17.6.04

A sanha dos diminutivos, ou a propensão para um país “pequenino”

Ao longo da vida deparamos constantemente com diminutivos. Seja nos nomes, seja nas palavras com que lidamos no dia a dia, os diminutivos são presença constante. É o António que se transforma em Toni, o Francisco que passa a ser o Chico, a Anabela que é conhecida como Belinha. Pela manhã tomamos o cafezinho retemperador. Quando vamos ao restaurante o empregado pergunta-nos se queremos um pudinzinho de sobremesa. À tarde entramos numa repartição pública e perguntam-nos se trazemos o papelinho para levantar o documento de que necessitamos. E damos beijinhos.

À partida, pergunto-me se esta propensão para os diminutivos é uma exibição da tendência natural para o carinho que habita dentro de cada um de nós, ou se se trata de um sentir generalizado de pequenez. Na primeira hipótese, transformamos as palavras para lhes dar uma conotação mais afectiva. Talvez seja por isso que transformamos os beijos em beijinhos. Mas, curiosamente, não fazemos o mesmo com o caloroso abraço que enviamos aos amigos. Aqui o abraço mantém-se fiel à sua etimologia, não passa por uma metamorfose semântica. Nunca ouvimos ninguém mandar um abracinho a um amigo – até porque aqui o abracinho teria um sentido diferente, como se fosse um abraço em ponto pequeno, uma expressão de menor afectividade pelo amigo que se cumprimenta.

Também pode fazer algum sentido que os nomes das pessoas levem com diminutivos como expressão de familiaridade, logo de carinho. Quando alguém chama pela Aninhas é decerto uma pessoa que a conhece de perto, o que a autoriza a dar este tratamento mais pessoal. Transpira a afectividade que leva o nome Ana a aparecer como Aninhas. Para os amigos e família, Aninhas, para os outros Ana, simplesmente Ana. Assim se marca a diferença, como se fosse uma porta que franqueia a entrada apenas aos que têm o passe da familiaridade para a tratar como Aninhas.

Onde creio não haver dúvidas da ausência desta conotação afectiva é nas palavras correntes, naquelas em que o seu emprego não tem qualquer dimensão emocional. Um café não tem afectividade. Pode ser essencial para nos manter acordados durante o dia, mas não tem qualquer traço de afectividade. Então porque ouvimos tantas vezes pessoas a pedirem um cafezinho ao empregado de mesa? O mesmo se diga da cervejinha, da camisinha, da bolinha, do chapéuzinho, da cenourinha, das batatinhas, etc.

Quando ouço profusamente estas palavras na sua versão diminutiva, interrogo-me acerca das motivações desta maleita nacional, enraizada em gerações diferentes, que cruza transversalmente a população independentemente de idade, classe social e habilitações académicas. A única resposta que encontro não é simpática. Usamos os diminutivos porque somos um país “pequenino” (para ir na mesma onda dos diminutivos). E somos um país pequenino porque temos um povo que gosta de se apoucar e de resvalar para a mesquinhez, que se deixa enredar em rodriguinhos desnecessários. Perdemos tempo com o óbvio, passamos ao lado do que é essencial – talvez por sabermos que o essencial transporta até nós a dificuldade que obriga ao esforço que tanto custa.

É este o espírito que nos leva ao estigma da pancadinha nas costas como solução para todos os males – nem que sejam soluções absurdas, carregadas de facilitismo, longe de soluções racionais. Se somos um povo pequenino, fautores de um país pequenino, seria de estranhar se a sanha dos diminutivos não abundasse de norte a sul que nem uma praga de gafanhotos que consome a língua portuguesa num esgar de deturpação.


2 comentários:

Anónimo disse...

Como sabes, sou grande admirador dos teus textos. Mas ao ler este não posso deixar de fazer o seguinte comentário.
É verdade que temos esse complexo de pequenez. Mas agora pergunto: Não serão já tantos a "pensar pequenino" como os que se limitam a dizer mal disso sem contribuírem com algo que altere esse espírito?
Ou seja, concordo perfeitamente com o que dizes, mas a verdade é que quando alguém diz ou faz algo diferente dessa orientação... é criticada, nomeadamente por ti.
Exemplos: O Mourinho!
Mas não gostava de levar esta questão para o futebol. Este país precisa de pessoas optimistas, sonhadoras, visionárias, mas que com isso mostrem por vezes alguma arrogância, alguma loucura até... mas o que temos são esses que referes a pensar "pequenino" e os outros, nos quais também me incluo muitas vezes, a dizerem mal dos primeiros.
Porquê? Porque tomar iniciativas, mostrar que acreditamos em algo, dar ideias... pressupõe a nossa exposição. E todos, vá lá saber-se porquê, temos receio de ser alvo dos que criticam...
Ponte Vasco da Gama

PVM disse...

Ponte Vasco da Gama:
Tenho a percepção que os meus textos são, muitas vezes, carregados de carga negativista. O de hoje contribui para essa tendência. Por vezes leio-os e tenho a mesma sensação: critico, por vezes com aspereza, sem conseguir encontrar uma linha de rumo alternativa. E pergunto-me se haverá algo de construtivo neste comportamento; se não me estarei a afundar numa crítica fácil, sem dar um contributo para fugirmos do lodaçal onde estamos cada vez mais enterrados. Com uma agravante: suspeitar que esta postura não me tira do lodaçal onde todos (todos) estamos metidos.
Tenho a consciência de tudo isto. Como também concluo que não é pelo facto de os textos poderem ser acusados de uma excessiva carga destrutiva que eles não devem surgir. Para quem depara com uma crítica destrutiva, é fácil erguer o dedo acusador e sentenciar: onde está a alternativa? Aceitamos que as críticas destrutivas não devem fazer parte do cardápio apenas porque são destrutivas, sem alinhavar uma saída alternativa?
A bem da verdade, quando não estamos contentes com algo que nos rodeia devemos denunciá-lo (com maior veemência, ou com maior elegância – este não é o meu caso, bem o sei). Não é pelo facto de não sabermos, num determinado momento, onde estão as alternativas que devemos calar a nossa voz crítica.
Há razão no que dizes: quando nos expomos na crítica à pequenez nacional temos meio mundo a cair em cima de nós pela ousadia de pensar diferente, porque temos umas ideias bizarras que fogem da estaleca normal. No que me diz respeito, sou cego e surdo a esse tipo de olhares indiscretos que querem pousar sobre a minha consciência a amordaçá-la. Simplesmente ignoro essas “vozes avisadas”, altares da sensatez e cultores da mediocridade que por aí campeia. É mais importante ser fiel às minhas ideias (por mais excêntricas que elas pareçam) do que calar a voz para não incomodar os senhores da decência e da normalidade.
Denunciar o estado de banalização e pequenez em que estamos mergulhados é o primeiro passo. O mais difícil está para vir a seguir: propor mudanças que sejam racionais.