Vinha no carro, ao fim do dia, com o rádio ligado. Entre publicidade e intercalares que anunciavam programas a passar em dias futuros, estava anestesiado para as palavras que ecoavam das colunas. Até ao momento em que fui despertado do torpor pela frase, em discurso directo, de um escritor angolano cuja entrevista estava agendada para o dia seguinte. O destaque da entrevista com este escritor angolano (que não retive o nome, ainda meio adormecido pelo som indiferenciado que o rádio ia debitando) foi esta frase: “devemos praticar o bem, mas também devemos, de vez em quando, fazer o mal. Para darmos mais valor ao bem que deve pautar a nossa conduta”.
Nunca tinha pensado sobre o assunto. O escritor sugeria uma postura que nega aquilo que somos para darmos mais valor aos princípios que orientam o nosso comportamento. Se somos intrinsecamente bons, devemos a espaços ter a tentação de resvalar para o mal (imagino para uma pequena maldade, ou para uma grande maldade?) para irmos ao fundo do poço e termos a certeza que é o bem que deve nortear o nosso comportamento.
O raciocínio parece contraditório. Se somos por natureza impelidos a fazer o bem, de cada vez que fazemos o mal estamos a negar a nossa essência. Mas mesmo neste sentido há o reconhecimento de que a essência humana não é a maldade. Mesmo quando é tentado pela maldade, o ser humano usa-a como instrumento para descobrir o que é a bondade. A ser verdadeira esta interpretação das palavras do escritor angolano, o mal é um mero instrumento que serve para encontrar o bem, para sublinhar as virtudes associadas à bondade. O mal tem que ser relativizado, é necessário desculpabilizá-lo sempre que ele é instrumental à bondade que anda arredia.
A defesa desta ideia tem as suas reticências. O escritor não explicou (pelo menos naquele excerto que escutei) se a maldade que devemos praticar, como exercício de “higiene mental”, se dirige aos outros ou se deve cingir a nós mesmos. Sim, porque podemos ir ao encontro de comportamentos que nos são prejudiciais – mesmo sabendo dos danos que deles resultam, nada é feito para evitar a recorrência desses comportamentos. Seria neste sentido que era sugerida a necessidade de convocar, de temos a tempos, a maldade? Ou seria no sentido de escolher o outro como destinatário da nossa maldade?
Se o outro é o destinatário da maldade, a ideia do escritor angolano parece encerrar uma contradição insanável. Como pressuposto, estou a imaginar aquelas pessoas que são conduzidas por um instinto de bondade. Como é possível aceitar que o caminho para a redenção, a escolha da bondade, dependa da maldade sobre outrem? Mesmo para um radical individualista, que reconheça que é em torno de cada indivíduo que o mundo gira, esta é uma ideia que causa repulsa. Porque um individualista não é um egoísta, ele sabe que o seu bem-estar depende de um comportamento que não prejudique intencionalmente o bem-estar dos outros. Dirigir a maldade contra outras pessoas como esteio do reencontro com a bondade contradiz a filosofia individualista.
A conduta que resvala para o mal tem outras incongruências. Quando é chegado o momento de fazer o mal? Quando se duvida do que é o bem? Mas nessa altura já não estará a pessoa a praticar, ainda que inconscientemente, o mal, prejudicando-se a si ou a outros? Noutra dimensão, se é necessário impor a maldade a outros, como se escolhem essas pessoas? Sobre pessoas conhecidas, sobre pessoas queridas, para que a essência da maldade seja mais purificada pelas consequências devastadoras ao ser imposta sobre pessoas que nos são próximas? Mas terão elas culpa pela nossa busca da bondade, será justo que elas sejam as cobaias do necessário reencontro com a bondade?
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