22.6.04

Avelino Ferreira Torres: o abismo do apego ao poder

Há duas semanas, o presidente da câmara do Marco de Canavezes foi condenado à perda de mandato por ter sido culpado dos crimes de peculato e abuso de poder. A reacção desabrida, bem ao jeito do que Avelino Ferreira Torres (AVT) nos habituou, não se fez esperar. Anunciou em voz alta que não vai prescindir do poder, apesar de um tribunal ter sentenciado nesse sentido. Prometeu um recurso para tribunais superiores, para esgotar todas as possibilidades que evitem a perda do mandato.

Entretanto, AVT foi dissertando sobre os juízes que tiveram a ousadia de o julgar. Ao jeito dos piores tiranetes sul-americanos, o autarca não se coibiu de lançar suspeitas sobre um dos juízes devido ao processo de falência de uma empresa da zona. Para outra juíza, AVT reservou uma tirada do pior mau gosto que esta personagem nos foi habituando ao longo de anos infindáveis de intervenções públicas arruaceiras. Convidou os que ouviam o seu recital a irem até Bragança e perguntarem aos habitantes da cidade sobre a tal juíza. E concluiu com um intolerável dislate: que a senhora juíza só há pouco tempo terá deixado de beber leite…

Confesso que, ao ler a notícia, fiquei atónito com esta suspeita que AVT, qual víbora venenosa, cuspiu para o ar. Terá sugerido que a juíza é nova e que, como tal, não possui a experiência suficiente para o julgar? Talvez AVT considere que só as pessoas acima de uma determinada idade (que ele não especificou) podem ser juízes. Ou seja, AVT faz lei na sua coutada. Dentro dos seus domínios (o concelho do Marco de Canavezes) ele dita leis, ele possui legitimidade para fazer normas diferentes das que cobrem Portugal de uma ponta à outra. Também aqui só os desprevenidos são apanhados de surpresa. Do passado fica um rol interminável de actuações lamentáveis de AVT, com entorses sucessivas à democracia, com actos próprios de um ditador que se acoberta nas maiorias absolutas conquistadas nas urnas para actuar como se estivesse investido de poder para espezinhar todos os que não se revêem na sua governação.

A esperança é que o tempo de AVT se esteja a esgotar. O golpe fatal foi dado pelo tribunal que o julgou e lhe retirou o mandato de autarca em virtude da gravidade das acusações que foram provadas. AVT pode não gostar da sentença. Mas se não se quer afundar mais no atoleiro ditatorial em que sempre viveu mergulhado, não tenha a insensatez de desprezar um valor fundamental do Estado de direito – a separação de poderes, a inaceitabilidade da intrusão dos políticos nos meandros da justiça.

O problema é que os AVT estão espalhados no mapa autárquico português. Com diferenças de estilo, sem o estardalhaço típico do autarca marcoense, a verdade é que os meios utilizados por inúmeros presidentes da câmara são idênticos. Passam incólumes porque não cometem a imprudência de actuarem como um elefante em loja de porcelana. Não fazem como AVT, que de cada vez que abre a boca sai asneira da grossa, mais condizente com o homem do campo ou das obras que não hesita em ameaçar com o uso de violência contra aqueles que ousam enfrentá-lo. Teimando em atropelar os valores que cimentam o Estado de direito, quando devia dar o exemplo no seu acatamento.

Ao constatar como proliferam que nem cogumelos venenosos estes “autarcas-tipo”, dou-me conta de como é difícil apoiar um sistema de descentralização de poder que ponha nas mãos dos municípios mais competências e mais recursos financeiros – ainda que, em teoria, seja partidário deste sistema. Se com a escassa descentralização municipal que temos já somos obrigados a deparar com estes casos de autarcas que criam clientelas perversas, que se entronizam no poder como senhores absolutos, em que abundam as suspeitas de enriquecimentos fabulosos em poucos anos de mandato – o que seria se os municípios fossem empossados de mais poderes? Quantos AVT não se multiplicariam de norte a sul?

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