Era uma vez um presidente de câmara. Daqueles que se tem perpetuado no poder, um dos dinossauros da vida autárquica nacional. Um simples senhor, operário, sem grandes qualificações académicas. Mas que conseguiu subir a pulso na vida política, sabe-se lá recorrendo a que artes diabólicas, convencendo barões partidários e formando clientelas locais que o foram sustentando no poder. Um presidente da câmara que transpira desonestidade por todos os poros. Quando fala, quando se emociona em encenações bem maquinadas para comover (e convencer) fiéis seguidores e almas menos crentes, não engana: tudo soa a falso.
A personagem, lídimo representante da classe política, alimentou ambições. O seu município era pequeno demais para essas ambições. O alvo passava a ser nacional: ele queria ser ministro. E o seu partido, depois de dez anos de jejum, lá ganhou as eleições. Esfregou as mãos de contentamento e pensou com os seus botões: é chegado o momento de dar o salto. Os planos saíram furados. Não conseguiu chegar a ministro. Na dança das cadeiras e das pessoas que se punham em bicos de pés para arranjar um lugar de destaque, os barões do partido decidiram sacrificar as ambições da nossa personagem. O máximo que lhe arranjaram foi a sinecura de secretário de Estado.
Ao projectar o seu exílio dourado na capital do país, o autarca teve que preparar o caminho para a sucessão. Faz parte das personalidades que cultivam o ego, que o massajam ao mais elevado expoente, que se consideram a única pessoa imprescindível, uma espécie de timoneiro. Na sua ausência, o caos. Para o evitar, havia que tratar cuidadosamente da sucessão. Um delfim foi escolhido. Um jovem promissor, com uma imagem que reunia as características que faltavam à nossa personagem, que o impediam de ser um político imaculado: formação universitária, bem-falante, imagem cuidada, juventude a rodos, enfim, uma imagem de renovação que era necessária para revitalizar um município que começava a estar cansado da omnipresença do autarca patriarca.
O delfim foi fazendo o seu tirocínio como vice-presidente. Foi estando na sombra do senhor todo-poderoso. Com a passagem do tempo, e sobretudo com a antecipação de que o senhor seria ministeriável, o sucessor foi conquistando protagonismo. A sucessão estava a ser preparada para que o município não ficasse à deriva. Lá chegou o dia em que, um pouco contrariado, o ex-autarca tomou posse como membro do governo.
O delfim ascendia a presidente da câmara. Despontava um aprendiz do mestre que agora estava no governo. Com os mesmos tiques, com a mesmo verborreia, sem mudar uma vírgula na prepotência com que os assuntos autárquicos eram conduzidos, acobertado pela inevitável maioria absoluta. Tratando os opositores com a mesma arrogância que tresandava à intolerância típica de quem cultiva as regras da democracia apenas na teoria, mas vagamente na prática.
O mestre cansou-se de ser “apenas” secretário de Estado. Terá concluído que tinha mais protagonismo, mais poder, enquanto autarca. Demitiu-se e reassumiu o lugar de presidente da câmara, para infelicidade do aspirante que se tentava emancipar da tutela paternalista de quem o lançou para a ribalta. Voltava a ser apenas o delfim, depois de ter gozado os prazeres efémeros do estrelato. Não tardou a que os dois senhores entrassem em rota de colisão. Deixaram de se falar, e começou uma guerra surda que os levou a estar de costas voltadas, a encabeçarem listas diferentes para os órgãos concelhios do seu partido.
A corda foi-se esticando e rebentou numa campanha eleitoral. Quando ambos lutavam pelo protagonismo de aparecerem, perante as câmaras da televisão, de braço dado com o candidato do seu partido, os respectivos apoiantes chegaram a vias de facto. Aqueles que terão (mesmo?) sido amigos no passado trocaram acusações e insultos. O caldo estava entornado. Agora o delfim acusa o seu mestre de despotismo.
Espera-se que o partido de que eles fazem parte não se esquive ao apuramento de responsabilidades. Para não deixar passar incólume este exemplo degradante de fazer política, que trouxe à superfície a manifestação do execrável caciquismo que preenche o mapa político de uma ponta à outra. Também seria desejável que o delfim concretizasse as suas acusações, que não se ficasse por uma anódina acusação de despotismo. Talvez não tenha coragem para ir mais longe. Os rabos-de-palha que prendem as duas personagens devem ser tão densos que não interessa mexer muito com o passado. A melhor estratégia será não fazer muito barulho. Para que, tempo passado, tudo fique como está.
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