Começo pelo futebol, que os dias que correm só estão sintonizados para o que a populaça convencionou chamar “desporto-rei”. A selecção portuguesa lá ganhou aos russos, que jogaram metade do tempo com menos um – ainda que isso não se fizesse notar com visibilidade, tal o nervosismo que continua a atarantar os bravos lusos que se acagaçam assim que entram nos novos estádios e se colocam perante uma plateia sequiosa de êxitos. O país futebolístico, os treinadores de bancada e os comentadores de ocasião foram unânimes na reacção à estratégia de Scolari: o homem terá deixado de carregar o epíteto de burro, porque a sua consciência lá o convenceu que teria que pôr um onze inicial composto pela coluna vertebral do famoso FC Porto.
Como tantos profetas tinham anunciado com antecedência, se a equipa das quinas fosse feita por metade FC Porto era meio caminho andado para a vitória. Scolari deixou de ser teimoso. E com a teimosia derrubada, imediatamente deixou de transportar as orelhas de burro que os detractores lhe tinham colado como imagem de marca. Agora ouve-se à boca pequena, pelos cantos da cidade, um povo azul e branco finalmente orgulhoso. Perguntam, ufanos, uns aos outros: “então, gostaste da vitória de Portogal?” Reparem, Portogal, numa sapiente reconstrução do nome do país, como se ele se desprendesse do malfadado complexo centralista do Terreiro do Paço em virtude dos ventos de liberdade que sopram da Torre do Dragão e do Estádio com o respectivo nome.
Mudando para a política, nos últimos dias têm regressado as notícias que ventilam a possibilidade de António Vitorino ser nomeado para a presidência da Comissão Europeia. O governo de Durão Barroso, no cumprimento de um indeclinável dever patriótico, anunciou que se iria esforçar por levar Vitorino à presidência da Comissão. Os socialistas cá do burgo não perderam a oportunidade para exigir do governo que faça os possíveis e os impossíveis para que Vitorino chegue ao desejado cargo. Até Soares, o patriarca, veio dissertar sobre o tema. Dizendo que na impossibilidade de colocar Vitorino na presidência da Comissão, o governo da coligação PSD-CDS deveria reconduzir este socialista como representante português na Comissão.
Vou dar o devido desconto às palavras esclerosadas do patriarca. Estou mesmo a vê-lo noutro cenário: governo do PS, comissário português de outro quadrante político; estou mesmo a ver o patriarca (e os demais socialistas) a defenderem a continuidade do comissário do outro partido, que apensar de ser muito competente teria cometido o pecado de não ter o cartão de sócio do partido da rosa. Destino fatal: a não recondução como comissário, preterido que seria por um boy ansioso pelo lugar em Bruxelas. Aqui, como em tantas coisas, “olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”.
Qual é a convergência entre os dois casos? É o afã com que certas pessoas se esforçam por levar todos os demais ao reconhecimento de que as suas opiniões é que estão certas e são incontestáveis. Os fanáticos portistas – aqueles que ouvi em tempos a vaticinarem a derrota para a selecção de Scolari, como vingança das afrontas ao intocável FC Porto – estão agora apaziguados com Scolari. E exigem do país que se preste vassalagem indirecta ao FC Porto, agora que a selecção é meio FC Porto. Os sucessos da equipa nacional são o prolongamento da campanha vitoriosa da agremiação que tanto veneram. Resta saber se os insucessos também serão interpretados da mesma forma…
No caso político, os inefáveis socialistas pressionam o governo a prolongar o job do boy socialista que está na Comissão. Independentemente do mérito de Vitorino, os camaradas do PS esquecem-se de três aspectos importantes. Primeiro, que as hipóteses de Vitorino ser presidente da Comissão não são reais. Segundo, que em nenhum país com direito apenas a um comissário ele é do partido da oposição, quando é chegado o momento de compor uma nova Comissão Europeia. Terceiro, que eles próprios, socialistas, não conseguiam resistir à tentação de indicar alguém da respectiva família política se fossem eles a ocupar a cadeira do poder.
Tal como no exemplo da selecção nacional, também aqui vemos o PS a tentar forçar o governo (e o país) ao reconhecimento público do mérito de um dos seus, como se os socialistas estivessem acima da média em termos de competência. Ou como se a escolha de Vitorino para a presidência da Comissão fosse um imperativo patriótico (no que constitui a negação absoluta do espírito inerente à União Europeia). Eis como o PS quer, através deste dossier, que um país inteiro se curve perante Vitorino – que é como quem diz, indirectamente se curve ao PS.
Na parte que me toca, não dou para nenhum dos peditórios.
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