Acordo como silvo das gaivotas. Sinto que esvoaçam numa rasante à minha janela, deixando o seu rasto pela voz esganiçada que a espaços soltam para o ar. Estes silvos parecem, por vezes, gritos desesperados. Como se o voo das gaivotas quisesse anunciar más notícias. Falta do peixe necessário para a sua nutrição? Num esgar de dor, revelam que o estômago vive à míngua, carentes de alimento que é reclamando com o zunido estrepitoso e aflito. Ou é apenas um ritual típico das gaivotas, que na sua dança matinal, aproveitando-se da vila ainda imersa no sono, soltam os gritos estrídulos num código impaciente que só elas compreendem?
Quando escuto as gaivotas, ainda no torpor de um sono retemperador, vêm à memória os tempos que passei em Brighton, já lá vão quase quatro anos. Dou comigo a pensar como é curioso que a mente tenha destes comportamentos reflexivos. Um determinado sinal, uma certa palavra, um odor que paira no ar – tudo serve para puxar à superfície recordações do passado. Até parece que o cérebro possui um interruptor que detona as recordações localizadas no tempo e no espaço logo que um certo acontecimento é processado pela memória. Comigo e com as gaivotas, a ligação estabelece-se logo com Brighton – apesar de ter vivido quase toda a minha vida junto ao mar, não sendo alheio à existência de gaivotas.
Nunca vi tantas gaivotas como em Brighton. Andam em magotes, rompendo com o que me habituei a ver no Porto, onde sempre me pareceu que as gaivotas eram pouco sociáveis. É raro vê-las em bando. Quando muito, damos com duas ou três gaivotas juntas. Em Brighton as gaivotas pairavam no ar, próximo do mar, um pouco mais dentro da cidade, junto a locais onde o lixo abunda. Aos milhares, com um grito típico que me acostumei a ter como presença sempre que andava pelas ruas de Brighton. Um som que trouxe guardado na minha memória, o som característico de Brighton. Como noutros locais o som de máquinas a laborar, de automóveis num bulício frenético, ou do simples sussurrar das folhas batidas pelo vento, é a alusão que fica gravada na memória.
Como sinal da profusão de gaivotas característica desta cidade inglesa, o clube de futebol local, o Albion, tem associada a imagem de marca das gaivotas. Aliás, na tradição estabelecida em Inglaterra de atribuir alcunhas aos clubes de futebol, o Albion também é conhecido como Seaguls – gaivotas em inglês. A silhueta da gaivota é a imagem de marca do clube. A imagem que foi herdada pelos habitantes da cidade, que se revêem, garbosos, na multidão de gaivotas que faz de Brighton o seu poiso obrigatório.
Se bem me recordo, esta é a única cidade que conheço que tem um animal como ex-libris. Não é um edifício, nem um feito histórico, ou um certo atributo da natureza como uma especial característica geográfica. Quem fica a conhecer Brighton traz a marca indelével da presença das gaivotas. Apesar de se destacar também pelo ar estival que a sua localização à beira-mar lhe confere – por ser uma das praias preferidas dos habitantes de Londres – Brighton fica na memória pela abundância de gaivotas que se habituaram a partilhar o espaço envolvente com os residentes. Entre pessoas e gaivotas cultivou-se uma cumplicidade inusitada. Que cresceu ao ponto das pessoas construírem, como laço identitário, uma ligação forte à ave esguia e esbranquiçada que é presença constante no seu dia-a-dia.
Os meandros da memória levam-me sempre a recordar os tempos de Brighton de cada vez que ouço o silvo das gaivotas. A prova de como uma imagem de marca que se associa a um certo local pode perdurar, bem inerte, no álbum de recordações que o tempo e os locais se encarregam de construir.
(Em Sanxenxo)
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