Sábado de manhã, à espera de um dia de actividades radicais. Antes, a parte educativa com a visita ao museu etnográfico de Vilarinho das Furnas. Esta pequena aldeia, encravada entre as serras Amarela e do Gerês, ficou conhecida por ser uma das últimas aldeias com tradições comunitárias em Portugal. Vilarinho das Furnas ficou condenada a desaparecer em 1968, quando as obras da barragem findaram e as águas começaram a subir tragando terrenos e casas.
O museu etnográfico mantém vivas as lembranças de uma aldeia que está submersa pelas águas da albufeira. Desta visita retive dois aspectos. Um pela positiva: um exemplo de vida em comum, em que as pessoas se conseguiam organizar em torno de regras não escritas mas assimiladas por todos os habitantes. Salta à vista um sentimento de confiança recíproca que permitia a vida em comum, sem necessidade de uma autoridade a vigiar o funcionamento harmonioso da aldeia.
Vilarinho das Furnas representa um pequeno laboratório de convivência social que se alicerça no respeito comum, para haver respeito pelos direitos de cada indivíduo. E na desnecessidade de uma organização social típica, que exige a presença do Estado para impor a autoridade sobre os indivíduos, porque de outro modo os indivíduos tendem para a anomia. Vilarinho das Furnas era, em suma, o paradigma de como o Estado é inútil quando o respeito mútuo está enraizado como regra de conduta individual (não como regra de conduta colectiva).
A visita também me deixou uma marca negativa. Os textos que ilustravam a exposição do museu tinham uma carga crítica em relação à decisão de ali construir uma barragem. Por entre algum aproveitamento político (afinal sempre era mais uma oportunidade de vituperar a ditadura), apercebi-me que os excertos mostravam a desnecessidade da construção da barragem por bulir com uma aldeia específica, verdadeiro património antropológico pelas suas tradições comunitárias que começavam a rarear.
Um dos textos mais marcantes é de Miguel Torga. Com o seu jeito truculento, Torga insurge-se contra o “Estado” (aqui personificado pelo Estado Novo que começava já a definhar) e o “super-Estado” – o acrónimo do capitalismo. Na esteira de Torga, outros autores questionavam se fazia sentido condenar ao exílio uma população com hábitos comunitários tão enraizados. Interrogavam-se se o governo de então não estava a cometer uma injustiça por sentenciar à morte um dos derradeiros exemplos de comunitarismo, cuja presença se estava a esfumar nos tempos idos. Ou seja, se fazia sentido sacrificar umas dezenas de pessoas em favor dos benefícios proporcionados pela construção da barragem a centenas de milhar, senão mesmo alguns escassos milhões de pessoas.
Entre a vida prazenteira de poucas dezenas de habitantes de Vilarinho das Furnas e o bem-estar das muitas pessoas que iriam beneficiar da energia eléctrica ali produzida, não tenho dúvidas na opção. Pode-se questionar a violência do processo que conduziu à deslocação dos habitantes de Vilarinho das Furnas para uma aldeia próxima. Pode-se contestar os métodos utilizados, próprios de um Estado ditatorial. Mas não contesto a utilidade da barragem, nem a necessidade do sacrifício que foi imposto a Vilarinho das Furnas. Até porque, na boa tradição comunitária personificada por Vilarinho das Furnas, os seus habitantes estariam a fazer tábua rasa dos valores intrínsecos dessa tradição se fizessem finca-pé na recusa da construção da barragem.
Quanto à preservação da tradição comunitária em extinção, os antropólogos e historiadores fizeram um trabalho notável no museu etnográfico de Vilarinho das Furnas. O tempo esvai-se, célere, e não se compadece com arcaísmos que apenas são motivo de comprazimento para quem se apega tanto ao passado. A melhor forma de perdurar a tradição comunitária de Vilarinho das Furnas é o legado que o museu deixa a quem o visita. É, também, a melhor homenagem às sucessivas gerações de Vilarinho das Furnas que mantiveram viva a tradição comunitária até onde foi possível.
1 comentário:
Curiosamente no fim de semana passado (30 e 31 de Julho de 2005), em visita ao Gerês levantou-se a discussão com uns amigos, da pertinencia da barragem naquele local sacrificando a aldeia de Vilarinho das Furnas.
A minha opinião é óbvia, numa serra tão sinuosa, só não se encontrou outro local porque não se quis gastar um pouco mais de dinheiro, quanto a mim, aquela aldeia e as suas gentes mereciam mais respeito... e o museu não passa de um lamento, de uma memória de algo que nunca mais acontecerá...
Quando se quer muito, consegue-se. Ou seja, se se quisesse muito tinha-se resolvido o problema de outra maneira!
A Barragem de Vilarinho das Furnas é claramente um projecto de secretária, não é preciso ser sociólogo nem antropólogo para perceber que se tratou de um atentado à humanidade...
E aquela serra também eram aquelas gentes ... mas, em nome do progresso cometem-se tantas atrocidades ...
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