29.6.04

A barbárie num aquário de marisco

Repouso na esplanada do restaurante onde vou degustar o jantar. A luz do dia esvai-se, deixando entrar o breu da noite, que a cada minuto toma conta do céu. As pessoas passeiam-se num andar compassado que exibe a despreocupação da época estival. Aproveitam a temperatura quente, antes que o vento fresco tome conta da noite e chame por um agasalho.

Estou sentado na esplanada, mesmo junto à entrada do edifício do restaurante. Três degraus escalados e, no lado esquerdo, um aquário de grandes dimensões aloja as lagostas, lavagantes e santolas que são o engodo de quem quer tragar as delícias que o mar oferece. Todos os exemplares que se acumulam dentro do aquário estão vivos. É necessário provar ao cliente que a sua escolha é merecedora de confiança. O marisco que ali se consome é fresco, tão fresco que ainda está vivo. Vivo mas manietado. Os bichos não têm liberdade de acção, por terem as suas garras amordaçadas, quiçá para que o seu instinto de vida não os leve a uma reacção agressiva contra a pessoa que os for pescar com a pinça.

As crianças de tenra idade são levadas pela curiosidade e param, atónitas, perante tal quadro. Perguntam aos pais que bicho é este, que se diferencia do outro que tem umas patas diferentes. Testemunham a sua limitada movimentação, porque as garras estão bem atadas por cordéis de fio grosso. Não sei o que desperta a curiosidade destas crianças. Não sei se é uma curiosidade diria científica, própria de quem desperta para os fenómenos da natureza. Ou se é uma curiosidade mórbida, típica da natureza humana, sempre pronta a sacrificar, com espectáculo degradante pelo meio, a vida de animais para saciar apetites gastronómicos. Ou se é uma manifestação imberbe de crianças insensíveis, que ficam especadas olhando para os lavagantes, lagostas e santolas como adornos de um aquário, sem perceberem que estão ali prestes a deixar a vida para irem parar ao estômago dos comensais. Como se fossem simples brinquedos, chamariz de uma clientela mais jovem que ignora o destino fadado para aqueles bichos.

Eis senão que, muitos minutos passados, houve um pedido de um lavagante. O empregado de mesa serviu-se de uma pinça com uma longa haste para escolher o exemplar. À medida que a pinça navegava nas águas do aquário, os bichos fugiam em desespero. Adivinhavam que a fuga momentânea da pinça era o passaporte para mais uns minutos, ou horas, de vida. O reboliço leva-os a atropelarem-se uns aos outros. Na lei do salve-se quem puder, um infeliz foi contemplado. Acabou por ser apanhado pela pinça que o puxou à superfície. Debatia-se com energia, mostrando as patas amarradas. São os derradeiros momentos de vida que se esvaem naqueles movimentos vigorosos. A mão do empregado senta-se sobre o dorso do lavagante, depositando-o numa travessa de inox que lhe serve de leito de morte.

O resto não vi. Adivinho que os breves metros do trajecto entre o aquário e a cozinha terão sido percorridos com mais tentativas desesperadas para fugir ao destino traçado. Até que mergulhou na água fervente, despedindo-se lentamente da vida que teve nas águas de um mar que, para ele, foi de liberdade.

Em tempos li algures que estes espécimes não têm sistema nervoso central. Por esse motivo nada sentem quando o seu corpo é depositado na água que ferve a mais de cem graus centígrados. Morrem sem dor, cozidos pela água fervente. Mais recentemente, alguém mais familiar em biologia trouxe-me conhecimento contrário. Disse-me que estes bichos sofrem ao serem depositados num tacho com água que borbulha a uma temperatura muito elevada. Se é verdade, o “conhecimento oficial” da ausência de sistema nervoso central só serve para que os mais sensíveis se consigam apaziguar com a consciência quando comem estes lautos petiscos. É uma forma de enganar estas pessoas, que se repugnam com o espectáculo triste de levar para o leito da morte, directamente do aquário, um animal que está agora vivo e que, minutos depois, aparece morto e delicioso na mesa do comensal.

Por via das dúvidas, é bicho que não vem para ao meu prato.

(Em Sanxenxo)

1 comentário:

Anónimo disse...

que imaginação é esa pá?