29.10.04

Cavaco pede que rezemos para evitar uma crise nas finanças públicas

Quando pensávamos que estava enterrado na sua tumba política, Cavaco desperta da letargia e liberta-se do casulo. Há quem diga que gere o calendário dos acontecimentos políticos para lançar, no devido momento, a candidatura à presidência da república. É isso que o leva a surgir no horário nobre, catapultando a atenção das câmaras e dos microfones. Onde o senhor professor conferencia acorre em peso a comunicação social, ansiosa por um lamiré que anuncie o professor como o candidato às presidenciais.

Há dias, em mais uma conferência que prendia a atenção de uma plateia que se saciava com as palavras do professor, tivemos mais do mesmo Cavaco. A idade pode passar, mas os tiques mantêm-se. Diria que se refinam, estes tiques. Continuamos a ouvi-lo, em referências ao passado, a dissertar sobre “o meu” governo, “os meus” ministros, “as minhas” decisões de governação. Um rosário de auto-elogios, um retrato de gabarolice incontida. Como quem enfatiza que (na sua maneira de ver) foi o melhor primeiro-ministro da nova era democrática, numa auto-promoção ao papel do novo Messias que trará a redenção e a felicidade ao país.

As últimas declarações mostram pessimismo quanto à conjuntura económica. Tentando antecipar o que está para vir, Cavaco suspeita que estamos no caminho da diarreia despesista. Com um novo ciclo de eleições que se abeira, o antigo primeiro-ministro – talvez lembrando-se da sua própria experiência – achou por bem alertar para o regabofe orçamental que se está a preparar. A aproximação de eleições é sinónimo de descontrolo das contas públicas, com um aumento das despesas (exigências do eleitoralismo que atravessa todos os governos, independentemente da cor política) sem ser acompanhado por um acréscimo das receitas. A situação agrava-se porque as expectativas de crescimento económico não são favoráveis. Ao que tudo indica, abeiramo-nos de um descontrolo das despesas que terá efeitos perversos para a estabilidade orçamental, depois do impensável deslize dos governos Guterres.

Tão grave será a situação que se avizinha, que Cavaco sugeriu ao devoto povo português que reze. Reze muito, para que o descontrolo orçamental não se instale. Não sei se o destinatário destas afirmações seria o ministro das finanças, conhecido católico praticante, pessoa de arreigada fé. Não sei se nesta mensagem da personagem messiânica que se insinua para o Palácio de Belém há linguagem em código. Sendo Bagão Félix tão convictamente católico, a invocação das preces que fazem chamamentos divinos parece indicar que Cavaco estava a falar em código para o ministro das finanças. Uma espécie de apelo à “boa consciência cristã” do ministro, para que não caucione os danos às finanças públicas que o populista primeiro-ministro congemina.

Com o ar de quem tem uma certeza inabalável sobre o que diz, Cavaco introduz uma linha fracturante na sociedade. Já não bastava a polémica europeia desencadeada pelo fundamentalismo católico de Buttiglione, agora vem Cavaco contribuir para o peditório com a sugestão de que só as preces podem evitar a crise orçamental que está a bater à nossa porta. Cavaco terá esquecido que somos um Estado laico, e que nem todos acreditam que as rezas têm efeitos equivalentes às mezinhas milagreiras de bruxas e quejandos. Até parece que Cavaco convoca as preces como os índios fazem a dança da chuva para quebrar o ciclo vicioso da seca que rouba a fertilidade desejada.

O apelo do além é um mistério insondável, vindo de quem tem tantas certezas. Ou talvez não. Porventura encerra outra mensagem cifrada: a desconfiança em relação ao (des)governo que temos, o receio de que com a aproximação das eleições os sacrifícios orçamentais do passado recente se diluam em nada. Intrigante, para quem se perfila como o candidato natural à presidência da república dos partidos que estão no governo. A menos que, com este claro desafio ao governo, Cavaco esteja a enviar sinais de que não se quer dar ao trabalho de ser o futuro presidente da república.

Caso contrário, ele que se cuide. As esquerdas, pressurosas, cultoras da liberdade de expressão como mais ninguém o consegue ser, deviam alertá-lo que deve ter tento na língua. Senão acontece-lhe o que sucedeu ao seu concorrente na corrida à sinecura presidencial, o homem das prédicas dominicais na TVI (que deixaram de ter lugar). Se quer avançar para a corrida presidencial, ele que não desafie o douto primeiro-ministro e a sua equipa de ministros de primeira água. Porque nem a invocação divina lhe valerá para evitar o silenciamento se o governo puser em prática a maquiavélica prática de pressionar os órgãos de comunicação social, que deixarão de ser a câmara de ressonância da dissidência cavaquista.

28.10.04

O embaraço da nudez em sonhos

Há sonhos bizarros. Às vezes sonho que saio de casa e que me esqueci de vestir roupa. E só dou conta que passeio nu quando reparo que os outros olham para mim com um misto de surpresa, perplexidade e troça. Sentindo-me o alvo de todos os olhares, ao início não consigo perceber o motivo. Só passados longos minutos de caminhada acabo por descer à terra. É nessa altura que sou acometido por uma terrível aflição: estar nu na rua, longe de casa, sem nada poder fazer para remediar a vergonha que se abate. Regressar significa palmilhar o mesmo caminho, cruzar com outras tantas pessoas, ser motivo de chacota de tantos quantos zurzissem com desdém.

Nestes sonhos, tento apanhar um táxi que me leve de regresso a casa sem ter que passar pela vergonha redobrada de expor a nudez aos outros a não ser ao taxista. Vergonha acentuada porque na viagem de ida não tinha dado conta da bizarra condição em que me tinha metido. É fácil expor qualquer fraqueza aos olhos dos outros quando não damos conta de que o estamos a fazer. Outra é a conversa quando somos empurrados à demonstração pública das nossas debilidades.

Por norma, acordo quando o impasse se instala. Quando nenhum taxista corresponde ao meu chamamento, o que me força a um percurso errante por vielas sombrias, tentando fugir de seres humanos que decerto iriam escarnecer da patetice. Deambulo como se fosse um animal vadio, numa fuga dos seres humanos que o perseguem e causam sofrimento. É uma nudez embaraçosa, que teria o condão de esconder de mim mesmo se me pudesse volatilizar no espaço. Mas não o consigo. A agitação termina quando o sono se desperta numa convulsão aflitiva. Afinal não passava de um sonho. Posso acordar descansado que a troça não era real.

Gostava de ter conhecimentos para perceber se os sonhos que visitam com assiduidade têm algum simbolismo particular. Será que tenho vergonha do meu corpo? Ou será que aflige um acontecimento que faça de mim o motivo de troça pública? Indo por esta vereda, está aqui a explicação para o recato, para a fobia de multidões, para o refúgio no anonimato, a fuga ao reconhecimento público? Mas não será a minha vida, na prática, a rejeição do enunciado da última pergunta?

Por vezes os sonhos retratam uma aproximação a situações vividas. Não sei se esta tendência onírica é a ilustração de algo que se passou em tempos – até porque as coisas foram bem diferentes da imagem reproduzida pelos sonhos, e não consigo recordar se este episódio precedeu a sucessão de sonhos descritos, ou se eles já vêm de momento anterior. Tudo se passou há dez anos, num dos primeiros anos de docência. Concentrado na exposição da matéria, reparei que os alunos sentados nas duas primeiras filas cochichavam entre si, segredavam sorrisos indiscretos que se perdiam pelo canto da boca. À medida que ia andando de um lado para o outro da sala, comecei a ficar inquieto com a ligeira turbulência que se tinha instalado na sala.

Ao fim de algum tempo percebi que uns quantos alunos (mais as do sexo feminino…) percorriam com a vista as minhas digressões entre as extremidades da sala. Fixavam a vista num qualquer ponto localizado algures à volta da cintura. Fiquei intrigado. O que seria que prendia tanta atenção? Mal lancei esta interrogação e fiz meia volta, encaminhei-me em direcção da janela que dá para o exterior. Era fim de tarde, de um Outono já tardio. A penumbra tinha-se abatido sobre a cidade. As luzes da sala permitiam o reflexo da minha imagem no vidro da janela, que funcionava como espelho. Foi então que percebi a razão de tanta algazarra contida: a braguilha das calças estava aberta, deixando à um pouco à espreita…dos coloridos boxers!

Desconheço se há relação de causa e efeito entre este episódio e os sonhos de nudez que me assaltam de vez em quando. Não me parece que haja razão para tal relação causal: são situações diferentes, e o episódio passado na universidade não me traumatizou – longe disso. Quando vi a situação em que a derradeira ida à casa de banho me tinha colocado, fiz de conta que não tinha dado conta. Em vez de fechar discretamente a braguilha, deixei-me estar até ao final da aula. Então pus-me a recordar a cara de divertimento dos alunos e também me diverti com a distracção que tinha sido pretexto para uma aula diferente.

Seria pior se, à saída da casa de banho, algo sem ser roupa ficasse dependurado na braguilha entreaberta. Aí sim, a chacota seria total e passaria para o anedotário local. Aí sim, talvez encontrasse explicação para os sonhos bizarros que me assaltam o sono.

27.10.04

O caso Buttiglione: paga o justo pelo pecador?

Com a teimosia de José Barroso em manter o comissário italiano na pasta dos assuntos internos e justiça, existe o risco de vinte e quatro pessoas (os designados pelos governos dos Estados membros para cargos na Comissão) caírem no cadafalso por pecadilhos alheios. Porque o italiano Buttiglione cometeu a imprudência de fazer afirmações que raiam o politicamente incorrecto. As regras da União Europeia exigem que a Comissão só possa ser empossada depois de passar pelo voto afirmativo do Parlamento Europeu. Como esta instituição só pode aprovar ou rejeitar em bloco o colégio de comissários, a manter-se a teimosia de Barroso pode acontecer que os restantes comissários nunca o cheguem a ser. Por isso faz sentido a interrogação: será um caso em que os justos (os vinte e quatro) pagam pelo pecador (Buttiglione)?

Este político italiano faz parte da velha guarda católica. Consta que tem um passado de fundamentalismo católico, hoje verberado por ser um anacronismo. Buttiglione sempre esteve ao lado das causas mais conservadoras, conotadas com o catolicismo arcaico. Por isso há quem sugira, com laivos imaginativos, que Buttiglione não é o representante da Itália na Comissão, antes o representante de um Estado que não faz parte da União Europeia – o Vaticano.

Mais do que o passado de Buttiglione, foram as suas declarações recentes que contribuíram para a espiral de acontecimentos que abeira a União de uma crise sem precedentes. Em pleno Parlamento Europeu, Buttiglione defendeu a ideia de que a homossexualidade é um pecado, que as mães solteiras não têm a mesma capacidade para educar os filhos, que o lugar das mulheres não é no mercado de trabalho mas antes em casa, ocupadas nas lides domésticas. São ideias aberrantes. Chocam por serem ultrapassadas, por ilustrarem uma forma de pensamento desenquadrada dos tempos em que vivemos.

Estas declarações foram o detonador de uma tempestade que visa ceifar Buttiglione – ou toda a Comissão, se persistir a teimosia de Barroso. As esquerdas sentiram-se ofendidas na sua dignidade e saltaram com toda a ferocidade, querendo a crucificação do ignóbil Buttiglione. Mesmo os deputados do grupo liberal e reformista estão com dúvidas em dar o consentimento a esta Comissão que abriga no seu seio personagem tão “retrógrada”. A menos que haja uma viragem de última hora, daqueles compromissos negociais em que a União Europeia é pródiga, a nau de Barroso está prestes a ir ao fundo mesmo antes de zarpar.

Concordo com as razões dos que se sentiram chocados com as ideias de Buttiglione. Mas não será mais importante: a) constatar que um dos valores fundamentais da sociedade europeia é a tolerância e, como tal, Buttiglione tem direito a exprimir as ideias que cultiva, por mais absurdas que pareçam? b) Não terão estas virgens ofendidas esquecido que Buttiglione não tem poderes para impor uma política na sua área de actuação sem o consentimento dos outros comissários?

A meu ver estes dois aspectos são decisivos. Primeiro pela intolerância demonstrada pelos críticos de Buttiglione. Admito que sejam muitos os anti-corpos contra o catolicismo radical que este senhor representa. O meu ateísmo simpatiza com esta oposição. Outra coisa é querer calar as ideias de alguém, mesmo quando essas ideias furam o véu do que é hoje politicamente consentido. Por este andar, estamos cada vez mais a fixar as coordenadas de um “pensamento único” que obedece às linhas motrizes de um “politicamente correcto” soprado dos lados das esquerdas. Tudo o que fuja a essas coordenadas é atacado sem dó nem piedade. Não será um totalitarismo encapotado?

O segundo aspecto também é importante. Buttiglione foi designado para um pelouro que toca questões delicadas onde o seu pensamento levanta sérias reservas (liberdades fundamentais, por exemplo). Mas as regras de funcionamento da Comissão exigem decisões tomadas colegialmente. Haverá quem acredite que Buttiglione conseguisse impor as suas ideias bizantinas aos restantes vinte e quatro comissários? Só por falta de honestidade intelectual pode alguém a responder com a afirmativa.

Não sei o que me inquieta mais: se a possibilidade de um sorumbático católico empedernido tomar posse na Comissão Europeia, se a intolerância das esquerdas que vomitam todo o seu fel contra quem tenha a ousadia de proferir afirmações que saem doa cânones do politicamente incorrecto. E pergunto-me se os segundos não são os modernos inquisidores, tal como no passado outros inquisidores levaram à fogueira quem se desalinhava em relação às ideias oficiais.

Descontando as fogueiras, o resultado não será diferente: um linchamento, suave nesta versão hodierna, por estes detentores do monopólio da boa consciência social.

26.10.04

Palavrões em estádios de futebol banidos na Bulgária

É esta a intenção do governo búlgaro, que fez aprovar legislação nesse sentido. Coisa diferente é saber se consegue levar a água ao seu moinho. Senão tentemos idealizar a concretização desta proibição na prática. Como poderão as autoridades búlgaras tornar a proibição de palavrões numa regra eficaz?

Poderão contar com o civismo dos adeptos, subitamente convertidos a uma nova ortodoxia de urbanidade que os transforma em recatados meninos incapazes de proferir uma palavra que passe além do calão? Não conheço o povo búlgaro para afiançar se é possível esta conversão a um novo paradigma linguístico. Dando de barato que nisto das emoções desregradas os adeptos obedecem a características uniformes em qualquer local do planeta, e descrente como sou na apetência do ser humano para a mutação a velocidades supersónicas, não acredito que sejam os adeptos búlgaros a adoptar voluntariamente um novo comportamento que faça a vontade dos governantes.

Como estes insistem numa espécie de higiene verbal dentro dos estádios, resta a hipótese do policiamento feroz dos adeptos. O que faz adivinhar os estádios preenchidos por agentes de autoridades, quem sabe se trajando à civil, para apanhar os que persistem em fazer tábua rasa da nova lei. Todos vigiam todos, com receio de que cada um seja o próximo apanhado na esparrela da lei, ficando ao alcance das coimas que se anunciam elevadas.

Confrontados com o espartilho da contenção verbal, os adeptos enveredam por uma de duas vias: ou deixam de vibrar com o espectáculo, para não serem atraiçoados pela destemperança verbal e terem que desembolsar quantias elevadas que alimentam o erário público; ou deixam de frequentar os estádios, com receio de se encaminharem para um penúria lacrimejante. Seja qual for a opção, a medida tem muito de castradora. Funciona como uma venda que se coloca na boca dos adeptos que, possuídos pela irracional emoção de quem ferve com o espectáculo, deixam escapar insultos e outros impropérios com a mesma fluência de uma diarreia.

No fundo, as autoridades búlgaras não devem gostar de futebol. O objectivo da medida não será engrossar os cofres do Estado com as multas aplicadas aos mal-educados adeptos que infringem as normas de recato verbal. O verdadeiro objectivo será esvaziar os estádios de futebol, tirando-lhes o sal e a pimenta que são um ingrediente especial do desporto – a emoção dos adeptos, o calor que se transmite das bancadas para o relvado e que empolga os intervenientes.

Tento imaginar a aplicação da medida em Portugal. Em boa verdade, não estou a ver a mínima hipótese de alguma vez um governo se aventurar no anúncio de semelhante medida. Tão forte é a tribo do futebol, e tão empenhada no desbragamento verbal ela está, que esta medida nunca poderia passar dos sonhos do maior dos utopistas. Mesmo assim, levemos a insólita hipótese ao extremo. Para aqueles que, ao menos uma vez na vida, assistiram a um jogo de futebol, decerto terá sido fácil detectar a enxurrada de palavrões que invade as bancadas. Não se passa um minuto sem que as pessoas à nossa volta não façam disparar a artilharia de palavrões que faria corar de vergonha os guardiães da decência.

Disparam em todos os sentidos: o árbitro é o mais visado (insulta-se mesmo antes de começar o jogo – “só para adiantar trabalho”, como me explicou um adepto quando lhe perguntei porque estava a chamar nomes ao árbitro se ele ainda nem sequer tinha começado o jogo…); os jogadores da equipa adversária também são bombardeados com a artilharia de vitupérios, como se o coro os levasse à desmoralização; e, quando as coisas correm mal à equipa da preferência, até os próprios jogadores não escapam ao vernáculo das massas.

Como somos latinos, usa-se dizer que temos o sangue na guelra. Os búlgaros não são latinos, são eslavos, povos mais calmos. Se na Bulgária existe a necessidade de regulamentar os comportamentos de quem frequenta estádios, numa cruzada em busca da urbanidade dos espectadores, por maioria de razão essa cruzada se devia estender até aos países onde a língua se solta com mais facilidade para o insulto fácil. Os adversários do protagonismo do futebol podiam aproveitar a ocasião para lançar uma campanha de descrédito da tribo que se alimenta deste desporto, propondo uma lei idêntica à aprovada na Bulgária. Eis a melhor forma de destruir por dentro o protagonismo do futebol.

Não antevejo sucesso a essa empresa. Porque seria anti-democrática (e agora a voz do povo está cada vez mais na moda, como imperativo que deve ser escutado, mesmo que se confunda os gritos de uns poucos com o sentimento da maioria). E porque iria subtrair a emoção das massas que se deixam iludir com o espectáculo do futebol, como se os jogos da equipa do coração fossem o único tónico que imprime rumo à sua vida. Com tanta emoção à flor da pele, como aceitar a castração das emoções, como silenciar as vozes das hordas irracionais que se passeiam pelos estádios? Aqui sim, um travão à liberdade de expressão – também muito em voga nos dias que correm. Não há lugar a tais exageros. Até porque se sabe que as mães dos árbitros não são as senhoras pouco recomendáveis que as multidões dos estádios insinuam…

25.10.04

Bizarria?

Conseguir adormecer a minha filha ao som de Marylin Manson.

Mar bravio

As primeiras tempestades de Outono trazem os ventos de sudoeste soprados com violência. Tudo se revolve no ar – as folhas e os galhos que se desprendem das árvores, deixando-as desnudadas; o lixo que se acumula com o descuido das pessoas. No que se convencionou chamar “mau tempo”, encerram-se imagens de uma beleza inexplicável. Contemplar o mar quando o vento se faz sentir em toda a sua fúria é uma dessas imagens que ficou guardada na minha retina, depois de quase trinta anos naquela que foi a minha casa, em todo este tempo em que acordava com vista para o rio e para o mar. E em incontáveis passeios pedestres à beira-mar, desafinado os ventos que me empurravam para onde não queria ir, ao sabor da chuva que tombava com inclemência.

Agora que o quadro bucólico não visita a paisagem que se espraia diante dos meus olhos, tenho me deslocar para poder espreitar o Atlântico que adormece nas praias da cidade. É um lugar de inspiração, onde o mais recôndito da alma encontra revigoramento. Sobretudo quando o “mau tempo” se instala por uns dias e decide empurrar a chuva e o vento contra a cidade, num abraço do qual ela não consegue escapar.

As vagas alterosas revolvem-se umas nas outras. Com a agitação que o vento imprime ao mar, ele transtorna-se e ganha uma cor acastanhada. Sinal da fúria em que se encontra, vomita ondas gigantescas que se encapelam para tombar, com estrépito, sobre o mar que nunca é chão. Acercando-me da linha que divide o areal da água, consigo ser salpicado pelas gotículas marítimas que andam à solta, empurradas pelo vento desordenado, vindas das águas transtornadas que lutam para chegar à areia. Diria que lutam com impaciência para se estenderem no areal, extenuadas, depois de horas sem fim de solavancos em alto mar.

Há ondas que desfalecem contra as rochas, criando um fulgurante mar de espuma que as abraça. Estas rochas servem, ano atrás de ano, de ancoradouro que absorve o impacto das ondas bravas que têm pressa de chegar a terra. Muitas estatelam-se contra as rochas, as vítimas necessárias da violência dos elementos. Na linha do horizonte, os navios que se aproximam do porto balançam ao sabor das ondas errantes. Mesmo estando ao longe, não é difícil ver a oscilação que os traz numa dança ritmada, para-cima-para-baixo. Um rebocador sai do paredão, aventura-se no mar. A espaços, parece engolido pelo estampido das ondas que vão altas. Uns segundos de angústia bastam para a habituação: por detrás da opacidade trazida por uma onda mais alta, lá surge o rebocador que caminha, indomável, rumo à sua tarefa.

É recompensador o espectáculo do mar que se mostra na sua rebeldia. Testemunhar a desordem causada pelo vento selvagem, como podem as rajadas de vento trazer as vagas de fundo que fazem do mar um espelho quebrado, um lençol desarranjado que se volteia de lado para lado, caótico, numa harmonia que entra pelos olhos do observador. Cumpre-se o destino da bonança. Atrás do estio chega o momento da tormentosa estação que transporta as primeiras sementes da invernia. O vento que assobia, furioso, e o mar que ameaça com a sua impetuosidade destruidora, são a antítese da bonançosa estação que chegou ao fim.

E como é belo perder algum tempo a contemplar a encenação das ondas que se sucedem na sua fúria avassaladora! Como é intrigante imaginar os efeitos devastadores daquelas bátegas de água salgada se alguma alma intrépida ousasse entrar mar dentro. O efeito da água que se espalma contra o paredão insinua os efeitos mortais da aventura. E daria postais ilustrados com mais valor do que mil palavras.

O mar castanho transforma-se numa cortina de espuma alva que se abate nas gastas rochas molhadas do paredão, com a lenta velocidade da água que se desfaz em pequenas gotas. Como se fosse o retrato do que há-de vir, horas passadas sobre a intempérie: outra vez a acalmia, o mar que vai perdendo a sua ruidosa raiva, um mar que se amansa num assisado emudecimento. As nuvens são varridas pelo céu azul que deixa o sol a descoberto. O vento vai fustigar outras paragens, dando uma trégua que traz de novo o “bom tempo”.

22.10.04

Das legitimidades ilegais que se sucedem no tempo

Não gosto de escrever sobre futebol – no que o futebol tem de luta entre clubes, da rivalidade irracional que alimenta o fanatismo clubista, das tricas que se tecem nos bastidores, no protagonismo dos agentes exteriores ao jogo que se joga no relvado. Sei que o futebol é o nutriente de paixões irreflectidas, que cortam a sociedade na transversal – desde o povo ignaro que se cega no calor de um jogo, até às elites intelectuais que perdem o norte e se deixam envolver pelo manto da irracionalidade quando discutem sobre futebol (veja-se esta confissão de Francisco José Viegas, por exemplo).

Refiro-me às lamentáveis incidências do jogo de domingo passado entre dois clubes de cidades diferentes que alimentam um ódio recíproco que vai para além da simples rivalidade desportiva. Não vi o jogo. Tarefas mais nobres chamavam a minha atenção. Apenas fui confrontado, no dia seguinte, por uma conferência de imprensa que a comunicação social não hesitou em apelidar, com justeza, de surrealista. O nível que campeia entre a tribo do futebol sempre se pautou pela baixaria. Quando se pensava que tinham batido no fundo, eis que somos surpreendidos: afinal ainda era possível ir mais baixo.

Vou fugir das discussões dos pormenores – se a bola entrou ou não, se foi ou não penálti, se o árbitro teve ou não uma actuação premeditada para beneficiar a equipa que ganhou o jogo, e muito menos a troca de mimos entre os presidentes dos dois clubes. Não me apetece contribuir para o peditório canhestro de tanta mesquinhez. Mais útil é reflectir sobre a ideia que perpassa a alma dos adeptos do clube da cidade onde vivo. O que vou relatar não aconteceu de forma episódica. Foram várias as vezes que, em diversos locais, ouvi pessoas atingidas pela cegueira clubista a alinhavarem o raciocínio que me deixou perplexo.

Na rua, em cafés, nos corredores do hospital, pessoas menos formadas ou com formação superior – todos convergiam no mesmo sentido. Admitiam, com renitência, que o árbitro tinha favorecido a equipa da sua preferência. Só com renitência o admitiam, como se tentassem tapar o sol com a peneira e negar as evidências que saltam à vista desarmada. Isto ainda se compreende. É a fé clubista que tolda a frieza de espírito, impedindo que a vista alcance para além da miopia clubista. Intrigante era o que completava o raciocínio: que durante anos a fio (“no tempo do Salazar”, escutei várias pessoas a vociferar) a equipa da capital foi favorecida. Um dos senhores com que me cruzei na rua lembrava o seu interlocutor que “até empurravam o nosso guarda-redes para dentro da baliza, e os golos contavam à mesma”.

Percebi a mensagem: no passado a equipa rival mereceu os benefícios dos árbitros. Foi ela que venceu campeonatos atrás de campeonatos à custa de malabarismos da arbitragem. Privilégios que privaram as equipas rivais – e, em especial, a equipa da minha cidade – de títulos. Concorrência desleal, portanto. Estas pessoas sugeriam que esta legitimidade era ilegal, porque sustentava a concorrência desleal que afastou a equipa da minha cidade de títulos que seriam merecidos em condições de luta igual.

Esta ideia contém uma perversidade que, confesso, fiquei sem perceber se era inocente ou intencionada. Ao sugerir que no passado a equipa rival foi favorecida pelo regime, insinua-se que agora chegou o tempo das regalias mudarem para a equipa da minha cidade. Esta gente criticava as benesses que levavam “a equipa lá de baixo” às vitórias. Mas agora esquece-se que são os mesmos procedimentos que estão na origem dos títulos que a equipa da minha cidade tem acumulado. Em que ficamos? Os privilégios da concorrência desleal só são censurados quando são contra nós? E quando nós somos os beneficiados por esta ilegalidade, passamos uma esponja pela memória e apenas nos dedicamos a festejar as vitórias alcançadas?

É preocupante que haja pessoas sem pejo em admitir que se no passado o adversário foi beneficiado, agora chegou a sua vez de degustar o mesmo repasto. Joga-se na mesma moeda, como se as vitórias conquistadas sem auxílios alheios valessem a mesma coisa que as vitórias que se suportam em ajudas vindas de fora. Quando se admite isto em público, fica exposta a mediocridade que ainda por aí à solta. Confirmando que os meios – todos os meios – justificam os fins.

21.10.04

A despersonalização do pai

Da torrente de emoções dos últimos dias, guardo mais uma recordação. De como um homem que dentro de horas será pai é remetido à condição de anonimato. Nas horas que antecedem o parto, como nos dias da convalescença passados num quarto do hospital, a mãe é sempre tratada pelo nome próprio. O pai, relegado para plano secundário, não tem direito ao mesmo privilégio. Das enfermeiras ao pessoal auxiliar, dos médicos que foram passando pelo quarto até às pessoas que estavam no bloco operatório, todos me tratavam como “o pai”. Quando conhecia pessoas novas, era apresentado como “o pai”. Por momentos perdi o nome próprio e ganhei uma nova condição. Perguntei-me se "pai" não seria o meu nome próprio...

Está certo, é a mãe que passa pelas dores do parto. São elas que mais sacrifícios suportam para que o bebé nasça. Estando o pai ausente das dores físicas do parto, é injusto relegá-lo para uma posição secundária – a que corresponde a esquecer o seu nome. Porque o pai foi parte activa na concepção do nascituro. E porque o pai também está mergulhado numa pressão psicológica, ansioso que o parto corra bem e que o seu filho veja a luz do dia em segurança e com perfeição. Quem gerou o filho foi uma dupla. Se os caprichos da natureza determinam que seja a mãe a suportar o maior sofrimento nos momentos que antecedem a vinda da criança ao mundo, isso não pode ser razão para esquecer a importância do pai.

Depois fala-se em sexismo, na tenebrosa desigualdade de sexos que tem penalizado a mulher em favor do homem ao longo da história da humanidade. Não contesto a razão deste discurso sexista, sobretudo quando ele foca as desigualdades gritantes que se sucederam no passado. Quanto mais distante o passado, maiores essas desigualdades. Manter o discurso sexista nos tempos que correm parece-me despropositado. Caminhamos para a inversão dos papéis: para catapultar a mulher para o protagonismo que merece, lançam-se as sementes da discriminação positiva. Que, como a expressão o revela, não passa de uma discriminação. Associar um adjectivo qualificativo com uma conotação agradável (positivo) não chega para atenuar a discriminação que existe em todo o caso.

Com a subalternização do papel do pai, estamos no terreno da retórica sexista que tenta sobrevalorizar o papel da mulher como compensação dos erros dos nossos antepassados. Como se os homens de hoje tivessem que ser responsabilizados pelos desmandos das gerações anteriores, como se essa factura fosse o preço de uma justiça inadiável.

Insisto: não vale a pena reequilibrar os papéis de ambos os sexos quando uma criança nasce. A natureza já se encarregou da distribuição de papéis. Subvertê-la é negar o papel mediador da natureza. É nesta óptica que inscrevo o costume da mãe ter o privilégio de escutar o seu nome, enquanto o pai se contenta em saber que é “o pai”. Quase como se do nascimento do filho resultasse uma re-identificação do pai, que ele deixasse de se chamar Manuel, Joaquim ou Miguel, para passar a ser mais um de uma imensa massa anónima de “pais”, apenas “pais”.

No meio da excitação não dei importância na altura. Mais relevante do que o tratamento que me deram – se me chamaram “pai”, Paulo ou outro nome qualquer – era saber se o parto ia correr bem, se a filha estava a suportar bem os primeiros dias de vida após o nascimento. Só com alguma distância de tempo é que isto assoma à memória. Só então, quando as recordações são atiradas para a superfície desde o baú da memória, é que há alguma estranheza por nenhuma das pessoas que passaram por mim durante os três dias de estadia no hospital alguma vez ter pronunciado o meu nome.

Este ciúme atípico – porque salutar – leva-me a pensar se da próxima vez não será melhor trazer à lapela um dístico onde, em letras bem visíveis, surge a palavra “Paulo”. E, se necessário for, um outro dístico na cabeça para chamar a atenção das pessoas: “tratem-me pelo meu nome”, com uma seta a indicar a lapela onde surge o dístico com o nome.

20.10.04

A busca incessante do elixir da juventude

Temos a tendência para perpetuar a juventude quando os verdes anos já se são o chão do passado. Reconhecimento do que ficou por fazer nos tempos da juventude, talvez. Ou amedrontamento da velhice que ainda tarda, mas se aproxima com o dedilhar de cada página do calendário. Ou ainda os primeiros sinais da vitalidade que se esvai, seja pela doença que é visita mais frequente, seja pela frescura física de outrora que já não é de agora. Pode ainda ser apenas o reflexo de um momento de nostalgia: da irresponsabilidade sadia que não trazia os cabelos brancos, da ausência de preocupações, um tempo em que o lazer era a prioridade, não o trabalho que agora afogueia e consome toda a intensidade da vida.

Seja qual for o sintoma, a agulha da bússola orienta-se para um elixir da juventude que a faça perdurar. Nem que seja para transportar uma dimensão enganosa à vida de quem se quer agarrar à juventude que ficou para trás, mas ainda assim uma juventude prolongada. Não sei se é isto que se passa quando dou comigo a recordar como era tratado pelos vizinhos do sítio onde os meus pais viviam. Já entrado na casa dos trinta, sempre que me cruzava com certas senhoras elas insistiam em dar os bons dias como desde sempre o tinham feito: “bom dia, menino Paulo”.

É este “menino Paulo” que me fazia as delícias. Como disse, podia já não ser a criança ou o adolescente que elas se habituaram a tratar por “menino Paulo”. Podia já trazer alguns cabelos acinzentados que desvelam a idade que irrompe impiedosa. Podia até aparecer de fato e gravata, querendo exteriorizar a responsabilidade que os imperativos profissionais exigem. Ainda assim era, e sempre, o “menino Paulo”. Como sinal de uma idade que ficou marcada para sempre na retina daquelas senhoras. Como se uma idade se congelasse, como o tempo parasse nenhures e encaixilhasse o tratamento que sempre me deram. Para aquelas senhoras nunca seria o que outras pessoas me chamam, muito menos a categoria profissional que me traz o “privilégio” (aqui as aspas têm toda a propriedade) de certos tratamentos apropriados. Apenas “menino Paulo”.

Há melhor elixir da juventude do que este? Ainda que não passe de uma simples consolação; nem que seja um prémio pelo “bom rapaz” que fui, para levar aquelas senhoras à deferência do mesmo tratamento da infância e da adolescência; seja como for, é um nutriente que traz um contentamento difícil de explicar. Não vejo nisto uma forma de prolongar a juventude perdida no tempo que passou. Tudo tem o seu tempo, e há certas amarguras que hão-de andar comigo durante toda a vida (o medo da morte, por exemplo). Tenho a consciência de que o tempo se vai vivendo consoante as circunstâncias – umas, que somos nós mesmos a forjar; outras, que nos são alheias e às quais temos que nos adaptar.

A recordação deste momento inolvidável por que passava ao regressar ao local onde vivi quase trinta anos não tem o significado de uma busca incessante da juventude que ficou registada nas páginas da história. Reflecte apenas o quão bem me sabia escutar aquela expressão, uma melodia que adoçava os ouvidos.

O diagnóstico é outro quando me deixo descair para a mesma geração dos meus alunos. Às vezes o tema exige avaliar os efeitos inter-geracionais de uma certa medida. É aqui que me deixo levar pela distracção e, com espontaneidade, solta-se da minha boca “a nossa geração” – como se os alunos, muitos deles com menos quinze anos, possam ser metidos na minha geração, ou eu na geração deles. Quando dou conta do erro e o corrijo, depois reflicto sobre as motivações. Não creio que seja a necessidade de retroceder na idade, para espaventar o fantasma da meia-idade que anuncia para breve a velhice. O que me conduz a esta comparação simpática é olhar para os alunos e sentir que estou mais próximo deles do que das gerações que me antecedem. Vejo-me como um entre eles, esquecendo-me que o espelho não deixa mentir e que as marcas da idade já se fazem sentir no meu caso, não no deles.

Mas a juventude transcende a verdade do bilhete de identidade. É um lugar comum afirmar que a juventude é um estado de espírito. Eu acho que é bem mais do que isso: é um processo de reconstrução interior, um revigoramento procurado e alcançado através de novos desafios que façam da vida um devir com sentido. Novas buscas, novas causas, novos rumos – ou apenas os que já vinham sido trilhados, com a consciência das recompensas íntimas que trazem. É este o fio-de-prumo que mostra o tónico da juventude.

19.10.04

As delícias da paternidade

Ser pai é uma exuberância. Um novo fio de vida que se ergue no horizonte. Para poder contemplar a filha que nasceu e sentir que há uma nova expressão de vida que exige tanta atenção. Não é pela dependência, nem pela responsabilidade, que a condição de pai traz as suas compensações. É mais pelo turbilhão de sensações que percorrem o interior, um bem-estar inaudito que rejuvenesce, cauciona novas energias.

Mil vezes se ouvem os relatos, mil vezes a conclusão de que a consciência das sensações fantásticas exige passarmos pela experiência. Quando são outros a revelar as frutuosas sensações da paternidade, o máximo a que podemos aspirar é partilhar com eles o contentamento, a exultação que resplandece a cada palavra que se solta. Outra coisa é sentir o amplexo de sentimentos quando o filho é nosso. É aí que se compreende que a experiência só pode ser vivida quando ela chega até nós, não quando são os outros a vivê-la e relatá-la.

E, no entanto, a paternidade é um sobressalto, um recompensador sobressalto. A fragilidade da nova vida redobra as atenções. Vigilantes, os pais não deixam passar em branco o mínimo esgar de dor, o choro de desconforto, um corpo franzino que se contorce com as dores de quem se adapta a um novo ambiente. Mas sentem-se recompensados ao olharem embevecidos para a perfeição do filho que geraram, para a expressão de tranquilidade quando dorme o sono profundo. Vigilantes, envaidecem com os elogios. Sentem-se o centro do mundo – condição que é do filho que geraram, mas neles estendida como os fautores da obra-prima que conceberam.

Os dias iniciais da paternidade são de uma intensidade ímpar. Pelo que se aprende a cada segundo, pelos momentos consumidos a contemplar o filho que acabou de nascer. Pelo sono perdido no meio de cólicas que trazem a dor e um choro de aflição. Aflição comungada pelos pais, sem recursos para levar a dor até outras paragens. Uma preocupação que faz parte das dores saborosas trazidas pela paternidade. Um custo necessário incluído na recompensa incomensurável de ser pai.

Na fragilidade da vida que geraram, os pais são os depositários de um sentimento sem fim, o melhor alimento que pode saciar o filho. Uma cortina indelével que o prende à vida, numa torrente de sensações que afiançam o crescimento salutar. É um novo mundo que se trilha, como se existissem outros planetas por habitar a exigirem dos pais toda uma vida nova que se revigora com a nova vida que está ali, silenciosa, diante dos seus olhos. Um festim que bebe inspiração na cumplicidade dos pais, um cálice que se ergue pela vida transbordante que se promete no berço que acolhe o filho. Pessoas novas – é o que são os pais, inundados por um mar de felicidade que não se conta em palavras, apenas se sente a circular pelo interior.

Estes caminhos nunca dantes calcorreados trazem surpresas a cada esquina dobrada. São novas lições que se aprendem todos os dias, o fruto de um crescimento contínuo que anda de braço dado com o filho e com os pais. Um percurso conjunto em que os pais e o filho aprendem mutuamente. Constroem em conjunto um mundo novo, a sua coutada privada de felicidade. As sensações inebriantes são o motivo para uma excitação que é, no entanto, uma excitação tranquila, temperada pela tranquilidade que se desprende da nova vida no seu sono silencioso.

18.10.04

A primeira carta da Leonor

Hoje tomo a vez do meu pai. Anda cansado, meio atarantado com a emoção de me ter visto nascer. Por isso hoje estou a substitui-lo. Para me apresentar ao mundo. Para mostrar o que senti quando deixei o aconchego da barriga da minha mãe.

Estranhei quando me tiraram lá de dentro. Passei nove meses protegida, num ambiente que me dava conforto. Não tinha que fazer nada senão crescer. Agora ouço-os dizer que tenho que me alimentar de três em três horas, de quatro em quatro horas, ou quando me apetecer. Há algumas palavras que estou a aprender desde que vim ao mundo. “Alimentar” é uma delas. Enquanto estava fechada dentro da minha mãe, nem sequer dava conta que comia. Só sabia que à medida que os dias iam passando o tamanho ia aumentando.

Deixar de ter espaço para me movimentar. Pararam as acrobacias que gostava de fazer nos primeiros meses. De repente, dei uma cambalhota e passei a andar com a cabeça ao contrário (é o que diziam os meus pais e o médico que me via de mês a mês). Eu achava estranho quando os ouvia dizer isto. Tinha lá a noção do sítio para onde devem estar virados pés e cabeça… Só quando me empurraram para fora da barriga da mãe é que compreendi. Melhor: surpreendi-me, porque aquelas pessoas, umas vestidos de azul, outras de verde, estavam ao contrário, com a cabeça para cima e os pés assentes no chão.

Foi um choque quando uma mão indiscreta me foi buscar onde eu estava tão sossegada. De repente fiz um esgar que soltou um choro audível. A luz intensa era confusa para os meus sentidos. Os cheiros eram tão diferentes dos que estava habituada. Aqueles barulhos que, sei agora, eram as vozes dos meus pais, ecoavam pelo meu ouvido com uma estridência aflitiva. Não consegui reprimir a voz de protesto – mas o meu pai que esteja sossegado, não sou dessas contestatárias de que ele nada gosta…E se às vezes ando de punho fechado, ele que fique descansado: é apenas o instinto, querer sentir-me mais confortada, como se ainda sentisse a necessidade de procurar uma concha como refúgio. O refúgio que me tiraram naquele sábado, já a tarde ia longa.

Não gostei dos primeiros momentos daquilo a que se chama vida. Senti saudades do remanso da barriga da minha mãe, do calor que me aconchegava. Em vez disso, a luz que me perturbava os olhos, um calor mais seco que vinha de umas lâmpadas que me aqueciam. E tinha que respirar, puxar pelos pulmões. Aprendi que tinha que o fazer para não asfixiar. Como a vida cá fora é tão diferente da vida regalada que tinha na barriga da minha mãe!

A estranheza dos primeiros minutos da vida exterior foi aumentada pelas tropelias que me fizeram. Um senhor e uma senhora meteram tubos pelo nariz, pegaram em mim de trás para a frente, carregaram, pressionaram, mediram, pesaram. Eu ia chorando, exibindo o meu protesto, reclamando que me devolvessem à tranquilidade de onde tinha sido resgatada. Mas já não havia nada a fazer. Sentia, com a passagem dos minutos, que me estavam a preparar para a mesma vida que as outras pessoas levavam há anos.

Depois de vestida pela primeira vez, o meu pai levou-me até junto da minha mãe. Quis sentir o seu afago, ser tocada pelos seus dedos da mesma forma que, momentos antes, o meu pai tinha feito. Comecei a ficar mais agradada com a vida cá fora. Senti conforto ao ser tocada pelos meus pais. Foi um dos primeiros sentimentos que aprendi: carinho. Parece que é o que os pais dão aos bebés sem cessar. Quando me fui sentindo acarinhada, comecei a perceber que cá fora até é melhor do que o sossego do ventre da mãe.

Aprendi outro sentimento, o maior que me fez vir ao mundo: amor, o muito amor que transborda dos meus pais e que me alimenta mais do qualquer leite que me queriam empurrar garganta abaixo. A vida, cá fora, até é boa!

15.10.04

A polícia de segurança pública e a caça aos justos

Há semanas que encontrar estacionamento no local de trabalho é uma tarefa que pode levar ao desespero. Em anos anteriores, por vezes acontecia andar às voltas em busca de um lugar para deixar o carro. Quando a sorte não me bafejava e a hora de uma aula se aproximava, tinha que deixar o carro parado em locais proibidos. As multas eram inevitáveis. É um caso de pagar para ir trabalhar. O preço da civilização, sobretudo quando se observa a quantidade (e a qualidade) do parque automóvel da comunidade estudantil.

Neste ano o panorama piorou. Já por três vezes deparei com o espectáculo montado pela polícia (penso que se trata da polícia de segurança pública) na parte superior do jardim de Arca d’Água. É verdade que existe uma linha amarela que proíbe o estacionamento junto ao passeio do lado direito. Perceber a razão da linha amarela naquele local é um mistério impossível de decifrar. Os automóveis podem estacionar de ambos os lados da rua sem perturbarem o trânsito. Em anos anteriores, a polícia mostrou-se condescendente com a infracção à misteriosa linha amarela. Sempre tapou os olhos, ano após ano, ao estacionamento naquele local.

Um belo dia, pela manhã, havia muitos lugares livres naquele local. Estranhei a fartura. Como a hora da aula se aproximava, parei o carro num desses locais. Quando me encaminhava a pé para a entrada da universidade percebi a razão da abundância: a PSP estava a fazer uma razia. Todos os carros que ainda estavam parados já tinham bloqueadores presos às rodas. Esperava-os o reboque e uma multa generosa. Os lugares vagos pertenciam a pessoas que tiveram a sorte de ser avisadas da visita intempestiva da polícia, ou a automóveis que entretanto já tinham feito a viagem até ao parque da polícia à boleia do reboque. Recuei e fui retirar o carro para um lugar seguro.

Nas duas semanas seguintes este espectáculo repetiu-se por mais duas vezes. Uma autêntica caça à multa, com o estendal montado em pleno jardim: uma carrinha da polícia com banca instalada, um toldo para proteger os senhores guardas da inclemência atmosférica, que o Outono é uma estação imprevisível. Uma fila de estudantes, esperando para mostrar a documentação, antes de os guardas de serviço passarem amavelmente a multa e indicarem aos infractores o local onde o carro está depositado. Uma encenação que tresandava a abuso de autoridade.

Há dias, num fim de tarde depois de voltas sucessivas até encontrar um longínquo lugar para estacionar, cruzei-me com os arrumadores que costumam parar no local. Perguntei se os locais vagos na zona que é alvo do apetite policial eram seguros para estacionar. Na verdade, só tinha testemunhado as simpáticas visitas da PSP durante a manhã. Nunca durante a tarde e muito menos à noite – que os senhores agentes são pais de família e a noite não é hora decente para se trabalhar…Os arrumadores disseram-me que o perigo só existe de manhã. A PSP fecha os olhos a quem quiser desrespeitar a linha amarela durante a tarde e a noite. Perguntei se sabiam as motivações desta insólita perseguição policial. “Sabe como é, são as guerras entre a polícia e o reitor”, foi a resposta.

Fiquei elucidado. É esta a polícia que temos. Entretida em guerras pessoais com o reitor, quem apanha por tabela são os professores, funcionários e alunos que têm o azar de trabalhar e estudar na universidade dirigida pelo reitor-inimigo. Paga o justo pelo pecador. Com a agravante de que estamos a falar de pessoas que usam o automóvel para darem o seu contributo para a criação de riqueza nacional. Como se já não bastassem os impostos que levam uma parte substancial do suor derramado ao fim de cada dia, estas pessoas são ainda brindadas com uma polícia persecutória que não hesita em subtrair mais uma parte do rendimento que o trabalho lhes proporciona – ou encarecer mais ainda o estudo, adicionando as multas às propinas que os estudantes pagam.

Em vez de se preocuparem em perseguir quem não está a cometer nenhum crime, mas apenas a contribuir para o rendimento nacional, a polícia devia ter a dignidade de não molestar os alunos, professores e funcionários como vítimas fáceis das desavenças com o reitor. É mais fácil atingir quem está mais a mão – até porque não podem multar o reitor, pois ele estaciona o carro no parque subterrâneo da universidade (só para privilegiados…).

A polícia prestaria um inestimável serviço público se perseguisse o crime que se comete com abundância pelas redondezas. Em vezes de distribuir multas de estacionamento a torto e a direito, que tal patrulhar a zona para evitar os assaltos que se sucedem todos os dias? Ou será que a polícia prefere atacar os alvos mais fáceis, fechando os olhos às tarefas mais difíceis? Que polícia com pobreza de espírito: os verdadeiros criminosos passam impunes, e quem não ameaça a segurança pública é o alvo preferido da acção policial! É para isto que pagamos impostos?

14.10.04

Democracia musculada: a promessa do caos, segundo o evangelho das esquerdas radicais

Entretido, num tempo de repouso entre duas aulas, em busca das últimas do mundo. Na TSF, a notícia de que a cerimónia solene de abertura do ano lectivo da Universidade de Coimbra não chegou a meio. Foi interrompida por energúmenos que quiseram verberar a política do actual governo. Com a força da força, sem o tempero da razão, esta minoria atropelou as decisões da véspera: um órgão representativo de estudantes, funcionários e professores acordou, por maioria, deixar levar até ao final esta cerimónia solene. A pandilha subiu ao palco e assenhoreou-se do microfone, entoando as palavras de ordem. Eis a democracia em todo o seu esplendor.

A democracia que vem da boca desta gente cheira a cano de esgoto. Ressoa com uma aura de impossibilidade, caso esta gente alguma vez conseguisse tomar as rédeas do poder. São o expoente máximo da intolerância. Em bom rigor, a única tolerância que conhecem é a divulgação das suas ideias, sem dar espaço às ideias que não alinham pelo mesmo diapasão. E depois surgem como virgens condoídas sempre que a pureza dos valores da revolução de Abril é atentada pelos “fascistas” que não alinham ao lado do catecismo revolucionário e anacrónico que os empareda. Como gostava de saber o que pensa deste deplorável episódio um dos gurus intelectuais destes grupelhos, Boaventura Sousa Santos – nem de propósito, professor catedrático da universidade onde os factos aconteceram.

Esta cartilha de intolerância continua sabiamente escondida atrás da retórica cuidadosa que coloca esta gente nos píncaros da popularidade entre uma certa elite aburguesada e intelectual dos grandes centros urbanos. Deixam-se enlevar pela sedução das propostas alternativas. Mas ignoram (acredito, na minha inocência, que ignoram) os valores que alicerçam o pensamento desta gente.

É nestas alturas que me deito a fazer um exercício de adivinhação. Imagino estas esquerdas radicais, coligadas pela sede do poder e do protagonismo, a chegarem ao poder. Em coligação com outras esquerdas mais moderadas, mas sequiosas de apoios para exercer a governação, ou – o mais fantasmagórico dos cenários – sozinhas. Imagino os atropelos à liberdade de expressão, o silenciamento das vozes opositoras. Esta minha adivinhação tem razão de ser: se agora, enquanto franjas minoritárias, não hesitam em atropelar os interesses das maiorias, o que fariam se estivessem escudados num apoio popular de maior dimensão? A minha tentativa de resposta é: procuravam estender a base de apoio através do silenciamento das vozes contrárias.

Mais custa ver estes atropelos à liberdade quando tais manifestações partem de jovens. Talvez seja compreensível, vendo bem as coisas. Fazem parte de uma geração que apenas conhece a negação da liberdade de expressão do que estudaram do Estado Novo. Lêem outro guru – Rosas, o historiador oficial do Estado Novo, como se estivesse empossado de imparcialidade para assumir esta condição – e apenas tomam um contacto teórico com a asfixia das liberdades do passado. Mas depressa se esquecem de fazer a ponte entre a teoria e a prática. O combate político, a demarcação das causas, leva-os a esmurrar a liberdade alheia. Não se diferenciam dos métodos calcorreados sem cessar pelo anterior regime. Só diferem no grau de violência, por estarem afastados da violência institucionalizada à disposição do Estado.

Estes jovens, peças de uma orquestra dirigida pelos estrategas que aqui não dão a cara, são a negação dos valores que dizem defender. Excrescências geradas pela dinâmica social. Compreende-se que lutem pelas suas causas. Não tenho pejo em reconhecer que algumas reúnam a minha simpatia – ainda que a semelhança fique por aqui, por amplas divergências ideológicas. Em alguns aspectos defendemos as mesmas coisas, mas por motivos diametralmente opostos. E, acima de tudo, renego os meios que, para eles, parecem a justificação de todos os fins. Continuo a bater nesta tecla, aqui como noutros domínios: se caminhamos para a sagração dos resultados, sem olhar aos métodos, perdemos a bússola dos valores que nos devem nortear. A liberdade não merece nenhum sacrifício em nome de um resultado. Qualquer que ele seja.

Sem aqueles valores andamos à deriva, ou navegamos por estima, ao sabor da maré, dos humores de quem detiver o poder. As liberdades individuais são um bem precioso para ficarem expostas a estas arbitrariedades. Antecipar um cenário em que esta pandilha se emproasse no papel de guardiã destas liberdades é uma hipótese dantesca. As liberdades perderiam o seu conteúdo objectivo, voláteis que então seriam. Deixariam de existir.

Para os fedelhos instrumentalizados que têm a ousadia de pisar a liberdade dos demais, só há uma solução: apetece dizer, contra a força da falta de razão, a força física. Isso seria fazer o jogo baixo que eles tanto anseiam. Melhor caminho será admitir que eles continuem a poder interromper, a exercer a força bruta da irracionalidade. Ignorá-los, deixá-los a falar sozinhos. Para ver se aprendem que a selvajaria não justifica as causas, nem sequer lhes confere popularidade. Ao menos aos mais novos, pois com esses ainda há a esperança de terem tempo para aprender. Os inspiradores de idade mais avançada, apenas casos perdidos. Esperar que passe a maré.

13.10.04

Imagem, imagem e mais imagem: política, nada mais do que imagem

Não é tema inovador, este da imagem que enclausura os políticos, que faz da política uma arte subordinada aos caprichos dos consultores de imagem. É uma recorrência. Diagnóstico de uma democracia formal, agrilhoada pela ditadura da imagem. Ainda não percebi qual o sentido da relação causal: se é quem constrói a imagem da classe política que influencia os eleitores; ou se é o nivelamento por baixo de quem vota que condiciona a estratégia dos políticos, levando-os a ficar de pés e mãos atados às imposições dos consultores de imagem.

Vivemos um tempo que é o sintoma vivo de como a imagem prevalece. Basta estar com atenção aos discursos, às posturas, aos tiques, às vestes, à forma como eles aparecem e onde surgem, com quem andam emparelhados – basta estar atento a estes pormenores para ver como é a imagem que prende a atenção da classe política. É ela que tem a prioridade na conquista de votos. Os eleitores, criaturas acéfalas, presas aos pormenores do embrulho com que os políticos são apresentados. Deixando de atribuir valor às ideias, essas raridades na discussão política, oásis perdidos na voracidade da mudança que adultera o fenómeno.

O primeiro-ministro é um paradigma. O bom vivant do passado, o sempre jovial rapaz que não perdia uma festarola do pretenso jet-set, deu lugar ao circunspecto homem de Estado. Para arregimentar um capital de confiança junto dos inúmeros cidadãos que só dão atenção ao exterior, à malfadada imagem que teima em ofuscar o genuíno político. O homem que enchia capas e páginas sem conta das impensáveis revistas cor-de-rosa é agora um respeitável governante – pelo menos é a imagem vendida. O ar sempre sério ganhou terreno ao noctívago militante. O homem comum não lhe perdoaria o deslize de manter os hábitos que apenas estão ao alcance de uma reduzida casta de privilegiados – os “parasitas” que alimentam o circuito nocturno.

Os cabelos brancos são ingrediente necessário da cirurgia cosmética que traz respeitabilidade aos políticos. Santana Lopes é um bom exemplo. Enquanto presidente da câmara de Lisboa não lhe conhecia tão abundante cabeleira em tons prateados. De repente, quando se começou a perfilar a hipótese de herdar de bandeja o cargo de primeiro-ministro, a sua cabeça passou a transportar uma cabeleira onde abundam os cabelos brancos untados com uma capa de gel.

Não é caso único. Em 2001, na campanha eleitoral para as eleições autárquicas, recordo-me dos outdoors do candidato do PS à câmara do Porto. Patéticos cartazes, porque, ao que se saiba, nos implantes capilares não crescem cabelos brancos. A menos que os avanços da ciência já tenham chegado a este patamar…Esse senhor, que sofreu mais uma humilhante derrota para o seu curriculum, estocada final numa carreira repleta de ambição desmedida, ostentava na moleirinha cabelo branco que não cresceu consigo. Capachinhos e implantes mais sofisticados não se enraízam ao ponto de captar a genética dos seus proprietários. É impensável imaginar cabelos brancos a crescerem, harmoniosamente, nas partes verdadeiras e falsas dos cabelos de quem tem vergonha de desnudar a sua calvície. Com estes cartazes, o candidato expôs-se ao ridículo. Mas seria necessário estar muito atento para desmontar a incongruência. O que, a bem da verdade, não está ao alcance do eleitor médio.

O exemplo final vem do bem-falante que foi entronizado na liderança do PS. Não me vou demorar na vacuidade do discurso, no chorrilho de lugares-comuns, na epifania das citações que se atropelam com a falta de ideias consistentes desta versão requentada do engenheiro Guterres. Um só pormenor chamou a minha atenção, também ele relacionado com a pose estudada ao mais ínfimo pormenor. Durante a campanha para a liderança deste partido, Sócrates nunca envergou gravatas. Sempre blazers e camisas negligentemente desabotoadas. Para exteriorizar um ar desportivo. A imagem da “esquerda moderna”, de que os seus adversários internos o acusavam de ser a antítese. Eleito líder, já só o vemos de gravata, que se adiciona a fatos impecáveis. Aquele que se arrisca, sem esforço, a ser o próximo primeiro-ministro, mudou do dia para a noite. Não é apenas uma imagem para consumo interno, para cativar fidelidades partidárias. Impera a imagem de um homem sério, do protótipo do governante. Que precisa de envergar o tradicional fato e gravata, sob pena de não ser levado a sério pelo eleitorado tradicional.

Este é o eleitorado que decide. Não são as franjas marginais, aqueles que não se revêem nos usos estabelecidos. Esses procuram uma outra imagética, desprendida dos clichés da gravata e do fato. Por isso é que os políticos destas franjas surgem sempre com uma pose negligé. Quando se pensa que é o descuido natural, uma despreocupação com a estética, também nos bloquistas de esquerda e nos comunistas encontramos uma pose cuidadosamente preparada para ir ao encontro das preferências do eleitorado que os sustenta nas mordomias do serviço público.

São iguais entre os iguais!

12.10.04

De um anúncio na TAP: “Europa-Lisboa, 234 euros”

Quem aterra no aeroporto de Lisboa, sai do avião, percorre os corredores sempre labirínticos dos aeroportos e se encaminha para a saída, depara com uma surpresa. Publicidade da TAP sobre uma tarifa promocional: Europa-Lisboa vale 234 euros. A leitura correcta obriga a compreender que se trata de viagens entre um qualquer destino situado na Europa e a capital portuguesa. Mas a quem chega do estrangeiro e se refresca com os saudosos ares nacionais ao pisar o solo pátrio, não deixa de causar alguma estranheza esta publicidade que entra pelos olhos.

Aos cépticos (cá estou eu…), aos que não conseguem evitar a tendência para desdenhar das características lusitanas, a TAP presta um serviço inestimável. Alguma vez teria de acontecer – isto da transportadora aérea nacional alguma vez ser útil. A publicidade (que o contribuinte também é chamado a suportar) serve para lembrar a quem chega do estrangeiro que é o momento de pousar os pés no chão. A civilização é o local de onde acabamos de chegar, não o sítio onde acabamos de aterrar.

Quando se informa que qualquer destino entre a Europa e Lisboa custa x euros, leva-se, de forma subliminar, uma mensagem ao destinatário: Lisboa não é Europa. Deve estar algures a meio caminho entre a Europa da civilização avançada e a África representativa do atraso. Seremos um elo de ligação entre as duas realidades. O que não é abonatório do orgulho nacional. Se tanto queremos apanhar o comboio do desenvolvimento europeu, se é nosso desejo ardente não ficar para trás neste pelotão que rola em velocidade de cruzeiro, dizer que a Europa é lá fora e que Lisboa é diferente da Europa é um golpe de misericórdia.

Para os que acham que a TAP i) já devia ter sido liquidada, ii) ou apenas privatizada, a campanha publicitária é infeliz, um lamentável erro. A companhia aérea nacional, que teima em ostentar orgulhosamente as cores da bandeira nacional (como se ainda fizesse sentido insistir em companhias de bandeira, num tempo em que a transnacionalidade ganha mais força, por ser um produto da sociedade multicultural em que vivemos), dá mais um exemplo de como gastar mal os recursos que o erário público coloca à sua disposição. Os publicitários contratados não trataram com cuidado a mensagem do anúncio. Ninguém, entre os responsáveis da companhia, conseguiu detectar como a mensagem publicitária pode ser enganosa. Até porque mesmo os estrangeiros que desembarcam no aeroporto da Portela conseguem decifrar a mensagem. Não será difícil, ela está compactada em poucas palavras que não exigem um conhecimento, nem que superficial, da língua de Camões. Imagino-os a esboçarem um sorriso cáustico, ao saberem que vieram da Europa e acabam de chegar a um qualquer sítio que não sendo África também não será bem europeu…

Fico perplexo com a imagem saloia que se solta da cabeça destes publicitários. Ela exibe um preconceito regionalista que acaba por ter ramificações internacionais. Passo a explicar. Como já tive oportunidade de referir no passado, acho lastimável qualquer manifestação de regionalismo bacoco para consumo doméstico. As exibições imberbes dos “nortistas” (não confundir com os nortenhos) são lamentáveis, quando destilam todo o seu ódio contra a centralidade lisboeta. Como o são as dos alfacinhas que apenas olham para o seu umbigo e desprezam com sobranceria os que residem a norte. Merecem-se uns aos outros. São filhos pródigos de um país que é pequeno e que com estas exibições parolas não se dá conta como fica ainda mais pequenino, mesquinho.

Serão estas pessoas pequeninas, entretidas com rivalidades regionais espúrias, que alimentam a posição de inferioridade em que colocam o país que os viu nascer. Serão eles que “ensanduicham” Portugal entre a menoridade europeia (somos a cauda – geográfica e económica – da Europa) e os atritos regionais. Quando se diz “Europa-Lisboa”, colocamo-nos na posição de olhar com embevecimento para a Europa que ainda estamos longe de ser. E são eles que, ao voarem sobre a realidade nacional, se entretêm com as divergências regionais que apenas têm o condão de consumir energias que podiam ser aproveitadas para finalidades mais úteis. Como seja, para colocar o seu país na Europa onde parece pertencer apenas por arte da geografia.

Nada que seja novidade: estamos habituados a ser os coveiros do nosso próprio fado.

11.10.04

O regresso dos dias da censura?

Por estes dias anda o país assoberbado com a nova diatribe do professor Marcelo. Depois de homilias mil em que fez e desfez como quis, com a complacência de um dócil apresentador do jornal dominical da TVI, o professor ficou abespinhado com as pressões da administração e bateu com a porta. Ao que consta, terão existido pressões (ainda que indirectas) do governo sobre os proprietários da TVI. A palavra "censura" anda de boca em boca, relembrado tempos idos de lutas contra o tenebroso fascismo.

Pelo meio, a inabilidade do governo. Parecem elefantes em loja de porcelanas. É como se a cauda do paquiderme sacudisse e levasse consigo toda a cristaleira em redor. Um ministro desabrido fez as honras da casa. Gomes da Silva, que ornamenta o cargo de ministro dos assuntos parlamentares, é um ministro para lamentar. O seu direito à indignação não se compatibiliza com o cargo que ocupa. Nem muito menos se concilia com a estreita vigilância que um país inteiro faz a este governo, com o presidente da república à cabeça. A imagem que paira é a de um país sempre atento ao primeiro deslize do governo. À mínima desatenção os danos são exacerbados por quem ainda não digeriu a decisão presidencial de não convocar eleições.

Os abutres do costume saltaram, ufanos, para a praça pública. Soou o alarme: desde o 25 de Abril de 1974 não há memória de semelhante manifestação de censura, sentenciam. Curta é a memória. Era bom trazer do baú das recordações os tempos áureos do PREC, as inúmeras tentativas para silenciar a imprensa que não se filiava nos interesses revolucionários. Quem estivesse contra os “interesses da classe operária” era apodado de fascista. A legalidade revolucionária não hesitava em tentar calar as vozes dissidentes. Mas não, isto não é censura. Vindo agora os arautos da desgraça invocar a censura para o caso em apreço, logo dirão que eram tempos excepcionais, repletos de excessos que justificavam os deslizes totalitários. É o costume: dois pesos, duas medidas.

A atitude do governo não tem justificação. As declarações estapafúrdias de Gomes da Silva são inadmissíveis. Num país normal, este senhor apresentava a demissão no dia seguinte. Se ainda fossemos um país normal, e se o ministro se mantivesse apegado à sinecura, no dia seguinte era o seu chefe que o conduzia até à porta da saída. Mas as fidelidades pessoais pagam-se com um preço elevado. Em vez de gerir tacticamente o caso, o primeiro-ministro quis salvar o fiel ministro. Com o elevado custo de suportar a degradação da imagem do governo, num plano inclinado de que parece perder o controlo. O desgoverno é tanto que Santana está a ter o que merece: uma passagem efémera pela governação, um retrato que não ficará na retina dos cidadãos.

A gestão do caso foi desastrosa. Entrará para os compêndios como o paradigma do não fazer. E os governantes envolvidos acabaram por ir no engodo da estratégia de Marcelo Rebelo de Sousa. Acabaram por o elevar ao patamar de mártir, o injustiçado cuja voz foi silenciada. Chegamos ao ponto de ver um frentismo das esquerdas, irmanadas na defesa das homilias dominicais do professor. Suprema ironia! Quem sabe se não teremos a surpresa de ver o professor como candidato presidencial de uma frente de esquerdas, que assim acantonaria o PSD num beco sem saída – quem teria a coragem de combater Marcelo, o mártir, a figura tutelar das esquerdas unidas?

Censura? Censura existia antes da revolução de 1974. Instituída, organizada, com métodos estabelecidos, uma ameaça sempre presente que trazia um clima de temor pela permanente asfixia à liberdade de opinião. Os que se agarram a palavra censura ou têm memória curta ou servem-se de uma retórica lamentável para aquecer ainda mais a água fervente em que vai sendo cozida a sociedade. Porque muitas vezes é preciso exagerar no diagnóstico para conquistar apoios. Se me falarem em condicionamento da liberdade de imprensa já estou de acordo. O que é bem diferente de trazer à superfície a palavra "censura". A diferença não é apenas uma questão de grau, é acima de tudo uma questão de métodos. O primeiro político que nunca tentou fazer condicionamento da imprensa que atire a primeira pedra ao ar…

Falar de censura nos tempos que correm é um atropelo à memória. É ignorar que a censura foi vivida no Estado Novo, com as consequências nefastas conhecidas. Esta retórica alarmista, que convoca a palavra censura, equivale a um desrespeito da memória de tantos quantos viram a liberdade de expressão tolhida no passado, a todos os que pagaram com a privação da liberdade o preço da ousadia das ideias.

Uma pergunta para finalizar: haverá diferença quando a “censura” é imposta pelo governo e quando ela resulta do lápis azul dos chefes de redacção e directores de jornais (Saramago, o paladino das liberdades, foi o inquisidor-mor enquanto director do Diário de Notícias no Verão quente – ninguém o recorda?)? Inaceitável num caso, contemporiza-se no segundo? Porquê? O efeito não é o mesmo?

8.10.04

George W. Bush: o melhor candidato para as esquerdas militantes

Deve ser dos imperativos de consciência que as levam a uma intervenção social e política activa. Deve ser por rejeitarem o papel de “consciência mundial” que os Estados Unidos não se cansam de apregoar. Por qualquer destes motivos, ou por outros insondáveis, as esquerdas domésticas andam empenhadas na campanha eleitoral das presidenciais norte-americanas. Chegando ao limite de defender a ideia obtusa de se abrir o sufrágio aos cidadãos dos outros países, tal a importância que os Estados Unidos têm na configuração da política mundial (Vital Moreira é um dos que defendem esta ideia que está para além da vanguarda).

Numa coisa estou de acordo com estas esquerdas cheias de causas militantes: mete-me espécie o protagonismo dos Estados Unidos, as tendências unilaterais que fazem da sua política externa um imenso oceano de equívocos e incoerências. Fico perplexo com a desfaçatez com os que norte-americanos surgem aos olhos do mundo, fazendo e desfazendo a seu bel-prazer, sem necessidade de prestar contas ao resto do mundo. Sinais dos tempos, de uma ordem mundial unipolar, sem que a única super-potência se auto-constranja pelo receio de outra super-potência rival. O caminho fica livre para as autoridades norte-americanas fazerem do mundo o seu recreio privativo, o balão de ensaio para estratagemas militares de duvidosos contornos.

Nisto estou de acordo com estas esquerdas que babam espuma sempre que fica a jeito arremeter críticas contra os Estados Unidos. Onde já vamos por caminhos separados é na importância atribuída às eleições presidenciais norte-americanas. Há quem defenda a seguinte ideia: pelo papel exercido pelos Estados Unidos, ninguém de bom senso pode ficar alheio à campanha eleitoral, ao sentido de voto que permite ao colégio eleitoral designar o futuro presidente dos Estados Unidos. Discordo da ideia. Podemos ter preferências pessoais, ideológicas ou de outro género – nas eleições dos Estados Unidos, como em qualquer outro país. Mas não passam de preferências pessoais ou ideológicas. Se não aceitamos que os estrangeiros votem nas nossas eleições (fora dos casos excepcionais já admitidos pela União Europeia) também não podemos pretender interferir nas eleições de outros países.

Ainda da última estadia em Inglaterra vem à memória uma reportagem passada na televisão sobre as movimentações no terreno dos mais variados grupos que se alistam na facção republicana e na facção democrática. A certo momento entrevistaram um patusco inglês que bramia com entusiasmo a sua rejeição a Bush Jr. Quando foi desafiado a explicar as razões do seu activismo numas eleições em que não pode votar, o espécime falou do alto da sua razão inquebrantável: é um imperativo de participação social de cada pessoa que não passa ao lado do que ocorre no mundo. Daí a sua luta contra Bush.

Contra Bush. Esta é a palavra de ordem. Lembro-me, há um par de meses, da inefável Ana Gomes ter discorrido longamente sobre a convenção do partido democrata que designou John Kerry para candidato à presidência. Ainda excitada com o que lhe foi dado a assistir como convidada, não hesitou em lançar a palavra de ordem que a motiva como uma importante e poderosa apoiante de Kerry: o ABB, “anything but Bush”. A sigla é ilustrativa do que conduz gente como esta a interferir onde não é chamada. Qualquer coisa serve para derrubar Bush. O que eles não querem é que Bush continue a ser presidente dos Estados Unidos. Desgraçado Kerry: não deve ser confortável olhar em seu redor e constatar que muita da gente que o diz apoiar apenas está contra Bush. Não são seus apoiantes genuínos. O ABB diz tudo: é Kerry, como podia ser um condutor de autocarros de Nova Iorque, ou um homem do lixo de Chicago, um dandy de Los Angeles, ou um herdeiro da onda grunge de Seattle.

Bush não é flor que se cheire, bem sei. E há o anedotário que encerra Bush numa imagem de estupidez, de ignorância, que quase é património da humanidade. É-me indiferente que ganhe o senhor A ou o senhor B. É um problema que apenas diz respeito aos cidadãos dos Estados Unidos. Porque, pela experiência do passado, sendo eleito o candidato democrata ou o candidato republicano as linhas motrizes da política interna e externa não oscilam muito. Estou a adivinhar os entusiastas adeptos de Kerry e virem a terreiro com a sua inflamada verve anti-americana se o mesmo Kerry vier a ocupar a presidência, conduzindo uma política que não há-de ser muito diferente da actual.

No fundo, estas esquerdas que andam tão afadigadas com o que não lhes compete deviam reconhecer que a eleição de Bush até lhes é mais conveniente. Sendo militantemente anti-americanas, a tarefa fica facilitada se os Estados Unidos tiverem na presidência um presidente pateta e com escassez de inteligência. Sempre podem humilhar os dons ausentes do presidente e do país que tanto odeiam. Se Kerry não está destituído dessas faculdades, é mais problemático ridicularizar os Estados Unidos. E daí não sei: talvez então se agarrem ao aspecto fantasmagórico de Kerry (as suas semelhanças com Drácula não escapam a observadores mais atentos a estas coisas…) para continuarem a zurzir com violência contra o país que detestam.

7.10.04

A quadratura do círculo: um político pede para não confiarem nos políticos

Durante a minha estadia em Inglaterra decorreu o congresso do partido conservador. Os noticiários abriam invariavelmente com notícias sobre o acontecimento. Não foi tanto um partido conservador anquilosado que chamou a atenção. Não foi tanto o facto de nas imagens percorridas entre a assistência abundarem congressistas de idade avançada, representações do velho conservadorismo britânico que ainda vive agarrado às miragens do pós-segunda guerra mundial. O auge foi o discurso do líder Michael Howard, em especial quando sacou da algibeira o dramatismo convidando os súbditos britânicos a “não confiarem em políticos”.

Gostei de ouvir. Embrulhado no cepticismo em relação ao fenómeno político contemporâneo, teimoso em descrer nos agentes políticos por considerar que são, em larga maioria, conduzidos por motivações pessoais quase sempre em contra-ciclo com os interesses do país, esta foi uma frase bombástica que recolheu a minha simpatia. Mas a política é abundante na arte da retórica. A semântica tem truques que iludem os mais incautos, os distraídos. É nessa arte que repousa a estratégia de comunicação dos políticos do nosso tempo. Já tinha ouvido e lido muitos disparates saídos da boca de políticos. Mas o expoente máximo do exagero, como esta afirmação de Howard, nem as folclóricas diatribes dos bloquistas de esquerda para consumo nacional!

Howard pede, em desespero de causa, a descrença nos políticos. Se estas palavras forem lidas no contexto do fenómeno político britânico, alcança-se o conteúdo da mensagem. Os conservadores estão cansados da cura de oposição que já leva quase oito anos, o tempo de governação dos trabalhistas de Blair. Ao que consta, Blair é useiro e vezeiro em colocar promessas em cima da mesa para as deixar cair no esquecimento. Políticos a incumprirem promessas também não é novidade. O que varia é o hiato entre as promessas e as realizações concretas.

Neste contexto, Howard terá pedido aos britânicos para não confiarem nos políticos – mas com um destinatário bem identificado: os políticos do partido trabalhista no poder que não têm sabido cumprir as suas promessas. Onde se lê “não confiem nos políticos” deve-se ler “não confiem nos políticos do partido trabalhista”.

Os especialistas de comunicação política saberão porque aconselharam Howard a omitir as últimas três palavras. Lá terão as suas razões. Para um leigo, que é ao mesmo tempo tão céptico em relação ao fenómeno político, fica a sensação da pior estratégia possível para convencer o eleitorado a depositar a sua confiança nos conservadores. Porque a maioria das pessoas pode-se agarrar ao sentido literal das palavras e dar razão a Howard: não confiar nos políticos, classe da qual ele é um dos máximos representantes. Com uma consequência lógica: não será nele que os votos serão depositados. É intrigante esta linha de conduta se volta contra os seus próprios objectivos. Como pode um político que aspira a cativar as simpatias do eleitorado pedir, em tom melodramático, uma retirada de confiança nele próprio?

Para adensar a confusão a que os conservadores se amarraram, escuto excertos do mesmo discurso em que Howard começa por ser renitente em relação a promessas concretas caso se dê a improvável circunstância de chegar ao poder. Começa apenas por prometer que demitirá ministros do seu gabinete caso eles sejam incapazes de satisfazer as linhas de acção com que se comprometeram. Para culminar com a seguinte promessa: que gostaria de prometer uma redução dos impostos, mas que só o fará quando tiver a certeza que o pode prometer. O que acaba, por portas travessas, por ser uma promessa. Ainda que encapotada por uma sinuosa semântica, mas a verdade é que acaba por vincar o compromisso de diminuir os impostos assim que chegue ao poder.

No fundo, apetece glosar o mesmo Howard: não confiem nos políticos. Em todos eles. E sobretudo naqueles que, sendo políticos, têm o descaramento de apelar à desconfiança em relação à classe política. É o que merecem, mais do que os outros, aqueles que não percebem como estão de arma apontada para a sua própria cabeça, com o dedo preparado para premir o gatilho.

6.10.04

O preço da insónia: um debate em plena campanha eleitoral nos Estados Unidos

Esta noite a insónia decidiu fazer uma visita que é sempre incomodativa. Às voltas na cama, quanto mais me tento concentrar no sono mais se reúnem as forças que o afastam. Depois de voltas e voltas, depois de tentar fitar um horizonte mental que me traga o adormecimento, desisto. Ligo a televisão. São poucos os canais que o hotel sintoniza. As opções escasseiam: uma série lamechas, cheia de lugares-comuns sobre a moralidade e a bondade; um jogo de futebol algures na América Latina; um programa publicitário que me fez lembrar a rábula do Mike e do Melga num dos últimos programas de humor com qualidade que Herman José conseguiu produzir; um debate entre os candidatos a vice-presidente dos Estados Unidos, entre Dick Cheeney e John Edwards.

Com o espírito turvado pela maldita insónia, acabei por escolher a última opção. Reduzi o som da televisão, na esperança de que a monotonia do debate fosse suficiente para me trazer de volta o sono que teimosamente assentara arraiais noutras paragens. Pelas primeiras impressões, aumentei as expectativas de que funcionasse como o soporífero necessário: o debate corria morno, com os candidatos a respeitarem-se mutuamente, não se atropelando nas suas intervenções. Era um debate diferente das peixeiradas a que estamos habituados na nossa jovem democracia. Por ser morno, sem exaltações, com intervenções monocórdicas, alimentei grandes esperanças de que o sono me quisesse visitar enquanto ia espreitando para a televisão.

Desenganei-me ao fim de alguns minutos. Não, não fiquei preso à televisão pela emoção do debate, muito menos pelo interesse do que estava a ser discutido. Foi a primeira vez que assisti a um debate deste género sem ser relativo à política doméstica. Alguns especialistas ficam inebriados com as campanhas eleitorais das presidenciais norte-americanas, vibrando com os debates cuidadosamente organizados. Não fiquei cliente. No final do programa, a jornalista informou que dentro de dias vai ocorrer o segundo debate entre os candidatos à presidência. Que não me terá como espectador. Até aqui as promessas dos políticos foram incumpridas: quando esperava que o debate me trouxesse o sono, o contrário aconteceu…

Do que assisti, gostei de ver a ausência de ataques pessoais que é tão usual entre nós. Na política nacional desabituei-me de ver debates entre os seus profissionais. Em tempos, um pouco mais ingénuo, levado pelo gosto da arte da argumentação, fui espectador de alguns debates. Fartei-me das tácticas dilatórias de que Mário Soares era mestre, e que ganhou sucessores entre a nossa classe política. Cansei-me de chegar ao fim de debates e, espremida a discussão, pouco de útil se aproveitava, tantas as interrupções, tantas as vezes em que o fio condutor se perdia.

Pelo que percebi, nos debates da campanha eleitoral norte-americana as regras são fixadas em antecipação e os participantes têm o fair play de jogar de acordo com as regras. Elas não são furadas, nem depois se vem acusar o adversário de ter dado o primeiro passo no sentido do seu desrespeito. Há menos emotividade, talvez menos empenhamento pessoal dos participantes (daí o debate ter sido morno). Com a vantagem de ser possível tomar conhecimento das ideias dos candidatos sobe os assuntos colocados em cima da mesa pela moderadora.

A BBC passou mais de uma hora a fazer o balanço do debate, desdobrando-se em entrevistas a analistas políticos e, sobretudo, a políticos que se alistam em cada partido em confronto. Os analistas esforçavam-se por analisar a discussão com rigor. Isto raramente acontece em Portugal com os analistas profissionais que ditam regras no panorama político. Eles querem passar uma imagem de isenção, mas não se conseguem desprender das suas preferências ideológicas e pessoais. Com a agravante que se ofendem, quais virgens pudicas, sempre que são acusados de inclinações para um dos lados. Ao que sei, nos Estados Unidos os jornais definem em antecipação as suas preferências. Têm a frontalidade de o fazer, não se escondem detrás de uma imparcialidade baça que não passa de uma simples aparência. No final conseguem, por paradoxal que pareça, ser mais isentos do que os nossos pretensos imparciais analistas.

Onde o rescaldo se escurece é quando os políticos que cortejam cada candidato são chamados a opinar. Ouve-se de um lado, ouve-se do outro e chega-se à conclusão que não houve um debate, mas dois. Os apoiantes de um lado cantam vitória esmagadora do seu candidato, desdenham o desempenho do adversário. Os do lado contrário viram um debate diferente, asseverando que o seu candidato foi o claro ganhador. Os exageros e as imprecisões são a nota dominante. Fará parte da estratégia comunicacional de influenciar os votantes. Será a arte da política na sua máxima expressão – a de levar os eleitores no engodo.

Fiquei com a impressão que a comunicação social (e tratava-se da BBC, conhecida pela sua qualidade e credibilidade) não se consegue desligar de uma duvidosa intimidade com o meio político. Lá como cá, alimenta-se reciprocamente. Os políticos precisam das luzes dos holofotes da imprensa, porque sabem que fazer política é cada vez mais (e com mais preponderância) um fenómeno comunicacional. A imprensa, porque se deixa seduzir pela classe política, alimentando a relação de causa e efeito com uma clara consequência: comunicação social e política são um e só universo, impossível que é de distinguir dois hemisférios com clara autonomia.

(Em Brighton)

5.10.04

Imagens de Inglaterra

Sempre que regresso a Inglaterra apodera-se de mim uma mescla de sensações, o lado bom e o lado mau do país. No lado bom, a organização que não existe em países latinos. A maior urbanidade das pessoas, com o hábito de fazer filas para tudo e mais alguma coisa, com o melhor hábito de respeitar essas filas. Também me agrada o país cosmopolita, uma amostra viva da diversidade humana de que o planeta é feito. Mais notório em Londres, é também visível ao andar pelo país. A cada momento cruzo-me com asiáticos, africanos, árabes, indianos, latino-americanos, europeus de leste. A amálgama de línguas que se escuta em Inglaterra, em plena rua, é outro espelho da constelação de pessoas que vêm de diferentes origens desaguar nas ilhas britânicas.

Este cosmopolitismo traz algumas aberrações. O melhor exemplo: os jovens japoneses que por aqui se instalam como estudantes e que, em pouco tempo, se convertem às “vanguardas” da cultura ocidental. É vê-los usar calças largas, rotas, coçadas como se tivessem anos e anos de uso, cabelos alourados ou enruivecidos após uma cura de cabeleireiro, óculos cor-de-laranja ou lilás, blusões de cores berrantes que se ajustam milimetricamente aos seus corpos franzinos. Ensaio um largo sorriso pela imagem patética que transmitem.

Do outro lado da moeda, os aspectos negativos. A alimentação – e aqui falo da gastronomia tipicamente inglesa, não da infinidade de restaurantes internacionais que servem de bom refúgio da péssima gastronomia local. Os pequenos-almoços são avantajados, com salsichas e bacon que escorrem gordura com generosidade, ovos (estrelados, mexidos ou escalfados), feijão e tomate, tudo cuidadosamente regado com doses industriais de ketchup ou mostarda. Quando tomo o pequeno-almoço acompanhado por nativos que ingerem este manjar fico no limiar da náusea. Imagino-me a deglutir semelhante pequeno-almoço e adivinhar o efeito indigesto nas horas seguintes. Prefiro não imaginar esse pequeno-almoço a entrar no meu estômago.

O tempo, o tenebroso tempo que se abate impiedosamente sobre as ilhas, é outro aspecto incómodo. A instabilidade é a nota dominante. As nuvens cobrem o céu com uma assiduidade militante, obrigando a esquecer a existência do sol. Mesmo quando os raios de sol espreitam tímidos por entre uma aberta de nuvens, é tão fugaz que parece que as nuvens se descuidaram para o sol se poder espalhar. Mas logo regressa a normalidade. O sindicato das nuvens cumpre a sua função. Organiza-se e, em breve, tinge o céu de negro, trazendo os ventos desagradáveis que despenteiam quem anda na rua. Com este tempo não é necessário perder muito tempo à frente do espelho a organizar um penteado. Nos primeiros momentos fora de portas, o zeloso penteado é consumido com avidez por uma rabanada de vento que leva os cabelos pelo ar. Talvez seja esta a explicação para os penteados anárquicos, cabelos espetados, revolvendo-se de um lado para o outro sem sentido pré-determinado. Confortáveis andam os carecas que evitam a exasperação de sentir os cabelos ondear, selvagens, ao sabor do vento.

O país é ainda um santuário para os piercings e tatuagens. Em Portugal esta é uma moda que ainda vai conquistando terreno. São os mais jovens que ostentam estas marcas de modernidade. Em Inglaterra é uma moda transversal, não olha a idades e sexos. Desde o piercing sóbrio incrustado numa das narinas, passando pela colecção de piercings colocados nas orelhas, aqueles que aparecem pregados no canto do sobrolho, os que as meninas envergam quando os umbigos vêm respirar o ar fresco, sem falar nos que se descobrem quando alguém deixa escapar uma gargalhada e se solta um aditivo cravado na língua. No auge, esta possibilidade: em Brighton existe uma loja da especialidade que anuncia mil e uma possibilidades de colocar piercings nos órgãos genitais femininos e masculinos.

Inglaterra é ainda um local de sensações pessoais, que traz recordações dos três intensos meses que aqui passei há quatro anos. Empenhado no trabalho, por obrigações inadiáveis, nunca como então fui assaltado pelo fantasma da solidão. Refugiado no trabalho que me esperava, lembro-me de passar dias seguidos em que apenas falava com alguém quando pedia o almoço. Foi aí que senti mais ainda a família, os amigos, a namorada, como são cruciais para o equilibro pessoal. Foi aí que descobri que eles são o meu país. Ficou a impressão de que nesses três meses de “reclusão” cresci numa medida equivalente a anos de amadurecimento. Uma introspecção sem precedentes, que serviu para conhecer partes de mim que andavam escondidas.

(Em Brighton)

4.10.04

Amor quixotesco

Aguardava, numa espera de quase uma hora, por ligação de comboio entre o aeroporto de Londres Gatwick e Brighton. Com o tempo típico das ilhas britânicas a dar os primeiros sinais do Outono que já se instalou no calendário, aguardei dentro do aeroporto. Aproveitei para queimar tempo lendo qualquer coisa em inglês. Ao longe vi uns lugares vazios. Sentei-me ao lado de um indivíduo, jovem, barba por escanhoar, roupas do Woodstock de tempos idos. Nas proximidades só estava aquele jovem esguio, sentado, perna cruzada, a falar ao telemóvel.

A conversa desenrolava-se em espanhol. Dei algum espaço – uns três ou quatro bancos – para cuidar da privacidade (a minha e a dele). A distância não era suficiente para que evitasse escutar a conversa. O jovem espanhol não deu conta da minha aparência latina, pois continuou a conversa que foi indo pelas veredas da emoção. Porventura terá acreditado que eu vinha de um qualquer país onde a língua espanhola é incompreensível. Por isso continuou, sem hesitações. Ele conversava com alguém que ainda tinha por namorada. Mesmo que tenha percebido, pelo sinuoso diálogo mantido, que do outro lado estava uma mulher que não tinha a mesma certeza.

Alguns minutos depois assegurei-me dos nomes: David e Clara eram os protagonistas do enredo de que era testemunha involuntária. Por vezes David elevava a voz, quando sentia que Clara não estava a ter uma postura construtiva. Percebia que David procurava agarrar-se a toda a paciência que conseguia encontrar. Como uma tábua de salvação para a relação que se estava a esfumar, como se essa paciência fosse o fogacho de luz que ainda o trazia agarrado ao amor que entrara no domínio da miragem. David viera de propósito de Madrid para ver Clara. Qual D. Quixote dos tempos modernos, em busca da sua Dulcineia, olhando para a esperança de salvar um amor que ele nutria com obsessão. Do outro lado da conversa, alguém estava imersa em dúvidas de um sentimento que já se teria extinto.

Havia uma terceira pessoa envolvida. Um triângulo complicado, a toldar as esperanças de David. Ele persistia na defesa do seu sentimento, enfatizava vezes sem conta que ele era a melhor solução. O espanhol revelava uma tenacidade fora do comum. Repetia até à exaustão que tinha embarcado na aventura imperativa de vir de Espanha até Inglaterra para a tarefa homérica de apenas ver a pessoa de que gosta. Um pequeno nada tão impossível, pois a missão era repetidamente negada nas respostas encontradas do outro lado do telemóvel. David disse, já com a voz embargada, que se tinha convencido que não regressava a casa sem estar, uns minutos que fosse, com ela.

Fiquei impressionado com a persistência, a coragem relevada pelo jovem espanhol que fez as malas e veio até tão longe para tentar salvar o amor. Ao início não consegui deixar de reflectir no que tinha acabado de observar. Poucos são os que conseguem ir buscar energias ao mais recôndito dos lugares e reunir a coragem que de David era o paradigma. Quantos teriam o desassombro de apanhar um avião e vir ao desconhecido, sem garantias de alcançar o objectivo? Vir à aventura, na esperança de que não se vai perder de vez a pessoa tão querida. E, ao mesmo tempo, ver como um amor pode ser doentio – e sendo doentio, deixar de ser amor para passar a sentimento a precisar de cura.

É a questão de sempre: diz-se que o amor é entrega desinteressada, dar tudo de nós à outra pessoa na espera de que a correspondência de sentimento faça de nós pessoas mais felizes. David era a expressão de como o amor era a cura para si mesmo, mas não para a pessoa que ele queira que ainda mantivesse por ele o mesmo sentimento. Ele não se cansava de acentuar que era a melhor solução para Clara; no fundo, apenas a confissão de que essa era a melhor solução para ele. Um amor exangue, pela reciprocidade que se extinguira. Um desespero que tomava conta de um sentimento que, preso pela enxurrada de emoções, era tomado de assalto pelo equívoco.

Então dei conta do ridículo que se havia apoderado do jovem espanhol. É verdade que a espontaneidade dos espíritos leva as pessoas por caminhos irracionais, que é fácil ser-se dominado por reacções que não encontram explicação a não ser no império da emoção. O amor não tem lugar para anacrónicos quixotescos, levando um dos amantes ao risível, fragilizando-o, tornando-o numa pessoa exposta e divorciada da razão. Ou isto, ou o amor-próprio que se dilui num perigoso nada.

(Em Brighton)

1.10.04

As mordomias dos caloiros

Acontece ano após ano. Os alunos que entram na universidade têm à sua espera um diligente comité de recepção. Dão-lhes as boas vindas, mas que não esperem mordomias de quem recebe um forasteiro com hospitalidade. Espera-lhes a praxe académica, um ritual iniciático que acolhe os recém-chegados. Funciona como a chancela sem a qual os novos alunos são estranhos para os seus pares que já frequentam a universidade há mais tempo. Uma espécie de socialização forçada, sem a qual os neófitos não são membros da comunidade. Pelo caminho, o pretexto para festas mil, o terreno que se fertiliza para as mais insanas diatribes a que se sujeitam os pobres caloiros. Que, pacientemente, se sujeitam às partidas dos veteranos, resignando-se à sua sorte, esperando que a imaginação dos praxantes não esteja virada para quadrantes que raiam a aberração.

Pensava que as praxes iam ficar meio adormecidas neste ano lectivo. Em anos anteriores as aulas começavam ao mesmo tempo para todos os anos. Era certo e sabido, a primeira semana de aulas era uma semana sem alunos nas salas de aulas. Como estavam entretidos com o espectáculo das praxes e com as festanças que se prolongavam até às primeiras horas da manhã, não havia espírito para começar a aturar os professores. Regressados de férias, o motor de arranque tinha dificuldades em funcionar. Os neurónios estavam preparados para colocar a fértil imaginação ao serviço da praxe anual. As aulas podiam esperar mais uma semana.

Este ano o calendário alterou-se. Nas duas primeiras semanas só houve aulas para o 2º, 3º e 4º anos. Os caloiros tiveram que esperar até a terceira semana para entrarem em cena. Por isso julgava que este ano lectivo o hábito ia ser atenuado, que não teríamos uma semana “frenética” de praxes académicas. Enganei-me. O uso está tão enraizado que nem assim, com esta décalage do calendário, os alunos deixaram cair a praxe na apatia. Ainda ontem, já com duas semanas de aulas para os caloiros, entrei na universidade e dei de caras com uma plateia bem recheada cheia de excitação pelas diabruras que se aplicavam aos dóceis caloiros.

Como um ritual de iniciação que se preze, a praxe obedece a um código de conduta e exterioriza-se num conjunto de sinais que devem ser escrupulosamente respeitados. Desconheço os pormenores, mas reparo que os “veteranos” (os não caloiros, para este efeito) só podem ter parte activa no ritual se envergarem o tétrico traje académico, que deles faz pinguins que não andam longe dos cangalheiros que levam as almas para sete palmos abaixo da terra. Um dia destes encaminhava-me para a universidade quando me cruzei com meia dúzia de “veteranos”. Uma delas chamou a atenção de uma colega por ter desleixado um pormenor qualquer do traje. “Olha que isso vai contra a tradição”, advertiu enquanto, com um gesto, indicava à colega o que estava errado.

Tudo em nome da tradição. Ainda que a tradição seja, ano após ano, subvertida com os exageros que são relatados. Lembro-me que no ano passado, em Lisboa, obrigaram um grupo de caloiros a simular um assalto a um banco! São tantas as histórias de humilhações que se impõem sobre os incautos caloiros, não lhes restando outra hipótese senão vergarem a cabeça perante a ignomínia dos “doutores” (assim os não caloiros exigem ser tratados pelos caloiros). Eles sabem que é preferível a resignação. Preferem ser motivo de chacota durante alguns minutos do que serem ostracizados no resto do seu percurso dentro da universidade.

Ainda que as associações de estudantes enfatizem que ninguém é obrigado a submeter-se à praxe académica, a verdade é outra. Quem se recusar aos ditames da praxe é apontado a dedo como a ovelha ranhosa sem espírito académico. É um desalinhado que será olhado de soslaio pelos seus pares. Na verdade, nunca será um dos “pares”. Esta é uma forma de exclusão que resulta da recusa em participar no ritual. Espezinhando algo de fundamental, mesmo para quem estuda nas universidades: a liberdade de opção, e o direito de não ser marginalizado em virtude das opções conscientemente tomadas.

Quando vejo o que se faz nas praxes (ainda que não dedique tempo ao espectáculo – o espectáculo é que me entra pelos olhos), quando leio, todos os anos, relatos de exageros que vão para além do que a imaginação pode comportar, só lamento que estes alunos esgotem o seu capital de imaginação na praxe. O dom imaginativo tem um curto pavio, que ao fim de uma semana de praxe se extingue. No resto do ano, quando eles mais precisavam de estimular esta capacidade, é a letargia. Um caso de desaproveitamento de capacidades!