6.10.04

O preço da insónia: um debate em plena campanha eleitoral nos Estados Unidos

Esta noite a insónia decidiu fazer uma visita que é sempre incomodativa. Às voltas na cama, quanto mais me tento concentrar no sono mais se reúnem as forças que o afastam. Depois de voltas e voltas, depois de tentar fitar um horizonte mental que me traga o adormecimento, desisto. Ligo a televisão. São poucos os canais que o hotel sintoniza. As opções escasseiam: uma série lamechas, cheia de lugares-comuns sobre a moralidade e a bondade; um jogo de futebol algures na América Latina; um programa publicitário que me fez lembrar a rábula do Mike e do Melga num dos últimos programas de humor com qualidade que Herman José conseguiu produzir; um debate entre os candidatos a vice-presidente dos Estados Unidos, entre Dick Cheeney e John Edwards.

Com o espírito turvado pela maldita insónia, acabei por escolher a última opção. Reduzi o som da televisão, na esperança de que a monotonia do debate fosse suficiente para me trazer de volta o sono que teimosamente assentara arraiais noutras paragens. Pelas primeiras impressões, aumentei as expectativas de que funcionasse como o soporífero necessário: o debate corria morno, com os candidatos a respeitarem-se mutuamente, não se atropelando nas suas intervenções. Era um debate diferente das peixeiradas a que estamos habituados na nossa jovem democracia. Por ser morno, sem exaltações, com intervenções monocórdicas, alimentei grandes esperanças de que o sono me quisesse visitar enquanto ia espreitando para a televisão.

Desenganei-me ao fim de alguns minutos. Não, não fiquei preso à televisão pela emoção do debate, muito menos pelo interesse do que estava a ser discutido. Foi a primeira vez que assisti a um debate deste género sem ser relativo à política doméstica. Alguns especialistas ficam inebriados com as campanhas eleitorais das presidenciais norte-americanas, vibrando com os debates cuidadosamente organizados. Não fiquei cliente. No final do programa, a jornalista informou que dentro de dias vai ocorrer o segundo debate entre os candidatos à presidência. Que não me terá como espectador. Até aqui as promessas dos políticos foram incumpridas: quando esperava que o debate me trouxesse o sono, o contrário aconteceu…

Do que assisti, gostei de ver a ausência de ataques pessoais que é tão usual entre nós. Na política nacional desabituei-me de ver debates entre os seus profissionais. Em tempos, um pouco mais ingénuo, levado pelo gosto da arte da argumentação, fui espectador de alguns debates. Fartei-me das tácticas dilatórias de que Mário Soares era mestre, e que ganhou sucessores entre a nossa classe política. Cansei-me de chegar ao fim de debates e, espremida a discussão, pouco de útil se aproveitava, tantas as interrupções, tantas as vezes em que o fio condutor se perdia.

Pelo que percebi, nos debates da campanha eleitoral norte-americana as regras são fixadas em antecipação e os participantes têm o fair play de jogar de acordo com as regras. Elas não são furadas, nem depois se vem acusar o adversário de ter dado o primeiro passo no sentido do seu desrespeito. Há menos emotividade, talvez menos empenhamento pessoal dos participantes (daí o debate ter sido morno). Com a vantagem de ser possível tomar conhecimento das ideias dos candidatos sobe os assuntos colocados em cima da mesa pela moderadora.

A BBC passou mais de uma hora a fazer o balanço do debate, desdobrando-se em entrevistas a analistas políticos e, sobretudo, a políticos que se alistam em cada partido em confronto. Os analistas esforçavam-se por analisar a discussão com rigor. Isto raramente acontece em Portugal com os analistas profissionais que ditam regras no panorama político. Eles querem passar uma imagem de isenção, mas não se conseguem desprender das suas preferências ideológicas e pessoais. Com a agravante que se ofendem, quais virgens pudicas, sempre que são acusados de inclinações para um dos lados. Ao que sei, nos Estados Unidos os jornais definem em antecipação as suas preferências. Têm a frontalidade de o fazer, não se escondem detrás de uma imparcialidade baça que não passa de uma simples aparência. No final conseguem, por paradoxal que pareça, ser mais isentos do que os nossos pretensos imparciais analistas.

Onde o rescaldo se escurece é quando os políticos que cortejam cada candidato são chamados a opinar. Ouve-se de um lado, ouve-se do outro e chega-se à conclusão que não houve um debate, mas dois. Os apoiantes de um lado cantam vitória esmagadora do seu candidato, desdenham o desempenho do adversário. Os do lado contrário viram um debate diferente, asseverando que o seu candidato foi o claro ganhador. Os exageros e as imprecisões são a nota dominante. Fará parte da estratégia comunicacional de influenciar os votantes. Será a arte da política na sua máxima expressão – a de levar os eleitores no engodo.

Fiquei com a impressão que a comunicação social (e tratava-se da BBC, conhecida pela sua qualidade e credibilidade) não se consegue desligar de uma duvidosa intimidade com o meio político. Lá como cá, alimenta-se reciprocamente. Os políticos precisam das luzes dos holofotes da imprensa, porque sabem que fazer política é cada vez mais (e com mais preponderância) um fenómeno comunicacional. A imprensa, porque se deixa seduzir pela classe política, alimentando a relação de causa e efeito com uma clara consequência: comunicação social e política são um e só universo, impossível que é de distinguir dois hemisférios com clara autonomia.

(Em Brighton)

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