25.6.04

O renovado entusiasmo pelo futebol e a (re)identificação nacional

Há que o admitir: o campeonato da Europa de futebol está a exceder as minhas expectativas. Não, não pelas façanhas desportivas da selecção portuguesa. São outros factores que me levam àquela asserção: o entusiasmo vibrante com que a população portuguesa está a viver os êxitos da equipa nacional, o colorido contagiante dos adeptos de diferentes países que convivem alegremente nas ruas das cidades, enfim, o facto de muita gente estar a despertar para um desporto que lhes era pouco mais do que indiferente.

Começo por este fenómeno. Basta andar pelas ruas com os ouvidos atentos às conversas que connosco se cruzam. Basta escutar o tema de conversa numa roda de amigos ou em família. E constatar que tanta gente que antes era indiferente ao futebol vive agora os jogos com entusiasmo, quer ter mais informação sobre o que se está a passar, já avança com nomes que outrora eram apenas uma nebulosa cortina de fumo que só os especialistas do desporto conheciam. É certo que muito deste entusiasmo pelo futebol se confunde com a euforia em torno da selecção nacional.

Resta ver se, no futuro, este entusiasmo se vai prolongar para as competições que todos anos se organizam à escala nacional. Estou para ver se a euforia desencadeada pelo Euro 2004 se vai traduzir numa reconciliação entre o “futebol clubístico” e as pessoas. Então se irá tirar a prova dos nove, para ver se os estádios vão estar mais compostos, para saber se os meandros tortuosos da convivência tenebrosa entre futebol, política, negócios obscuros e corrupção dão lugar ao desporto puro que tem atraído tanta gente que estava adormecida.

É neste contexto que tenho que dar a mão à palmatória e admitir que o campeonato tem excedido as expectativas. Há algo que me deixa admirado: o “fervor nacionalista” é o móbil para uma festa que tem andado de braço dado com o futebol. É uma diferença abismal entre um campeonato como este, em que se defrontam selecções de países, e o futebol que põe frente a frente clubes (do mesmo ou de diferentes países). No futebol clubístico as paixões são exacerbadas, irracionais, com maiores probabilidades da rivalidade cegar a racionalidade e levar a excessos de violência. Tal não se verifica nos duelos entre selecções nacionais.

O colorido que preenche as bancadas, que nos entra pelos olhos dentro quando circulamos pelas ruas da cidade, é o sinal evidente da festa que se vive. Repetidamente, vemos imagens de festa em que adeptos de diferentes países trajam as respectivas cores nacionais e convivem em respeito. Avanço uma possível explicação: quem vem aos jogos são os adeptos que não frequentam muito as competições onde o fervor clubista vem ao de cima. Não são tanto os adeptos cegos pela clubite aguda, antes aqueles adeptos de circunstância que aproveitam um campeonato da Europa para acompanharem a sua equipa nacional e ao mesmo tempo fazerem turismo. A prova é a quantidade de mulheres que tem ido aos estádios, bem acima do normal em jogos de outras competições clubistas.

Há dias li algures dois artigos publicados por académicos reputados na área da integração europeia. Faziam uma análise sociológica das movimentações de massas que se deslocam numa peregrinação fiel atrás das respectivas equipas nacionais. Questionavam-se se, numa Europa unida – e cada vez mais unida – estas expressões de nacionalismo exacerbado ainda fazem sentido. Estou à vontade para discordar das análises distanciadas dos académicos em causa. Porque o meu fervor nacionalista é muito próximo do zero. Admitindo que o nacionalismo é subjectivo, é a minha ausência nacionalista que faz de mim uma excepção patológica.

Discordo daquela análise porque ela se alicerça num pressuposto errado. De acordo com os académicos, agora que a União Europa acentuou os traços de unificação com o acordo da Constituição da União Europeia, faz cada vez menos sentido exaltar os sentimentos nacionalistas. Está errado, porque a União assenta no valor da diversidade (“união na diversidade”). É uma união de Estados, que são ainda o património genético da diversidade que deve ser preservada a todo o custo, sob pena de o devir da União se encaminhar para um totalitarismo inaceitável que espezinha os traços de especificidade de cada país.

Há que não esquecer que a União Europeia se alicerça na unidade na diversidade. Não numa união forçada de povos que ainda se continuam a ver mais como povos de um determinado Estado membro, não como povo da União Europeia. Negar esta evidência é distorcer as vontades das pessoas que dirigirem os seus laços identitários para as nações. Assim sendo, continua a haver lugar às competições desportivas que permitem a rivalidade entre atletas que representam diferentes Estados membros da União, sem que isso ponha em causa os valores nobres que constituem o esteio da União.

Quanto à bebedeira nacional proporcionada pelos sucessos desportivos da equipa nacional, ficará para outro dia…

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