Temos a tendência para perpetuar a juventude quando os verdes anos já se são o chão do passado. Reconhecimento do que ficou por fazer nos tempos da juventude, talvez. Ou amedrontamento da velhice que ainda tarda, mas se aproxima com o dedilhar de cada página do calendário. Ou ainda os primeiros sinais da vitalidade que se esvai, seja pela doença que é visita mais frequente, seja pela frescura física de outrora que já não é de agora. Pode ainda ser apenas o reflexo de um momento de nostalgia: da irresponsabilidade sadia que não trazia os cabelos brancos, da ausência de preocupações, um tempo em que o lazer era a prioridade, não o trabalho que agora afogueia e consome toda a intensidade da vida.
Seja qual for o sintoma, a agulha da bússola orienta-se para um elixir da juventude que a faça perdurar. Nem que seja para transportar uma dimensão enganosa à vida de quem se quer agarrar à juventude que ficou para trás, mas ainda assim uma juventude prolongada. Não sei se é isto que se passa quando dou comigo a recordar como era tratado pelos vizinhos do sítio onde os meus pais viviam. Já entrado na casa dos trinta, sempre que me cruzava com certas senhoras elas insistiam em dar os bons dias como desde sempre o tinham feito: “bom dia, menino Paulo”.
É este “menino Paulo” que me fazia as delícias. Como disse, podia já não ser a criança ou o adolescente que elas se habituaram a tratar por “menino Paulo”. Podia já trazer alguns cabelos acinzentados que desvelam a idade que irrompe impiedosa. Podia até aparecer de fato e gravata, querendo exteriorizar a responsabilidade que os imperativos profissionais exigem. Ainda assim era, e sempre, o “menino Paulo”. Como sinal de uma idade que ficou marcada para sempre na retina daquelas senhoras. Como se uma idade se congelasse, como o tempo parasse nenhures e encaixilhasse o tratamento que sempre me deram. Para aquelas senhoras nunca seria o que outras pessoas me chamam, muito menos a categoria profissional que me traz o “privilégio” (aqui as aspas têm toda a propriedade) de certos tratamentos apropriados. Apenas “menino Paulo”.
Há melhor elixir da juventude do que este? Ainda que não passe de uma simples consolação; nem que seja um prémio pelo “bom rapaz” que fui, para levar aquelas senhoras à deferência do mesmo tratamento da infância e da adolescência; seja como for, é um nutriente que traz um contentamento difícil de explicar. Não vejo nisto uma forma de prolongar a juventude perdida no tempo que passou. Tudo tem o seu tempo, e há certas amarguras que hão-de andar comigo durante toda a vida (o medo da morte, por exemplo). Tenho a consciência de que o tempo se vai vivendo consoante as circunstâncias – umas, que somos nós mesmos a forjar; outras, que nos são alheias e às quais temos que nos adaptar.
A recordação deste momento inolvidável por que passava ao regressar ao local onde vivi quase trinta anos não tem o significado de uma busca incessante da juventude que ficou registada nas páginas da história. Reflecte apenas o quão bem me sabia escutar aquela expressão, uma melodia que adoçava os ouvidos.
O diagnóstico é outro quando me deixo descair para a mesma geração dos meus alunos. Às vezes o tema exige avaliar os efeitos inter-geracionais de uma certa medida. É aqui que me deixo levar pela distracção e, com espontaneidade, solta-se da minha boca “a nossa geração” – como se os alunos, muitos deles com menos quinze anos, possam ser metidos na minha geração, ou eu na geração deles. Quando dou conta do erro e o corrijo, depois reflicto sobre as motivações. Não creio que seja a necessidade de retroceder na idade, para espaventar o fantasma da meia-idade que anuncia para breve a velhice. O que me conduz a esta comparação simpática é olhar para os alunos e sentir que estou mais próximo deles do que das gerações que me antecedem. Vejo-me como um entre eles, esquecendo-me que o espelho não deixa mentir e que as marcas da idade já se fazem sentir no meu caso, não no deles.
Mas a juventude transcende a verdade do bilhete de identidade. É um lugar comum afirmar que a juventude é um estado de espírito. Eu acho que é bem mais do que isso: é um processo de reconstrução interior, um revigoramento procurado e alcançado através de novos desafios que façam da vida um devir com sentido. Novas buscas, novas causas, novos rumos – ou apenas os que já vinham sido trilhados, com a consciência das recompensas íntimas que trazem. É este o fio-de-prumo que mostra o tónico da juventude.
1 comentário:
Os novos ciclos de vida trazem-nos reflexões engraçadas.
O primeiro ano de vida de um filho é um turbilhão emocional para os pais, principalmente por terem de se confrontar consigo próprios.
O que diremos nós daqui a uns 10 anos, quando a evolução dos nossos filhos fôr mais intelectual que física? Como nos sentiremos em relação a nós próprios e às gerações mais novas?
E daqui a 15 anos? As nossas filhas a falarem ao televideofone com as amigas e os namorados...
E daqui a 25 anos, quando elas deixarem a nossa casa? Como será a nossa vida? Saberemos ainda olhar para a frente e gozar esse novo ciclo de vida, ou vamos fazer como muitos dos nossos pais que começam a preparar-se para a morte? Hoje falamos deles e dizemos-lhes o que devem fazer. E amanhã?... Teremos coragem de agir segundo os nossos próprios conselhos?...
Pelos caminhos de Portugal,
CP
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