A pergunta tem que ser feita de outra forma, por uma exigência de rigor: porque só somos louvados depois de partirmos do mundo dos vivos? Faço esta pergunta sempre que uma personagem pública morre e logo de seguida desfila o carpir de mágoas, acompanhado por um relambório que quase endeusa a pessoa que acabou de falecer. Mesmo que, enquanto viva, motivasse uma divisão de opiniões acerca do seu mérito, ou fossem muitas as críticas a determinados traços da sua personalidade, ou ainda que essa pessoa tenha ficado conhecida por uma passagem menos feliz num certo cargo de notoriedade.
Após a sua partida, esta pessoa deixa de ter defeitos. A morte das personalidades públicas que tiveram algum destaque permite um apaziguamento colectivo no momento da morte. Em respeito pela memória de quem faleceu, todos os epitáfios que se escrevem ou se dizem não andam longe de hagiografias. Como referi há pouco, a morte encarrega-se de levar para a cova os defeitos da pessoa que parte deste mundo. Sobram as virtudes. Como se a ida do mundo dos vivos corporizasse a desumanização de quem morre através da eliminação dos defeitos que conferem sempre uma dimensão humana aos que estão entre os vivos.
Não consigo compreender esta tendência que coloca as pessoas mortas nos píncaros, logo após o momento da sua morte. Não consigo perceber as elegias que enaltecem o falecido, num pranto colectivo que tantas vezes soa a falso. A mesma pessoa que é tão elogiada no momento fúnebre é a mesma pessoa que em vida foi vituperada por alguns dos que prestam as homenagens de serviço. O que soa a falso, deixando vir à superfície a hipocrisia humana que se vulgarizou na sociedade em que vivemos.
Nesta consagração unânime feita nos tristes momentos que se seguem à morte de alguém, há uma sagração da morte que é, ao mesmo tempo, uma subalternização da vida. De outro modo, como compreender que em vida destoemos nas críticas em relação a quem está vivo? Raramente temos tempo para enfatizar os elogios que são devidos às qualidades inatas de uma certa pessoa (excepto quando a notoriedade é tão elevada que se organizam homenagens em vida). Mas quando a morte bate assustadoramente à porta, convertemos o nosso comportamento e fazemos uma inversão de 180 graus. Onde em vida existia rivalidade, crítica, muitas vezes com aspereza, a morte traz consigo as lágrimas vertidas acompanhadas de um rol infindável de elogios.
Daí que surja a interrogação: será hipocrisia apenas? Será o hábito socialmente conveniente de respeitar a memória de quem morre, nem que se passe uma esponja pelo passado e se faça de conta que quem morreu foi um herói em vida cuja heroicidade apenas é enaltecida após a morte? Ou será o medo da terrível morte que empurra os vivos a representarem o respeito pela memória de quem morre, como se quem presta o elogio fúnebre esteja a destilar a inquietação interior de não saber se é o próximo a partir do mundo dos vivos?
É lamentável, para quem morre, que só seja elogiado quando já não pode escutar os elogios. Com a morte os sentidos esvaíram-se. E com eles foi a possibilidade de afagar o ego ao escutar tantos elogios que nunca foram ouvidos enquanto a vida durou. Só aí é que faz sentido exaltar a personalidade de alguém – quando ele ou ela estão vivos. Os elogios fúnebres só servem para descarregar um necessário dever social que coincide com o hábito instalado do “respeito pelos mortos”.
1 comentário:
- Perante o FIM tudo é relativizado.
Até prova em contrário, a morte é o fim. Perante esse facto o ser humano apercebe-se da sua pequenez, da sua insignificancia. Daí "esquecer" o menos bom dos que morrem e salientar o bom, como forma de dizer a si próprio e aos outros "valeu a pena ter estado cá".
Ponte Vasco da Gama
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