14.10.04

Democracia musculada: a promessa do caos, segundo o evangelho das esquerdas radicais

Entretido, num tempo de repouso entre duas aulas, em busca das últimas do mundo. Na TSF, a notícia de que a cerimónia solene de abertura do ano lectivo da Universidade de Coimbra não chegou a meio. Foi interrompida por energúmenos que quiseram verberar a política do actual governo. Com a força da força, sem o tempero da razão, esta minoria atropelou as decisões da véspera: um órgão representativo de estudantes, funcionários e professores acordou, por maioria, deixar levar até ao final esta cerimónia solene. A pandilha subiu ao palco e assenhoreou-se do microfone, entoando as palavras de ordem. Eis a democracia em todo o seu esplendor.

A democracia que vem da boca desta gente cheira a cano de esgoto. Ressoa com uma aura de impossibilidade, caso esta gente alguma vez conseguisse tomar as rédeas do poder. São o expoente máximo da intolerância. Em bom rigor, a única tolerância que conhecem é a divulgação das suas ideias, sem dar espaço às ideias que não alinham pelo mesmo diapasão. E depois surgem como virgens condoídas sempre que a pureza dos valores da revolução de Abril é atentada pelos “fascistas” que não alinham ao lado do catecismo revolucionário e anacrónico que os empareda. Como gostava de saber o que pensa deste deplorável episódio um dos gurus intelectuais destes grupelhos, Boaventura Sousa Santos – nem de propósito, professor catedrático da universidade onde os factos aconteceram.

Esta cartilha de intolerância continua sabiamente escondida atrás da retórica cuidadosa que coloca esta gente nos píncaros da popularidade entre uma certa elite aburguesada e intelectual dos grandes centros urbanos. Deixam-se enlevar pela sedução das propostas alternativas. Mas ignoram (acredito, na minha inocência, que ignoram) os valores que alicerçam o pensamento desta gente.

É nestas alturas que me deito a fazer um exercício de adivinhação. Imagino estas esquerdas radicais, coligadas pela sede do poder e do protagonismo, a chegarem ao poder. Em coligação com outras esquerdas mais moderadas, mas sequiosas de apoios para exercer a governação, ou – o mais fantasmagórico dos cenários – sozinhas. Imagino os atropelos à liberdade de expressão, o silenciamento das vozes opositoras. Esta minha adivinhação tem razão de ser: se agora, enquanto franjas minoritárias, não hesitam em atropelar os interesses das maiorias, o que fariam se estivessem escudados num apoio popular de maior dimensão? A minha tentativa de resposta é: procuravam estender a base de apoio através do silenciamento das vozes contrárias.

Mais custa ver estes atropelos à liberdade quando tais manifestações partem de jovens. Talvez seja compreensível, vendo bem as coisas. Fazem parte de uma geração que apenas conhece a negação da liberdade de expressão do que estudaram do Estado Novo. Lêem outro guru – Rosas, o historiador oficial do Estado Novo, como se estivesse empossado de imparcialidade para assumir esta condição – e apenas tomam um contacto teórico com a asfixia das liberdades do passado. Mas depressa se esquecem de fazer a ponte entre a teoria e a prática. O combate político, a demarcação das causas, leva-os a esmurrar a liberdade alheia. Não se diferenciam dos métodos calcorreados sem cessar pelo anterior regime. Só diferem no grau de violência, por estarem afastados da violência institucionalizada à disposição do Estado.

Estes jovens, peças de uma orquestra dirigida pelos estrategas que aqui não dão a cara, são a negação dos valores que dizem defender. Excrescências geradas pela dinâmica social. Compreende-se que lutem pelas suas causas. Não tenho pejo em reconhecer que algumas reúnam a minha simpatia – ainda que a semelhança fique por aqui, por amplas divergências ideológicas. Em alguns aspectos defendemos as mesmas coisas, mas por motivos diametralmente opostos. E, acima de tudo, renego os meios que, para eles, parecem a justificação de todos os fins. Continuo a bater nesta tecla, aqui como noutros domínios: se caminhamos para a sagração dos resultados, sem olhar aos métodos, perdemos a bússola dos valores que nos devem nortear. A liberdade não merece nenhum sacrifício em nome de um resultado. Qualquer que ele seja.

Sem aqueles valores andamos à deriva, ou navegamos por estima, ao sabor da maré, dos humores de quem detiver o poder. As liberdades individuais são um bem precioso para ficarem expostas a estas arbitrariedades. Antecipar um cenário em que esta pandilha se emproasse no papel de guardiã destas liberdades é uma hipótese dantesca. As liberdades perderiam o seu conteúdo objectivo, voláteis que então seriam. Deixariam de existir.

Para os fedelhos instrumentalizados que têm a ousadia de pisar a liberdade dos demais, só há uma solução: apetece dizer, contra a força da falta de razão, a força física. Isso seria fazer o jogo baixo que eles tanto anseiam. Melhor caminho será admitir que eles continuem a poder interromper, a exercer a força bruta da irracionalidade. Ignorá-los, deixá-los a falar sozinhos. Para ver se aprendem que a selvajaria não justifica as causas, nem sequer lhes confere popularidade. Ao menos aos mais novos, pois com esses ainda há a esperança de terem tempo para aprender. Os inspiradores de idade mais avançada, apenas casos perdidos. Esperar que passe a maré.

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