constante das últimas eleições, sejam elas para a presidência da república, para a assembleia da república ou para as autarquias.
Nem todos os partidos deixaram passar em branco a elevada abstenção. A coligação do governo, com um resultado muito aquém do que era esperado pelo PSD e pelo CDS-PP, não demorou a desvalorizar os resultados das eleições devido à taxa de abstenção recorde. Claro que o fez para minorar as consequências negativas da derrota sofrida nas urnas. Como também é inquestionável que se estes partidos tivessem saído vitoriosos das eleições o seu discurso seria diferente, desvalorizando a elevada abstenção.
O resultado das eleições acaba por penalizar mais o presidente da república do que a coligação que está no governo. Não digo que não haja ilações a retirar por parte dos partidos que sustentam a coligação governamental. A conjugação da elevada abstenção com a diferença de votos entre o PS e a coligação do governo leva a uma leitura de sentido único: muitos eleitores decidiram penalizar o governo, manifestando alguma insatisfação pela condução da política governamental. O que também não é surpreendente, atendendo a que estamos a meio da legislatura.
Como acontece em qualquer parte do mundo onde exista uma cuidadosa gestão do calendário político, a primeira metade da legislatura está reservada para as políticas impopulares que constroem o espaço de manobra para políticas mais populistas que arrepiam caminho a um resultado eleitoral mais simpático para as forças que estão no governo. Basta ver o que se passou noutros Estados membros, para concluir que numa larga maioria deles o partido mais votado não foi o que está no governo. Tomando como amostra os maiores Estados membros, apenas na Espanha o partido mais votado é o que está no governo – na Alemanha, na França, na Itália e no Reino Unido, foi a oposição que saiu vencedora das eleições.
É neste contexto que Sampaio é o maior derrotado das eleições. Por ter dramatizado à exaustão o apelo ao voto, tentando convencer os eleitores da necessidade em ir às urnas devido à importância da União Europeia para o destino de Portugal. Dramatização que foi acentuada para forma abrupta e trágica como a campanha eleitoral foi interrompida. Em momentos destes, com a tendência para a comiseração que é inata ao povo português, pensava-se que a taxa de participação fosse mais elevada. Quem mais se empenhou em combater a abstenção é, pois, o grande derrotado das eleições.
Da parte das esquerdas, nem um comentário à fraca participação nas eleições. Para quem ganha eleições nunca é conveniente interpretar o significado de uma abstenção que representa um número superior aos votantes nessa força partidária. Fazê-lo retira brilho à vitória eleitoral. Contudo insiste-se no pecadilho que atravessa a generalidade das democracias contemporâneas: desvalorizar o significado da abstenção, passar ao lado das suas possíveis interpretações. Aprofundar este debate será pouco cómodo para os políticos profissionais. Poderá por em evidência como grande parte do eleitorado não se revê na actuação política, como se tem acentuado o fosso entre os representados e os representantes – em suma, uma crise no sistema de representação que é uma pedra de toque para a crise de legitimidade das democracias contemporâneas. Será sensato ignorar que quase dois terços dos portugueses não foram às urnas?
Uma derradeira ilação que retiro destas eleições (e que tem estado ausente das análises que li até agora). Na extrema-esquerda, os resultados encerram uma surpresa: o Bloco de Esquerda ficou-se por metade da votação do PCP, quando as sondagens reveladas nas semanas anteriores às eleições anunciavam uma proximidade entre os dois partidos. Afinal a vitória do Bloco de Esquerda, anunciada com entusiasmo pelos próprios e pela comunicação social sempre ávida em prestar vassalagem a este partido, deve ser relativizada.
Nesta noite apenas sintonizei por breves momentos um dos canais, logo às 20 horas, para ter uma primeira ideia das sondagens à boca das urnas. Para saber qual a taxa de abstenção prevista e as primeiras projecções de resultados. Este é um acto curioso para quem se quer alhear do fenómeno político nacional. Tentando ficar à margem do que se passa na política, não consigo afastar-me dos resultados de um escrutínio. Trata-se de uma simples curiosidade científica. Própria de um cientista político interessado no fenómeno eleitoral, tentando avançar explicações para as variações de resultados entre as forças políticas. Sem me enredar em politiquices espúrias, mais próprias de quem se deixa mergulhar na luta partidária e perde o norte, enganando sistematicamente o eleitorado.
Dos despojos das eleições restam algumas ilações. A mais importante é pouco valorizada pela comunicação social “de referência” (aquela que vive em intimidade com as forças políticas dominantes) e quase esquecida pelos partidos concorrentes. Refiro-me à taxa de abstenção, que subiu aos 61% – a grande vencedora do acto eleitoral. Nenhum partido conseguiu obter tantos votos quanto o número de pessoas que se abstiveram, reiterando uma constante das últimas eleições, sejam elas para a presidência da república, para a assembleia da república ou para as autarquias.
Nem todos os partidos deixaram passar em branco a elevada abstenção. A coligação do governo, com um resultado muito aquém do que era esperado pelo PSD e pelo CDS-PP, não demorou a desvalorizar os resultados das eleições devido à taxa de abstenção recorde. Claro que o fez para minorar as consequências negativas da derrota sofrida nas urnas. Como também é inquestionável que se estes partidos tivessem saído vitoriosos das eleições o seu discurso seria diferente, desvalorizando a elevada abstenção.
O resultado das eleições acaba por penalizar mais o presidente da república do que a coligação que está no governo. Não digo que não haja ilações a retirar por parte dos partidos que sustentam a coligação governamental. A conjugação da elevada abstenção com a diferença de votos entre o PS e a coligação do governo leva a uma leitura de sentido único: muitos eleitores decidiram penalizar o governo, manifestando alguma insatisfação pela condução da política governamental. O que também não é surpreendente, atendendo a que estamos a meio da legislatura.
Como acontece em qualquer parte do mundo onde exista uma cuidadosa gestão do calendário político, a primeira metade da legislatura está reservada para as políticas impopulares que constroem o espaço de manobra para políticas mais populistas que arrepiam caminho a um resultado eleitoral mais simpático para as forças que estão no governo. Basta ver o que se passou noutros Estados membros, para concluir que numa larga maioria deles o partido mais votado não foi o que está no governo. Tomando como amostra os maiores Estados membros, apenas na Espanha o partido mais votado é o que está no governo – na Alemanha, na França, na Itália e no Reino Unido, foi a oposição que saiu vencedora das eleições.
É neste contexto que Sampaio é o maior derrotado das eleições. Por ter dramatizado à exaustão o apelo ao voto, tentando convencer os eleitores da necessidade em ir às urnas devido à importância da União Europeia para o destino de Portugal. Dramatização que foi acentuada para forma abrupta e trágica como a campanha eleitoral foi interrompida. Em momentos destes, com a tendência para a comiseração que é inata ao povo português, pensava-se que a taxa de participação fosse mais elevada. Quem mais se empenhou em combater a abstenção é, pois, o grande derrotado das eleições.
Da parte das esquerdas, nem um comentário à fraca participação nas eleições. Para quem ganha eleições nunca é conveniente interpretar o significado de uma abstenção que representa um número superior aos votantes nessa força partidária. Fazê-lo retira brilho à vitória eleitoral. Contudo insiste-se no pecadilho que atravessa a generalidade das democracias contemporâneas: desvalorizar o significado da abstenção, passar ao lado das suas possíveis interpretações. Aprofundar este debate será pouco cómodo para os políticos profissionais. Poderá por em evidência como grande parte do eleitorado não se revê na actuação política, como se tem acentuado o fosso entre os representados e os representantes – em suma, uma crise no sistema de representação que é uma pedra de toque para a crise de legitimidade das democracias contemporâneas. Será sensato ignorar que quase dois terços dos portugueses não foram às urnas?
Uma derradeira ilação que retiro destas eleições (e que tem estado ausente das análises que li até agora). Na extrema-esquerda, os resultados encerram uma surpresa: o Bloco de Esquerda ficou-se por metade da votação do PCP, quando as sondagens reveladas nas semanas anteriores às eleições anunciavam uma proximidade entre os dois partidos. Afinal a vitória do Bloco de Esquerda, anunciada com entusiasmo pelos próprios e pela comunicação social sempre ávida em prestar vassalagem a este partido, deve ser relativizada.
11.6.04
O que fazer nas eleições para o Parlamento Europeu?
O boletim meteorológico anuncia um tempo excelente para a praia. O fim-de-semana tem quatro dias, em virtude do feriado de quinta-feira. Muita gente deve estar para fora, a banhos ou em descanso. O panorama não é excitante, adensando-se as nuvens negras sobre a taxa de abstenção nas eleições de domingo. Repetindo uma tendência que se verifica em todos os Estados membros da União: as pessoas sentem menos incentivos para votar quando está em causa a composição do Parlamento Europeu.
A minha reposta à pergunta que surge no título é a abstenção. Faço-o por vários motivos. Em primeiro lugar, o valor destas eleições. Os que me conhecem de perto sabem do meu entusiasmo pela União Europeia. Sou um “euro-entusiasta”. Esta seria uma razão poderosa para me deslocar à mesa de voto. Mais ainda: ensino aos meus alunos que o conhecimento da União Europeia é um dever de cidadania. Porque cada vez mais o destino do país passa pelo que é decidido na União Europeia. Sendo o Parlamento Europeu a instituição emblemática de um certo sentido de cidadania europeia, faria sentido votar nestas eleições. Até porque é a única forma que os cidadãos dos Estados membros têm de interferir na governação da União Europeia.
A minha opção pela abstenção poderá encerrar uma contradição. Todavia não há nenhuma contradição. O que se pede aos eleitores é uma falácia. Os que sublinham a importância do voto para a assembleia parlamentar europeia estão a passar ao lado da questão que mais interessa debater: quem toma as decisões na União Europeia? A resposta não se encontra no Parlamento Europeu. Quem comanda os cordelinhos da União Europeia são o Conselho Europeu, o Conselho de Ministros e a Comissão Europeia. Os cidadãos de cada Estado membro são representados pelos respectivos governantes que têm assento no Conselho Europeu e no Conselho de Ministros. Os poderes do Parlamento Europeu são uma vacuidade – apesar de formalmente ter vindo a conquistar mais poder, na prática não os consegue exercer.
Por estes motivos não faz sentido o apelo ontem lançado, com o habitual dramatismo, pelo presidente da república. Apelando ao voto, lembrando aos portugueses que esta é a única forma para fazerem ouvir a sua voz no processo de decisão da União Europeia. Como se o Parlamento Europeu tivesse os mesmos poderes legislativos dos parlamentos nacionais. Como não é possível fazer essa comparação (ou, fazendo-a, ela é desfavorável ao Parlamento Europeu), eis como fica exposta a debilidade do argumento presidencial. Somos convocados a eleger uma assembleia parlamentar que é uma simples figura de estilo, desapossada de verdadeiros poderes. Pretende-se apenas cumprir uma formalidade, como se a legitimidade democrática fosse alcançada apenas com o respeito dessas formalidades.
A segunda razão é de ordem estrutural, não valendo a pena (neste momento) explorá-la em detalhe: a minha descrença no processo político, nas personagens que habitam a paisagem política, nas artimanhas deploráveis que inundam o quotidiano da política nacional.
Em terceiro lugar, ainda que equacionasse votar (estou a pensar em manifestar uma escolha, e não votar em branco ou anular o voto), também não vejo de que forma as pessoas que compõem as listas, e as ideias que (não) têm sido debatidas, são um incentivo para depositar o voto em alguém. Como é costume, estas eleições servem para lavar a roupa suja da política doméstica. A União Europeia passa ao lado do debate, como se os destinos da União não fossem vitais para o futuro do país.
Continuamos arreigados aos vícios do passado. Políticos carreiristas a enganar o eleitorado, a deslocar o debate do plano onde ele se devia realizar, utilizando uma retórica que desvia as atenções para o acessório. Intervenientes que continuam a ser responsáveis pela desinformação do eleitorado, contribuindo para votações enviesadas.
Não é com o calibre destas personagens que me sinto motivado a escolher uma lista. Se sou muito exigente comigo mesmo, como posso optar pelo “mal menor” e escolher alguém em quem não me revejo, por simplesmente se localizar menos distanciado das minhas posições?
A minha reposta à pergunta que surge no título é a abstenção. Faço-o por vários motivos. Em primeiro lugar, o valor destas eleições. Os que me conhecem de perto sabem do meu entusiasmo pela União Europeia. Sou um “euro-entusiasta”. Esta seria uma razão poderosa para me deslocar à mesa de voto. Mais ainda: ensino aos meus alunos que o conhecimento da União Europeia é um dever de cidadania. Porque cada vez mais o destino do país passa pelo que é decidido na União Europeia. Sendo o Parlamento Europeu a instituição emblemática de um certo sentido de cidadania europeia, faria sentido votar nestas eleições. Até porque é a única forma que os cidadãos dos Estados membros têm de interferir na governação da União Europeia.
A minha opção pela abstenção poderá encerrar uma contradição. Todavia não há nenhuma contradição. O que se pede aos eleitores é uma falácia. Os que sublinham a importância do voto para a assembleia parlamentar europeia estão a passar ao lado da questão que mais interessa debater: quem toma as decisões na União Europeia? A resposta não se encontra no Parlamento Europeu. Quem comanda os cordelinhos da União Europeia são o Conselho Europeu, o Conselho de Ministros e a Comissão Europeia. Os cidadãos de cada Estado membro são representados pelos respectivos governantes que têm assento no Conselho Europeu e no Conselho de Ministros. Os poderes do Parlamento Europeu são uma vacuidade – apesar de formalmente ter vindo a conquistar mais poder, na prática não os consegue exercer.
Por estes motivos não faz sentido o apelo ontem lançado, com o habitual dramatismo, pelo presidente da república. Apelando ao voto, lembrando aos portugueses que esta é a única forma para fazerem ouvir a sua voz no processo de decisão da União Europeia. Como se o Parlamento Europeu tivesse os mesmos poderes legislativos dos parlamentos nacionais. Como não é possível fazer essa comparação (ou, fazendo-a, ela é desfavorável ao Parlamento Europeu), eis como fica exposta a debilidade do argumento presidencial. Somos convocados a eleger uma assembleia parlamentar que é uma simples figura de estilo, desapossada de verdadeiros poderes. Pretende-se apenas cumprir uma formalidade, como se a legitimidade democrática fosse alcançada apenas com o respeito dessas formalidades.
A segunda razão é de ordem estrutural, não valendo a pena (neste momento) explorá-la em detalhe: a minha descrença no processo político, nas personagens que habitam a paisagem política, nas artimanhas deploráveis que inundam o quotidiano da política nacional.
Em terceiro lugar, ainda que equacionasse votar (estou a pensar em manifestar uma escolha, e não votar em branco ou anular o voto), também não vejo de que forma as pessoas que compõem as listas, e as ideias que (não) têm sido debatidas, são um incentivo para depositar o voto em alguém. Como é costume, estas eleições servem para lavar a roupa suja da política doméstica. A União Europeia passa ao lado do debate, como se os destinos da União não fossem vitais para o futuro do país.
Continuamos arreigados aos vícios do passado. Políticos carreiristas a enganar o eleitorado, a deslocar o debate do plano onde ele se devia realizar, utilizando uma retórica que desvia as atenções para o acessório. Intervenientes que continuam a ser responsáveis pela desinformação do eleitorado, contribuindo para votações enviesadas.
Não é com o calibre destas personagens que me sinto motivado a escolher uma lista. Se sou muito exigente comigo mesmo, como posso optar pelo “mal menor” e escolher alguém em quem não me revejo, por simplesmente se localizar menos distanciado das minhas posições?
10.6.04
As bandeiras nacionais ondulando, orgulhosas, nos beirais das janelas
Em dia de Portugal, falar sobre a bandeira nacional. A Fundação Luís Figo e o Continente espalharam pelos hipermercados desta empresa o que convencionaram chamar “Pack Portugal”: uma embalagem contendo a bandeira nacional e um cachecol de apoio à “selecção das quinas”. Tudo pelo preço simbólico de um euro. Para acentuar o simbolismo da iniciativa, com o propósito de reconciliar os portugueses com um símbolo representativo da nacionalidade – a sua bandeira.
Entretanto, o treinador da selecção nacional ajudou à festa que se começou a instalar. No início do estágio dos bravos guerreiros que hão-de ser glorificados ou crucificados (sem lugar a meio termo), pediu o apoio dos portugueses. Que materializassem esse apoio através de uma bandeira em cada janela, em cada automóvel.
O apelo de Scolari tocou fundo em muitos cidadãos. Pelo que me é dado a ver ao circular pelas ruas da cidade, são inúmeras as casas que desfraldam orgulhosamente a bandeira nacional, sinalizando o seu apoio à “equipa de todos nós”, revelando um fervor patriótico que andava esquecido numa letargia bem própria do torpor que se apoderou do país. Os taxistas (esse paradigma do bom gosto) dão o mote aos restantes automobilistas. É ver os táxis que calcorreiam as ruas da cidade ostentando a bandeira verde e vermelha na haste de um pequeno mastro.
Este revigoramento nacionalista é bem o espelho do país de exageros que somos. Como passamos, com um simples estalar dos dedos, do oito para o oitenta. Como somos um país amorfo, descrente nas suas possibilidades, cáustico para connosco mesmos, e subitamente damos uma volta de 180 graus para exaltar as virtudes do sentir português. Já para não mencionar as razões absurdas que convocam este nacionalismo – uma vez mais o futebol, como se fosse o futebol o detonador da identidade nacional.
Em bom rigor, não creio que haja lugar a grandes ilações a propósito do que se está a passar. Já vi escrito algures que este movimento espontâneo dos portugueses é comovente, sinónimo de um sentir positivo que pode retirar o país das ruas da amargura por onde tem andado mergulhado. Como também já vi escritas críticas pelo nacionalismo bacoco em que o movimento popular se traduz. Se é verdade que o acontecimento não me provoca nenhum laço de identificação nacional, se é verdadeiro também que não me agrada a coisa pelo seu lado “estético”, o mais importante é não retirar do episódio grandes consequências.
O acontecimento deve ser tratado com indiferença. Por um lado, porque o que se está a enaltecer é um mero símbolo da nacionalidade, uma bandeira que nos tempos que correm já não assume a relevância identitária de outrora. É um símbolo, não mais do que isso. Com as alterações que a sociedade vem sofrendo, o papel dos símbolos tem-se esvaziado. Um símbolo não tem a conotação arreigada de tempos idos, não convoca as mesmas sensações de identificação, de luta para defender os valores representados por esses símbolo. Não estou a imaginar senão uma ínfima percentagem dos cidadãos que hasteiam a bandeira nas suas janelas a dar a vida se, por absurda hipótese, “a nação” estivesse em causa.
Por outro lado, como país de exageros que somos, a bandeira está por agora imóvel, exibindo um cauteloso orgulho. Espera-se que os bravos da equipa nacional se comportem decentemente – o que, pelas expectativas geradas, significa não menos do que vencer o campeonato. Como país de exageros que somos, antecipo um de dois cenários. Ou as bandeiras são retiradas, envergonhadas, devido à má campanha da equipa nacional, com o coro de protestos que se seguirá e a ferida mortal na auto-estima nacional. Ou elas deixarão de estar estáticas e serão desfraldadas ao vento em mais uma comemoração embriagada de um feito nacional proporcionado por essa coisa tão relevante para o destino de Portugal chamada futebol.
Entretanto, o treinador da selecção nacional ajudou à festa que se começou a instalar. No início do estágio dos bravos guerreiros que hão-de ser glorificados ou crucificados (sem lugar a meio termo), pediu o apoio dos portugueses. Que materializassem esse apoio através de uma bandeira em cada janela, em cada automóvel.
O apelo de Scolari tocou fundo em muitos cidadãos. Pelo que me é dado a ver ao circular pelas ruas da cidade, são inúmeras as casas que desfraldam orgulhosamente a bandeira nacional, sinalizando o seu apoio à “equipa de todos nós”, revelando um fervor patriótico que andava esquecido numa letargia bem própria do torpor que se apoderou do país. Os taxistas (esse paradigma do bom gosto) dão o mote aos restantes automobilistas. É ver os táxis que calcorreiam as ruas da cidade ostentando a bandeira verde e vermelha na haste de um pequeno mastro.
Este revigoramento nacionalista é bem o espelho do país de exageros que somos. Como passamos, com um simples estalar dos dedos, do oito para o oitenta. Como somos um país amorfo, descrente nas suas possibilidades, cáustico para connosco mesmos, e subitamente damos uma volta de 180 graus para exaltar as virtudes do sentir português. Já para não mencionar as razões absurdas que convocam este nacionalismo – uma vez mais o futebol, como se fosse o futebol o detonador da identidade nacional.
Em bom rigor, não creio que haja lugar a grandes ilações a propósito do que se está a passar. Já vi escrito algures que este movimento espontâneo dos portugueses é comovente, sinónimo de um sentir positivo que pode retirar o país das ruas da amargura por onde tem andado mergulhado. Como também já vi escritas críticas pelo nacionalismo bacoco em que o movimento popular se traduz. Se é verdade que o acontecimento não me provoca nenhum laço de identificação nacional, se é verdadeiro também que não me agrada a coisa pelo seu lado “estético”, o mais importante é não retirar do episódio grandes consequências.
O acontecimento deve ser tratado com indiferença. Por um lado, porque o que se está a enaltecer é um mero símbolo da nacionalidade, uma bandeira que nos tempos que correm já não assume a relevância identitária de outrora. É um símbolo, não mais do que isso. Com as alterações que a sociedade vem sofrendo, o papel dos símbolos tem-se esvaziado. Um símbolo não tem a conotação arreigada de tempos idos, não convoca as mesmas sensações de identificação, de luta para defender os valores representados por esses símbolo. Não estou a imaginar senão uma ínfima percentagem dos cidadãos que hasteiam a bandeira nas suas janelas a dar a vida se, por absurda hipótese, “a nação” estivesse em causa.
Por outro lado, como país de exageros que somos, a bandeira está por agora imóvel, exibindo um cauteloso orgulho. Espera-se que os bravos da equipa nacional se comportem decentemente – o que, pelas expectativas geradas, significa não menos do que vencer o campeonato. Como país de exageros que somos, antecipo um de dois cenários. Ou as bandeiras são retiradas, envergonhadas, devido à má campanha da equipa nacional, com o coro de protestos que se seguirá e a ferida mortal na auto-estima nacional. Ou elas deixarão de estar estáticas e serão desfraldadas ao vento em mais uma comemoração embriagada de um feito nacional proporcionado por essa coisa tão relevante para o destino de Portugal chamada futebol.
9.6.04
O Papa, aliado dos movimentos anti-globalização?
Na recente visita que fez à Suiça, o Papa tocou num assunto que me deixou intrigado. Numa das suas homilias, João Paulo II discorreu sobre os males que atormentam o mundo contemporâneo. Para minha surpresa, o Papa alertou os crentes para os “perigos do consumismo”. Ainda estou para saber se esta afirmação foi retirada do contexto pela comunicação social que fez a síntese do discurso. Não é coisa que não aconteça com vulgaridade. Vou partir do pressuposto que a inserção contextual da afirmação papal é a que se infere das suas palavras – um ataque à sociedade do consumo.
Ao ouvir estas palavras dou comigo a pensar se a igreja católica não é a mais recente aliada da causa anti-globalização. Estes movimentos destilam todo o seu ódio contra a sociedade capitalista em que vivemos. Os males do mundo resumem-se às excrescências motivadas pelo dinheiro, por uma sociedade em que tudo gira em torno do vil metal. É o capitalismo que ocasiona as desigualdades, a fome, a pobreza de tantos contra a riqueza de poucos, a guerra. Para esta gente, onde há um mal que flagele o mundo, o capitalismo é invariavelmente o culpado.
Como é natural, a sociedade consumista que cresce a olhos vistos é também alvo dos movimentos anti-globalização. Acusam as empresas multinacionais de fomentarem o consumismo entre cidadãos que caem na esparrela, que são seduzidos pelas artes da publicidade, que se deixam levar no engodo de um bem-estar fictício associado ao consumo desenfreado.
Quando há reuniões de importantes organizações internacionais estes grupelhos deslocam-se religiosamente até ao local e desfilam num cortejo onde os protestos e a violência organizada andam de mão dada. Tudo o que seja representação do deplorável consumismo que engorda as empresas capitalistas é alvo da ira dos manifestantes. Que sem respeito pela propriedade alheia decidem vazar todo o seu ódio contra as instalações das empresas multinacionais, destruindo tudo à passagem, que nem um furacão medicinal que destrua para depois trazer a mirífica harmonia.
Quando o Papa dedica umas palavras da sua homilia aos perigos do consumismo está a descair para uma retórica que pouco se distingue dos movimentos anti ou alter-globalização. Também João Paulo II exibe a sua preocupação contra os pretensos exageros de consumismo, imagem fiel de um capitalismo que (ao que parece) se está a encaminhar para excessos que podem ser suicidários. Não acredito que a mensagem papal tenha predicados terapêuticos para salvar o regime capitalista dos ataques soezes e cada vez mais bem organizados dos movimentos que se lhe opõem.
Parece-me, pela retórica utilizada, que a igreja manifesta a sua preocupação contra o materialismo de uma sociedade que depende dos prazeres do consumismo. João Paulo II presta um serviço inestimável à causa anti-globalização. Está a servir de porta-estandarte das narrativas que se insurgem contra os excessos do capitalismo. Só falta vermos padres, bispos e arcebispos, trajando a rigor, a enfileirar ao lado dos manifestantes numa fauna diversificada, provocando a polícia e sempre estando prestes a transformar as “manifestações pacíficas” em actos de intensa violência.
Tudo isto acaba por trazer à superfície um cinismo indisfarçável. A igreja, a tão rica igreja, tão dependente dos prazeres proporcionados pelo vil metal, agora indirectamente aliada daqueles movimentos que desprezam e combatem o capitalismo. O capitalismo que permitiu à igreja enriquecer ao longo da sua existência. Em que ficamos, João Paulo II?
Ao ouvir estas palavras dou comigo a pensar se a igreja católica não é a mais recente aliada da causa anti-globalização. Estes movimentos destilam todo o seu ódio contra a sociedade capitalista em que vivemos. Os males do mundo resumem-se às excrescências motivadas pelo dinheiro, por uma sociedade em que tudo gira em torno do vil metal. É o capitalismo que ocasiona as desigualdades, a fome, a pobreza de tantos contra a riqueza de poucos, a guerra. Para esta gente, onde há um mal que flagele o mundo, o capitalismo é invariavelmente o culpado.
Como é natural, a sociedade consumista que cresce a olhos vistos é também alvo dos movimentos anti-globalização. Acusam as empresas multinacionais de fomentarem o consumismo entre cidadãos que caem na esparrela, que são seduzidos pelas artes da publicidade, que se deixam levar no engodo de um bem-estar fictício associado ao consumo desenfreado.
Quando há reuniões de importantes organizações internacionais estes grupelhos deslocam-se religiosamente até ao local e desfilam num cortejo onde os protestos e a violência organizada andam de mão dada. Tudo o que seja representação do deplorável consumismo que engorda as empresas capitalistas é alvo da ira dos manifestantes. Que sem respeito pela propriedade alheia decidem vazar todo o seu ódio contra as instalações das empresas multinacionais, destruindo tudo à passagem, que nem um furacão medicinal que destrua para depois trazer a mirífica harmonia.
Quando o Papa dedica umas palavras da sua homilia aos perigos do consumismo está a descair para uma retórica que pouco se distingue dos movimentos anti ou alter-globalização. Também João Paulo II exibe a sua preocupação contra os pretensos exageros de consumismo, imagem fiel de um capitalismo que (ao que parece) se está a encaminhar para excessos que podem ser suicidários. Não acredito que a mensagem papal tenha predicados terapêuticos para salvar o regime capitalista dos ataques soezes e cada vez mais bem organizados dos movimentos que se lhe opõem.
Parece-me, pela retórica utilizada, que a igreja manifesta a sua preocupação contra o materialismo de uma sociedade que depende dos prazeres do consumismo. João Paulo II presta um serviço inestimável à causa anti-globalização. Está a servir de porta-estandarte das narrativas que se insurgem contra os excessos do capitalismo. Só falta vermos padres, bispos e arcebispos, trajando a rigor, a enfileirar ao lado dos manifestantes numa fauna diversificada, provocando a polícia e sempre estando prestes a transformar as “manifestações pacíficas” em actos de intensa violência.
Tudo isto acaba por trazer à superfície um cinismo indisfarçável. A igreja, a tão rica igreja, tão dependente dos prazeres proporcionados pelo vil metal, agora indirectamente aliada daqueles movimentos que desprezam e combatem o capitalismo. O capitalismo que permitiu à igreja enriquecer ao longo da sua existência. Em que ficamos, João Paulo II?
8.6.04
Para os adeptos da criminologia
Dos bancos da universidade recordo-me de um professor fazer alusão a uma escola que tem uma posição fora do comum em relação ao fenómeno da criminalidade. Esta escola tem o nome de criminologia. Examina as condições sociológicas que rodeiam os criminosos, tentando encontrar explicações para os actos que eles praticam em violação de direitos de propriedade alheios, quando não em ofensa à integridade física e à vida de outras pessoas.
Para a escola criminologista há sempre atenuantes que dão um tratamento condescendente aos que escorregam para a delinquência. Acredita-se na bondade intrínseca do ser humano. Quando alguém descai para práticas criminosas, essa é uma tendência inata pelo contágio social. São os marginalizados pela sociedade, os que tiveram a má sorte de não possuírem uma educação de acordo com os padrões “normais”, os que se sentem empurrados para delinquir como recurso inevitável para a sobrevivência – são estes que se refugiam na criminalidade, tábua de salvação necessária para a subsistência.
Os partidários da criminologia encontram sempre explicações plausíveis para um determinado acto criminoso. O que os leva a propor uma postura mais flexível da sociedade. Afastam-se de uma reacção punitiva tradicional, sendo contrários à proliferação de penas de prisão duras. Sugerem, como alternativa, a necessidade da sociedade ser mais tolerante com os delinquentes em relação aos quais há atenuantes que se desmultiplicam em mil e uma circunstâncias desculpabilizantes. Não são favoráveis à punição através da prisão, por não ser a melhor solução para trazer os marginais de volta à sociedade. Por estar mais preocupada com a reinserção social dos criminosos, a escola criminologista propõe medidas alternativas à prisão – quando tantas vezes propõe mesmo a não culpabilização por actos de “delinquência menor”.
Entre estes arroubos de lirismo, os criminologistas esquecem-se das vítimas dos actos de delinquência. Parecem ignorar que a liberdade destas pessoas é atentada por quem resvala para a criminalidade. Colocados entre interesses conflituantes, a sua balança inclina-se para a defesa de quem (na sua opinião) não tem outra solução senão recorrer à delinquência. Perante o conflito de interesses ignoram as vítimas. Como se fossem elas, enquanto membros de uma sociedade imperfeita (que, possivelmente, está na origem dos comportamentos de delinquência), o móbil da criminalidade. Espezinham-se os direitos das vítimas como se fossem elas as culpadas indirectas pela desdita que lhes bate à porta.
Gostava que os defensores da criminologia se imaginassem a sair do trabalho, no final de uma jornada cansativa. Chegavam ao carro, estacionado algures nas imediações. Assaltados pela surpresa de verem a lingueta da porta do condutor destravada, têm a reacção espontânea de se interrogarem se acaso não terão deixado a porta aberta. A dúvida é ceifada em poucos segundos. Entrados no carro, reparam que o auto-rádio foi furtado, como o testemunham os cabos da ligação que estão arrancados e que jazem, caóticos, em cima da alavanca da caixa de velocidades e do assento do lado direito. Imprevidentes, estes adeptos da criminologia tinham deixado a carteira dentro do porta-luvas. Contendo todos os documentos de identificação pessoal, os cartões bancários e umas quantas moedas. Talvez por serem ingénuos ao ponto de afagarem tanto o espírito dos candidatos a delinquentes, terão caído na ingenuidade de deixarem a carteira dentro do carro.
Imagino-os a contemplarem este cenário. Adivinho-os desolados. Adivinho-os a mandarem às urtigas as teorias que congeminam nos esconsos gabinetes que habitam, onde o contacto com o mundo real é tão próximo como o contacto físico que os astronautas têm com a terra quando estão em órbita. Suponho-os a vociferarem contra os assaltantes, lamentando o suor de um mês de trabalho que se esfumou nas mãos dos delinquentes que abandonaram o automóvel com a carteira e com o auto-rádio.
Interrogo-me se, nesta altura, os criminologistas vítimas deste assalto ainda teriam fôlego para manterem as suas ideias sobre a natureza do acto criminal.
Para a escola criminologista há sempre atenuantes que dão um tratamento condescendente aos que escorregam para a delinquência. Acredita-se na bondade intrínseca do ser humano. Quando alguém descai para práticas criminosas, essa é uma tendência inata pelo contágio social. São os marginalizados pela sociedade, os que tiveram a má sorte de não possuírem uma educação de acordo com os padrões “normais”, os que se sentem empurrados para delinquir como recurso inevitável para a sobrevivência – são estes que se refugiam na criminalidade, tábua de salvação necessária para a subsistência.
Os partidários da criminologia encontram sempre explicações plausíveis para um determinado acto criminoso. O que os leva a propor uma postura mais flexível da sociedade. Afastam-se de uma reacção punitiva tradicional, sendo contrários à proliferação de penas de prisão duras. Sugerem, como alternativa, a necessidade da sociedade ser mais tolerante com os delinquentes em relação aos quais há atenuantes que se desmultiplicam em mil e uma circunstâncias desculpabilizantes. Não são favoráveis à punição através da prisão, por não ser a melhor solução para trazer os marginais de volta à sociedade. Por estar mais preocupada com a reinserção social dos criminosos, a escola criminologista propõe medidas alternativas à prisão – quando tantas vezes propõe mesmo a não culpabilização por actos de “delinquência menor”.
Entre estes arroubos de lirismo, os criminologistas esquecem-se das vítimas dos actos de delinquência. Parecem ignorar que a liberdade destas pessoas é atentada por quem resvala para a criminalidade. Colocados entre interesses conflituantes, a sua balança inclina-se para a defesa de quem (na sua opinião) não tem outra solução senão recorrer à delinquência. Perante o conflito de interesses ignoram as vítimas. Como se fossem elas, enquanto membros de uma sociedade imperfeita (que, possivelmente, está na origem dos comportamentos de delinquência), o móbil da criminalidade. Espezinham-se os direitos das vítimas como se fossem elas as culpadas indirectas pela desdita que lhes bate à porta.
Gostava que os defensores da criminologia se imaginassem a sair do trabalho, no final de uma jornada cansativa. Chegavam ao carro, estacionado algures nas imediações. Assaltados pela surpresa de verem a lingueta da porta do condutor destravada, têm a reacção espontânea de se interrogarem se acaso não terão deixado a porta aberta. A dúvida é ceifada em poucos segundos. Entrados no carro, reparam que o auto-rádio foi furtado, como o testemunham os cabos da ligação que estão arrancados e que jazem, caóticos, em cima da alavanca da caixa de velocidades e do assento do lado direito. Imprevidentes, estes adeptos da criminologia tinham deixado a carteira dentro do porta-luvas. Contendo todos os documentos de identificação pessoal, os cartões bancários e umas quantas moedas. Talvez por serem ingénuos ao ponto de afagarem tanto o espírito dos candidatos a delinquentes, terão caído na ingenuidade de deixarem a carteira dentro do carro.
Imagino-os a contemplarem este cenário. Adivinho-os desolados. Adivinho-os a mandarem às urtigas as teorias que congeminam nos esconsos gabinetes que habitam, onde o contacto com o mundo real é tão próximo como o contacto físico que os astronautas têm com a terra quando estão em órbita. Suponho-os a vociferarem contra os assaltantes, lamentando o suor de um mês de trabalho que se esfumou nas mãos dos delinquentes que abandonaram o automóvel com a carteira e com o auto-rádio.
Interrogo-me se, nesta altura, os criminologistas vítimas deste assalto ainda teriam fôlego para manterem as suas ideias sobre a natureza do acto criminal.
7.6.04
O mal dos outros é a nossa redenção
Navegava pela Internet, na rotina matinal de frequentar as páginas de jornais que me põem ao corrente do que se passa no mundo. Uma das secções é a dos jornais desportivos. Ontem, o Jogo publicava um dossier esclarecedor. Diria mesmo que era um dossier pedagógico, com a clara intenção de enfatizar como o futebol nacional é um paraíso. O título era bem revelador da intenção: “Portugal não é excepção: “Apitos Dourados” espalhados por toda a Europa”. E tratava de desvelar os escândalos de arbitragem na República Checa, em Itália, na Bélgica, em Espanha, mesmo na Alemanha.
Apenas estranho que tenha passado tanto tempo sem que a tribo do futebol tenha reagido à acção de investigação judicial que buliu com um dos seus patriarcas. E que ameaça atirar para o lodaçal outra figuras gradas que têm passeado a sua ignomínia ao longo das últimas duas décadas, como se fossem figuras insuspeitas. Surpreende apenas a demora – ou nem tanto. Talvez não seja surpreendente, pois o hiato entre as detenções e interrogatórios e a publicação desta notícia pode representar uma manobra bem orquestrada para deixar assentar a poeira. Agora que as coisas estão mais calmas, é o momento ideal para começar a operação de branqueamento que prepara os cidadãos para mais do mesmo, para que tudo fique na mesma depois da ameaça de terramoto que abalou o meio. Quem sabe se a demissão dos directores da Polícia Judiciária responsáveis pelas investigações não seja um sinal revelador…
O episódio é sintomático da propensão para procurar no exterior casos de degradação para explicar – senão mesmo justificar – os males que varrem o país. É característico do nivelamento por baixo que percorre o país, como um comportamento congénito de que é difícil desprender. Quando há algo de mau que nos arruína, tranquilizamos a consciência se coisas idênticas também assolam outros países. E se se trata de países mais adiantados no estádio civilizacional, a aquietação dos espíritos nacionais é ainda mais profunda. Tentamos explicar os nossos males com os males dos outros, como se esta fosse a receita ideal para nos vermos livres desses males que exaurem energias. Pior ainda, tentamos justificar esses males com coisas idênticas que se passam em países que nos são próximos. Como quem diz, não estamos sozinhos nesses comportamentos censuráveis.
É lamentável esta tendência de ver nos males dos outros uma explicação para o mal que nos vai corroendo por dentro. É ainda mais preocupante que se tente justificar os nossos deslizes com os comportamentos alheios. Porque se trata de uma tábua de salvação, de um pretexto para lavar a face desses comportamentos ilícitos e imorais que nos vão enterrando, como sociedade, num lamaçal de onde é difícil encontrar uma saída. É por isto que se entende este afã de encontrar nos maus exemplos dos outros uma justificação para os nossos pecados. Como se esses males alheios fossem a desculpa para os pecadilhos éticos, para as ilegalidades que tantos recursos custam à economia nacional. Se existe nos outros países, porque não contemporizar no nosso?
E uma desdita bem conhecida. Procuramos sacudir a água do capote, afastar as nossas responsabilidades encontrando justificações em comportamentos alheios. E, com esta postura, o futuro há-de continuar adiado, na exacta medida da irresponsabilidade pessoal que pontua o dia a dia.
Apenas estranho que tenha passado tanto tempo sem que a tribo do futebol tenha reagido à acção de investigação judicial que buliu com um dos seus patriarcas. E que ameaça atirar para o lodaçal outra figuras gradas que têm passeado a sua ignomínia ao longo das últimas duas décadas, como se fossem figuras insuspeitas. Surpreende apenas a demora – ou nem tanto. Talvez não seja surpreendente, pois o hiato entre as detenções e interrogatórios e a publicação desta notícia pode representar uma manobra bem orquestrada para deixar assentar a poeira. Agora que as coisas estão mais calmas, é o momento ideal para começar a operação de branqueamento que prepara os cidadãos para mais do mesmo, para que tudo fique na mesma depois da ameaça de terramoto que abalou o meio. Quem sabe se a demissão dos directores da Polícia Judiciária responsáveis pelas investigações não seja um sinal revelador…
O episódio é sintomático da propensão para procurar no exterior casos de degradação para explicar – senão mesmo justificar – os males que varrem o país. É característico do nivelamento por baixo que percorre o país, como um comportamento congénito de que é difícil desprender. Quando há algo de mau que nos arruína, tranquilizamos a consciência se coisas idênticas também assolam outros países. E se se trata de países mais adiantados no estádio civilizacional, a aquietação dos espíritos nacionais é ainda mais profunda. Tentamos explicar os nossos males com os males dos outros, como se esta fosse a receita ideal para nos vermos livres desses males que exaurem energias. Pior ainda, tentamos justificar esses males com coisas idênticas que se passam em países que nos são próximos. Como quem diz, não estamos sozinhos nesses comportamentos censuráveis.
É lamentável esta tendência de ver nos males dos outros uma explicação para o mal que nos vai corroendo por dentro. É ainda mais preocupante que se tente justificar os nossos deslizes com os comportamentos alheios. Porque se trata de uma tábua de salvação, de um pretexto para lavar a face desses comportamentos ilícitos e imorais que nos vão enterrando, como sociedade, num lamaçal de onde é difícil encontrar uma saída. É por isto que se entende este afã de encontrar nos maus exemplos dos outros uma justificação para os nossos pecados. Como se esses males alheios fossem a desculpa para os pecadilhos éticos, para as ilegalidades que tantos recursos custam à economia nacional. Se existe nos outros países, porque não contemporizar no nosso?
E uma desdita bem conhecida. Procuramos sacudir a água do capote, afastar as nossas responsabilidades encontrando justificações em comportamentos alheios. E, com esta postura, o futuro há-de continuar adiado, na exacta medida da irresponsabilidade pessoal que pontua o dia a dia.
4.6.04
Ainda Mourinho, FC Porto e Liga dos Campeões
Já escrevi sobre isto na quinta-feira da semana anterior. Coincidiu com a mudança de template do blog, o que eliminou temporariamente a possibilidade de introduzir comentários. Não se pense que me queria esquivar às críticas por um escrito tão “politicamente incorrecto”.
Recebi do Miguel Sousa um e-mail que teria sido comentário caso este dispositivo estivesse disponível na altura. O texto desse e-mail é o seguinte:
“Oh meu! Alteraste no teu blog a possibilidade de resposta??? Logo hoje que eu ia desancar no teu texto...
Podes ter toda a razão, mas o que eu tiro deste Porto do Mourinho (e tu sabes que até nem sou portista) é algo de que este país precisa muito: eficácia! Resultados! Podem ser arrogantes, teimosos, parvos... mas perante a situação, resolvem-na! Ganham!
Isso é algo que falta ao nosso país. Queixamo-nos, somos os melhores, os "com mais jeito para tudo", mas os outros é que são eficazes. Este Porto contraria isso.”
Uma resposta telegráfica:
1. Não gosto do FC Porto, do Pinto da Costa, do Mourinho. É uma questão pessoal. Assumo que pode ter pouco de racional. Mas é assim que penso, não consigo fugir deste apelo vindo do interior. Não vou fazer de conta, nem engrossar a lista dos que apoiavam a façanha, num unanimismo nacional, só porque é de bom-tom ter este comportamento. Para o mal, assumo que preferia que o Mónaco ganhasse.
2. Defender a eficácia sem olhar aos meios é um método perigoso. Por este andar, estamos a defender que todos os meios justificam os fins. E, como correm abundantes suspeitas desde há largos anos, parece que a agremiação de que falamos é useira e vezeira em não olhar a meios para atingir as vitórias com que gosta de humilhar a concorrência. Se é este o caminho, prefiro a lógica das “vitórias morais”, o anátema do “perdemos mas saímos de cabeça erguida”. Ao menos ainda resta a consciência!
Recebi do Miguel Sousa um e-mail que teria sido comentário caso este dispositivo estivesse disponível na altura. O texto desse e-mail é o seguinte:
“Oh meu! Alteraste no teu blog a possibilidade de resposta??? Logo hoje que eu ia desancar no teu texto...
Podes ter toda a razão, mas o que eu tiro deste Porto do Mourinho (e tu sabes que até nem sou portista) é algo de que este país precisa muito: eficácia! Resultados! Podem ser arrogantes, teimosos, parvos... mas perante a situação, resolvem-na! Ganham!
Isso é algo que falta ao nosso país. Queixamo-nos, somos os melhores, os "com mais jeito para tudo", mas os outros é que são eficazes. Este Porto contraria isso.”
Uma resposta telegráfica:
1. Não gosto do FC Porto, do Pinto da Costa, do Mourinho. É uma questão pessoal. Assumo que pode ter pouco de racional. Mas é assim que penso, não consigo fugir deste apelo vindo do interior. Não vou fazer de conta, nem engrossar a lista dos que apoiavam a façanha, num unanimismo nacional, só porque é de bom-tom ter este comportamento. Para o mal, assumo que preferia que o Mónaco ganhasse.
2. Defender a eficácia sem olhar aos meios é um método perigoso. Por este andar, estamos a defender que todos os meios justificam os fins. E, como correm abundantes suspeitas desde há largos anos, parece que a agremiação de que falamos é useira e vezeira em não olhar a meios para atingir as vitórias com que gosta de humilhar a concorrência. Se é este o caminho, prefiro a lógica das “vitórias morais”, o anátema do “perdemos mas saímos de cabeça erguida”. Ao menos ainda resta a consciência!
Venezuela: um aprendiz de ditador e uma sociedade civil exemplar
Vi há pouco, num noticiário, que o colégio eleitoral da Venezuela aceitou uma petição para que se realize um referendo para caucionar ou reprovar a presidência de Hugo Chavez. Depois de muitas tropelias, de muitos actos de boicote protagonizados pelas forças policiais ao serviço deste aprendiz de ditador, parece que as regras da democracia teimam em funcionar num país que podia ser a próxima Cuba se apenas vingasse a vontade de Chavez.
Aceito de bom grado que as esquerdas bem pensantes destilem todo o seu ódio contra os regimes e as personalidades que não dançam ao som da mesma música. Que se insurjam contra os Estados Unidos, contra Israel, contra a Itália do magnata Bersluconi, agora também contra a Rússia de Putin numa perigosa deriva direitista. O que me intriga é a ausência de critério que liberta da crítica outros países onde a democracia não existe, onde não há eleições livres e plurais. Não consigo compreender a lógica de “dois pesos, duas medidas”, quando há outros países que têm lideranças autocráticas onde a tolerância foi banida, o culto de personalidade emerge, os opositores são impiedosamente perseguidos, os direitos, liberdades e garantias (em especial o direito a uma opinião livre) são cerceados. A Venezuela é um paradigma da actuação enviesada das esquerdas bem pensantes.
E, no entanto, pode-se lembrar que Chavez foi eleito por uma maioria de venezuelanos. É verdade. Logo, assenta-lhe legitimidade democrática. Mas não é menos verdadeiro que, após ter sido empossado, têm-se sucedido os atentados contra as regras democráticas que conferem aos partidos da oposição uma voz própria. Por vontade de Chavez, estes partidos já tinham sido silenciados. Por vontade de Chavez, só o seu partido existiria, num paraíso semelhante ao vivido em Cuba.
Foi Chavez que protagonizou um golpe constitucional, aprovando uma nova Constituição que limitou os direitos de participação política dos partidos da oposição. Esta golpada constitucional seria a etapa de transição para a “democracia perfeita” – aquela que não permitisse a existência de movimentos de oposição à inteligência iluminada de Chavez. Na sua pose patética, com tiques próprios dos ditadorzecos que esmeram o culto da personalidade e difundem, com oportunismo bem medido, a cartilha estafada do marxismo-leninismo na sua aplicação regional ao cosmos latino-americano, Chavez teima em espezinhar as vozes dos que ousam enfrentá-lo. É a antítese da tolerância que é tão propalada (mas pouco praticada) pelas esquerdas bem pensantes.
Diminuída a margem de actuação dos partidos políticos num parlamento fantoche, restam as ruas. As manifestações (espontâneas ou organizadas) que tantas vezes têm terminado em violência. Uma voz que fala bem alto, a voz de uma parte substancial da sociedade civil que não se revê nos métodos totalitários do aprendiz de ditador. Esta é a grande lição que a Venezuela nos lega. A lição de uma sociedade civil activa, participativa, que se recusa a calar a sua voz contra os atentados às liberdades que Chavez teima em perpetrar.
Neste sentido, os ventos vindos de Cuba são exemplares. São o estigma que os venezuelanos querem evitar, para não se sentirem asfixiados por um regime ditatorial que nega as liberdades individuais e privilegia as benesses de uma casta que se diz governar em nome do povo. Eis porque é bom que permaneçam, isoladas como excrescências, as Cubas deste mundo. Espelhos dos maus exemplos que devem ser evitados.
Aceito de bom grado que as esquerdas bem pensantes destilem todo o seu ódio contra os regimes e as personalidades que não dançam ao som da mesma música. Que se insurjam contra os Estados Unidos, contra Israel, contra a Itália do magnata Bersluconi, agora também contra a Rússia de Putin numa perigosa deriva direitista. O que me intriga é a ausência de critério que liberta da crítica outros países onde a democracia não existe, onde não há eleições livres e plurais. Não consigo compreender a lógica de “dois pesos, duas medidas”, quando há outros países que têm lideranças autocráticas onde a tolerância foi banida, o culto de personalidade emerge, os opositores são impiedosamente perseguidos, os direitos, liberdades e garantias (em especial o direito a uma opinião livre) são cerceados. A Venezuela é um paradigma da actuação enviesada das esquerdas bem pensantes.
E, no entanto, pode-se lembrar que Chavez foi eleito por uma maioria de venezuelanos. É verdade. Logo, assenta-lhe legitimidade democrática. Mas não é menos verdadeiro que, após ter sido empossado, têm-se sucedido os atentados contra as regras democráticas que conferem aos partidos da oposição uma voz própria. Por vontade de Chavez, estes partidos já tinham sido silenciados. Por vontade de Chavez, só o seu partido existiria, num paraíso semelhante ao vivido em Cuba.
Foi Chavez que protagonizou um golpe constitucional, aprovando uma nova Constituição que limitou os direitos de participação política dos partidos da oposição. Esta golpada constitucional seria a etapa de transição para a “democracia perfeita” – aquela que não permitisse a existência de movimentos de oposição à inteligência iluminada de Chavez. Na sua pose patética, com tiques próprios dos ditadorzecos que esmeram o culto da personalidade e difundem, com oportunismo bem medido, a cartilha estafada do marxismo-leninismo na sua aplicação regional ao cosmos latino-americano, Chavez teima em espezinhar as vozes dos que ousam enfrentá-lo. É a antítese da tolerância que é tão propalada (mas pouco praticada) pelas esquerdas bem pensantes.
Diminuída a margem de actuação dos partidos políticos num parlamento fantoche, restam as ruas. As manifestações (espontâneas ou organizadas) que tantas vezes têm terminado em violência. Uma voz que fala bem alto, a voz de uma parte substancial da sociedade civil que não se revê nos métodos totalitários do aprendiz de ditador. Esta é a grande lição que a Venezuela nos lega. A lição de uma sociedade civil activa, participativa, que se recusa a calar a sua voz contra os atentados às liberdades que Chavez teima em perpetrar.
Neste sentido, os ventos vindos de Cuba são exemplares. São o estigma que os venezuelanos querem evitar, para não se sentirem asfixiados por um regime ditatorial que nega as liberdades individuais e privilegia as benesses de uma casta que se diz governar em nome do povo. Eis porque é bom que permaneçam, isoladas como excrescências, as Cubas deste mundo. Espelhos dos maus exemplos que devem ser evitados.
3.6.04
A retórica política – da arte de enganar os eleitores
Andava por Madrid, durante a tarde do passado domingo, e ia dando de caras com a profusão de cartazes alusivos à campanha eleitoral para o Parlamento Europeu. O cartaz dos socialistas espanhóis aparecia divido em duas partes. Do lado esquerdo, a fotografia do cabeça de lista, Josep Borrell. Do lado direito, com o branco como pano de fundo, as palavras escritas a vermelho: “de vuelta a Europa”.
O slogan pode ser interpretado de duas maneiras. Se formos pela interpretação literal, olhando apenas às palavras que constam da mensagem e abstraindo do contexto em que elas são produzidas, a leitura não deixará muitas dúvidas. Quando se promete aos eleitores que votarem no PSOE que, com esse voto, os eleitos vão recolocar a Espanha no mapa europeu, a intenção é bem clara. Enfatiza-se que antes da mudança de governo a Espanha estava de costas voltadas para a União Europeia, e com o retorno dos socialistas ao poder deu-se a reconciliação.
Se nos apegarmos a uma interpretação ainda mais literal, apenas lendo o teor das palavras que constam do slogan, imagino um cidadão espanhol que tenha andado desatento a estas coisas da União Europeia a perguntar-se se por acaso a Espanha não terá saído da União e agora esteja novamente de regresso. Porque, afinal, o slogan promete que com os socialistas a Espanha está de volta à Europa!
Interessa fazer uma leitura que vá para além da interpretação literal. O exercício tem que abranger o contexto que explica a afirmação produzia – de que a Espanha está de volta à Europa. Para os conhecedores – e só para estes – a verdadeira leitura do slogan é outra. Oficialmente, existe a convicção de que o bloqueio à Constituição da União ficou-se a dever às intransigências dos governos da Espanha e da Polónia. Será neste contexto que se deve compreender o slogan dos socialistas. Eles estão dispostos a abdicar das resistências do governo de Aznar e que terão impedido a formação do consenso necessário para aprovar a Constituição da União Europeia.
O problema dos diferentes significados atribuídos a mensagens políticas deste calibre é o da difusão de sentidos que elas podem ter consoante os seus destinatários. Interrogo-me sobre a percentagem de espanhóis que tem a informação suficiente para interpretar a mensagem para além do seu significado meramente literal? Quantos estão em condições de perceber o que os socialistas verdadeiramente querem dizer com aquele slogan? Os estrategas que gizam a retórica política têm consciência da impreparação da maioria do eleitorado, mais ainda quando estão em causa matérias mais complexas como as que lidam com a União Europeia.
Conhecedores da falta de informação da maioria da população (que é, afinal, quem decide eleições), estes mestres da retórica política não hesitam na manipulação semântica para atingir os seus objectivos finais – ter mais votos do que as listas rivais. Nem que para isso atirem para o ar uma frase que contém uma mensagem incorrecta. A bem da verdade, para os muitos milhões de espanhóis que lêem aquele slogan, fica a impressão que a Espanha estava desavinda com a União Europeia, ou mesmo que tinha temporariamente saído dela. O que é uma inverdade.
Eis como os truques semânticos estão ao serviço dos partidos políticos para alcançar o objectivo supremo do voto. Nem que para isso seja necessário enganar o eleitorado. No que, em rigor, representa um comportamento bem típico de quem não olha a meios para atingir os fins. É este o processo genuíno de escolha dos representantes dos cidadãos?
O slogan pode ser interpretado de duas maneiras. Se formos pela interpretação literal, olhando apenas às palavras que constam da mensagem e abstraindo do contexto em que elas são produzidas, a leitura não deixará muitas dúvidas. Quando se promete aos eleitores que votarem no PSOE que, com esse voto, os eleitos vão recolocar a Espanha no mapa europeu, a intenção é bem clara. Enfatiza-se que antes da mudança de governo a Espanha estava de costas voltadas para a União Europeia, e com o retorno dos socialistas ao poder deu-se a reconciliação.
Se nos apegarmos a uma interpretação ainda mais literal, apenas lendo o teor das palavras que constam do slogan, imagino um cidadão espanhol que tenha andado desatento a estas coisas da União Europeia a perguntar-se se por acaso a Espanha não terá saído da União e agora esteja novamente de regresso. Porque, afinal, o slogan promete que com os socialistas a Espanha está de volta à Europa!
Interessa fazer uma leitura que vá para além da interpretação literal. O exercício tem que abranger o contexto que explica a afirmação produzia – de que a Espanha está de volta à Europa. Para os conhecedores – e só para estes – a verdadeira leitura do slogan é outra. Oficialmente, existe a convicção de que o bloqueio à Constituição da União ficou-se a dever às intransigências dos governos da Espanha e da Polónia. Será neste contexto que se deve compreender o slogan dos socialistas. Eles estão dispostos a abdicar das resistências do governo de Aznar e que terão impedido a formação do consenso necessário para aprovar a Constituição da União Europeia.
O problema dos diferentes significados atribuídos a mensagens políticas deste calibre é o da difusão de sentidos que elas podem ter consoante os seus destinatários. Interrogo-me sobre a percentagem de espanhóis que tem a informação suficiente para interpretar a mensagem para além do seu significado meramente literal? Quantos estão em condições de perceber o que os socialistas verdadeiramente querem dizer com aquele slogan? Os estrategas que gizam a retórica política têm consciência da impreparação da maioria do eleitorado, mais ainda quando estão em causa matérias mais complexas como as que lidam com a União Europeia.
Conhecedores da falta de informação da maioria da população (que é, afinal, quem decide eleições), estes mestres da retórica política não hesitam na manipulação semântica para atingir os seus objectivos finais – ter mais votos do que as listas rivais. Nem que para isso atirem para o ar uma frase que contém uma mensagem incorrecta. A bem da verdade, para os muitos milhões de espanhóis que lêem aquele slogan, fica a impressão que a Espanha estava desavinda com a União Europeia, ou mesmo que tinha temporariamente saído dela. O que é uma inverdade.
Eis como os truques semânticos estão ao serviço dos partidos políticos para alcançar o objectivo supremo do voto. Nem que para isso seja necessário enganar o eleitorado. No que, em rigor, representa um comportamento bem típico de quem não olha a meios para atingir os fins. É este o processo genuíno de escolha dos representantes dos cidadãos?
2.6.04
Sobre a maldade
Vinha no carro, ao fim do dia, com o rádio ligado. Entre publicidade e intercalares que anunciavam programas a passar em dias futuros, estava anestesiado para as palavras que ecoavam das colunas. Até ao momento em que fui despertado do torpor pela frase, em discurso directo, de um escritor angolano cuja entrevista estava agendada para o dia seguinte. O destaque da entrevista com este escritor angolano (que não retive o nome, ainda meio adormecido pelo som indiferenciado que o rádio ia debitando) foi esta frase: “devemos praticar o bem, mas também devemos, de vez em quando, fazer o mal. Para darmos mais valor ao bem que deve pautar a nossa conduta”.
Nunca tinha pensado sobre o assunto. O escritor sugeria uma postura que nega aquilo que somos para darmos mais valor aos princípios que orientam o nosso comportamento. Se somos intrinsecamente bons, devemos a espaços ter a tentação de resvalar para o mal (imagino para uma pequena maldade, ou para uma grande maldade?) para irmos ao fundo do poço e termos a certeza que é o bem que deve nortear o nosso comportamento.
O raciocínio parece contraditório. Se somos por natureza impelidos a fazer o bem, de cada vez que fazemos o mal estamos a negar a nossa essência. Mas mesmo neste sentido há o reconhecimento de que a essência humana não é a maldade. Mesmo quando é tentado pela maldade, o ser humano usa-a como instrumento para descobrir o que é a bondade. A ser verdadeira esta interpretação das palavras do escritor angolano, o mal é um mero instrumento que serve para encontrar o bem, para sublinhar as virtudes associadas à bondade. O mal tem que ser relativizado, é necessário desculpabilizá-lo sempre que ele é instrumental à bondade que anda arredia.
A defesa desta ideia tem as suas reticências. O escritor não explicou (pelo menos naquele excerto que escutei) se a maldade que devemos praticar, como exercício de “higiene mental”, se dirige aos outros ou se deve cingir a nós mesmos. Sim, porque podemos ir ao encontro de comportamentos que nos são prejudiciais – mesmo sabendo dos danos que deles resultam, nada é feito para evitar a recorrência desses comportamentos. Seria neste sentido que era sugerida a necessidade de convocar, de temos a tempos, a maldade? Ou seria no sentido de escolher o outro como destinatário da nossa maldade?
Se o outro é o destinatário da maldade, a ideia do escritor angolano parece encerrar uma contradição insanável. Como pressuposto, estou a imaginar aquelas pessoas que são conduzidas por um instinto de bondade. Como é possível aceitar que o caminho para a redenção, a escolha da bondade, dependa da maldade sobre outrem? Mesmo para um radical individualista, que reconheça que é em torno de cada indivíduo que o mundo gira, esta é uma ideia que causa repulsa. Porque um individualista não é um egoísta, ele sabe que o seu bem-estar depende de um comportamento que não prejudique intencionalmente o bem-estar dos outros. Dirigir a maldade contra outras pessoas como esteio do reencontro com a bondade contradiz a filosofia individualista.
A conduta que resvala para o mal tem outras incongruências. Quando é chegado o momento de fazer o mal? Quando se duvida do que é o bem? Mas nessa altura já não estará a pessoa a praticar, ainda que inconscientemente, o mal, prejudicando-se a si ou a outros? Noutra dimensão, se é necessário impor a maldade a outros, como se escolhem essas pessoas? Sobre pessoas conhecidas, sobre pessoas queridas, para que a essência da maldade seja mais purificada pelas consequências devastadoras ao ser imposta sobre pessoas que nos são próximas? Mas terão elas culpa pela nossa busca da bondade, será justo que elas sejam as cobaias do necessário reencontro com a bondade?
Nunca tinha pensado sobre o assunto. O escritor sugeria uma postura que nega aquilo que somos para darmos mais valor aos princípios que orientam o nosso comportamento. Se somos intrinsecamente bons, devemos a espaços ter a tentação de resvalar para o mal (imagino para uma pequena maldade, ou para uma grande maldade?) para irmos ao fundo do poço e termos a certeza que é o bem que deve nortear o nosso comportamento.
O raciocínio parece contraditório. Se somos por natureza impelidos a fazer o bem, de cada vez que fazemos o mal estamos a negar a nossa essência. Mas mesmo neste sentido há o reconhecimento de que a essência humana não é a maldade. Mesmo quando é tentado pela maldade, o ser humano usa-a como instrumento para descobrir o que é a bondade. A ser verdadeira esta interpretação das palavras do escritor angolano, o mal é um mero instrumento que serve para encontrar o bem, para sublinhar as virtudes associadas à bondade. O mal tem que ser relativizado, é necessário desculpabilizá-lo sempre que ele é instrumental à bondade que anda arredia.
A defesa desta ideia tem as suas reticências. O escritor não explicou (pelo menos naquele excerto que escutei) se a maldade que devemos praticar, como exercício de “higiene mental”, se dirige aos outros ou se deve cingir a nós mesmos. Sim, porque podemos ir ao encontro de comportamentos que nos são prejudiciais – mesmo sabendo dos danos que deles resultam, nada é feito para evitar a recorrência desses comportamentos. Seria neste sentido que era sugerida a necessidade de convocar, de temos a tempos, a maldade? Ou seria no sentido de escolher o outro como destinatário da nossa maldade?
Se o outro é o destinatário da maldade, a ideia do escritor angolano parece encerrar uma contradição insanável. Como pressuposto, estou a imaginar aquelas pessoas que são conduzidas por um instinto de bondade. Como é possível aceitar que o caminho para a redenção, a escolha da bondade, dependa da maldade sobre outrem? Mesmo para um radical individualista, que reconheça que é em torno de cada indivíduo que o mundo gira, esta é uma ideia que causa repulsa. Porque um individualista não é um egoísta, ele sabe que o seu bem-estar depende de um comportamento que não prejudique intencionalmente o bem-estar dos outros. Dirigir a maldade contra outras pessoas como esteio do reencontro com a bondade contradiz a filosofia individualista.
A conduta que resvala para o mal tem outras incongruências. Quando é chegado o momento de fazer o mal? Quando se duvida do que é o bem? Mas nessa altura já não estará a pessoa a praticar, ainda que inconscientemente, o mal, prejudicando-se a si ou a outros? Noutra dimensão, se é necessário impor a maldade a outros, como se escolhem essas pessoas? Sobre pessoas conhecidas, sobre pessoas queridas, para que a essência da maldade seja mais purificada pelas consequências devastadoras ao ser imposta sobre pessoas que nos são próximas? Mas terão elas culpa pela nossa busca da bondade, será justo que elas sejam as cobaias do necessário reencontro com a bondade?
1.6.04
Os políticos insultam-se?
Como estive alguns dias ausente do país, não acompanhei o arranque da campanha eleitoral para as eleições ao Parlamento Europeu. Aliás, não tenciono gastar o meu tempo a ler ou ver o que se tem passado durante a campanha eleitoral. Já basta a profusão de cartazes que enxameia a cidade, e que os olhos não conseguem evitar. Apesar desta declaração de intenções, ontem li algures o título (mas não a notícia) de que a campanha eleitoral estava a ser marcada pela baixeza do discurso dos candidatos, por ataques pessoais, por linguagem ofensiva, senão mesmo insultuosa.
Não aprofundei o teor da notícia. O cansaço da política doméstica é tão grande que não quero adensar a náusea indo a fundo nestas questiúnculas estéreis, que uma vez mais distraem a atenção dos cidadãos para a baixa política, desviando-os do que interessa discutir – ideias, projectos, um devir (neste caso) relacionado com o futuro da União Europeia. O que chama a minha atenção é saber se na arenga entre candidatos de diferentes formações políticas aquilo que é julgado insultuoso constitui mesmo insulto, na verdadeira acepção da palavra, ou se não passa de uma manobra retórica para alcançar o objectivo final (ter mais votos do que o adversário). O problema pode ser formalizado de outra forma: a troca de acusações entre os candidatos deve ser interpretada literalmente? Ou devemos descontar o calor da luta política, aceitando que se resvale para excessos de linguagem, apenas porque tais meios são necessários para atingir o fim último de um acto eleitoral?
Não consigo perceber as preocupações pedagógicas que certos sectores, diria “moralistas”, procuram imprimir à luta política. Insurgem-se contra os excessos de linguagem, deploram os discursos que descaem para a tibieza do insulto. Diz-se que os políticos deviam ter tento na língua, como exemplo para os cidadãos. Discordo em absoluto. Então não é verdade que os membros da classe política, principalmente os que se submetem a sufrágio popular, são os representantes do povo? Se representam o cidadão comum, porque não hão-de os eleitos ser uma emulação de quem representam?
É aqui que temos que desviar a atenção para as narrativas correntes entre a pessoa comum. As preocupações cosméticas com o discurso não abundam. Basta andar pelas ruas, parar em mesas de cafés, ir a restaurantes, ou a um bar. E ver que a linguagem corrente entre pessoas “normais” não tem os pruridos que os ditos moralistas gostariam de associar ao debate político. Os palavrões andam à solta. Amiúde, as pessoas referem-se de forma menos abonatória a outros que não estão presentes. Vulgarizou-se o calão que, sendo levado à letra, é insultuoso. E, no entanto, raras são as vezes em que os atingidos pelos “insultos” reagem. Algumas dessas expressões, que são insultuosas se interpretadas literalmente, constituem hoje expressões idiomáticas.
Ora se é isto que sucede correntemente entre o cidadão comum, e se continua a aceitar-se a ideia de que os eleitos representam os eleitores, porque não hão-de os políticos pautar o seu discurso pelo mesmo diapasão? Porque não hão-de eles resvalar para as tais expressões que são cada vez menos insultuosas e mais idiomáticas? Com a vantagem de termos a retórica política mais apimentada, sem os salamaleques que hoje imperam, em que se ofende sem estar a ofender, em que os membros da classe política se ficam pelas meias tintas – afinal corporizando aquilo que deles se conhece: nem fazer, nem deixar que os outros façam obra.
E com outro aspecto positivo: se os políticos falassem entre si como fala o cidadão comum, quem sabe se este não se passaria a identificar mais com o fenómeno político? Meio caminho andado para combater o congénito problema da abstenção, logo para conferir mais legitimidade ao processo político e de varrer o espectro da crise que afecta a democracia contemporânea?
Não aprofundei o teor da notícia. O cansaço da política doméstica é tão grande que não quero adensar a náusea indo a fundo nestas questiúnculas estéreis, que uma vez mais distraem a atenção dos cidadãos para a baixa política, desviando-os do que interessa discutir – ideias, projectos, um devir (neste caso) relacionado com o futuro da União Europeia. O que chama a minha atenção é saber se na arenga entre candidatos de diferentes formações políticas aquilo que é julgado insultuoso constitui mesmo insulto, na verdadeira acepção da palavra, ou se não passa de uma manobra retórica para alcançar o objectivo final (ter mais votos do que o adversário). O problema pode ser formalizado de outra forma: a troca de acusações entre os candidatos deve ser interpretada literalmente? Ou devemos descontar o calor da luta política, aceitando que se resvale para excessos de linguagem, apenas porque tais meios são necessários para atingir o fim último de um acto eleitoral?
Não consigo perceber as preocupações pedagógicas que certos sectores, diria “moralistas”, procuram imprimir à luta política. Insurgem-se contra os excessos de linguagem, deploram os discursos que descaem para a tibieza do insulto. Diz-se que os políticos deviam ter tento na língua, como exemplo para os cidadãos. Discordo em absoluto. Então não é verdade que os membros da classe política, principalmente os que se submetem a sufrágio popular, são os representantes do povo? Se representam o cidadão comum, porque não hão-de os eleitos ser uma emulação de quem representam?
É aqui que temos que desviar a atenção para as narrativas correntes entre a pessoa comum. As preocupações cosméticas com o discurso não abundam. Basta andar pelas ruas, parar em mesas de cafés, ir a restaurantes, ou a um bar. E ver que a linguagem corrente entre pessoas “normais” não tem os pruridos que os ditos moralistas gostariam de associar ao debate político. Os palavrões andam à solta. Amiúde, as pessoas referem-se de forma menos abonatória a outros que não estão presentes. Vulgarizou-se o calão que, sendo levado à letra, é insultuoso. E, no entanto, raras são as vezes em que os atingidos pelos “insultos” reagem. Algumas dessas expressões, que são insultuosas se interpretadas literalmente, constituem hoje expressões idiomáticas.
Ora se é isto que sucede correntemente entre o cidadão comum, e se continua a aceitar-se a ideia de que os eleitos representam os eleitores, porque não hão-de os políticos pautar o seu discurso pelo mesmo diapasão? Porque não hão-de eles resvalar para as tais expressões que são cada vez menos insultuosas e mais idiomáticas? Com a vantagem de termos a retórica política mais apimentada, sem os salamaleques que hoje imperam, em que se ofende sem estar a ofender, em que os membros da classe política se ficam pelas meias tintas – afinal corporizando aquilo que deles se conhece: nem fazer, nem deixar que os outros façam obra.
E com outro aspecto positivo: se os políticos falassem entre si como fala o cidadão comum, quem sabe se este não se passaria a identificar mais com o fenómeno político? Meio caminho andado para combater o congénito problema da abstenção, logo para conferir mais legitimidade ao processo político e de varrer o espectro da crise que afecta a democracia contemporânea?
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