22.10.04

Das legitimidades ilegais que se sucedem no tempo

Não gosto de escrever sobre futebol – no que o futebol tem de luta entre clubes, da rivalidade irracional que alimenta o fanatismo clubista, das tricas que se tecem nos bastidores, no protagonismo dos agentes exteriores ao jogo que se joga no relvado. Sei que o futebol é o nutriente de paixões irreflectidas, que cortam a sociedade na transversal – desde o povo ignaro que se cega no calor de um jogo, até às elites intelectuais que perdem o norte e se deixam envolver pelo manto da irracionalidade quando discutem sobre futebol (veja-se esta confissão de Francisco José Viegas, por exemplo).

Refiro-me às lamentáveis incidências do jogo de domingo passado entre dois clubes de cidades diferentes que alimentam um ódio recíproco que vai para além da simples rivalidade desportiva. Não vi o jogo. Tarefas mais nobres chamavam a minha atenção. Apenas fui confrontado, no dia seguinte, por uma conferência de imprensa que a comunicação social não hesitou em apelidar, com justeza, de surrealista. O nível que campeia entre a tribo do futebol sempre se pautou pela baixaria. Quando se pensava que tinham batido no fundo, eis que somos surpreendidos: afinal ainda era possível ir mais baixo.

Vou fugir das discussões dos pormenores – se a bola entrou ou não, se foi ou não penálti, se o árbitro teve ou não uma actuação premeditada para beneficiar a equipa que ganhou o jogo, e muito menos a troca de mimos entre os presidentes dos dois clubes. Não me apetece contribuir para o peditório canhestro de tanta mesquinhez. Mais útil é reflectir sobre a ideia que perpassa a alma dos adeptos do clube da cidade onde vivo. O que vou relatar não aconteceu de forma episódica. Foram várias as vezes que, em diversos locais, ouvi pessoas atingidas pela cegueira clubista a alinhavarem o raciocínio que me deixou perplexo.

Na rua, em cafés, nos corredores do hospital, pessoas menos formadas ou com formação superior – todos convergiam no mesmo sentido. Admitiam, com renitência, que o árbitro tinha favorecido a equipa da sua preferência. Só com renitência o admitiam, como se tentassem tapar o sol com a peneira e negar as evidências que saltam à vista desarmada. Isto ainda se compreende. É a fé clubista que tolda a frieza de espírito, impedindo que a vista alcance para além da miopia clubista. Intrigante era o que completava o raciocínio: que durante anos a fio (“no tempo do Salazar”, escutei várias pessoas a vociferar) a equipa da capital foi favorecida. Um dos senhores com que me cruzei na rua lembrava o seu interlocutor que “até empurravam o nosso guarda-redes para dentro da baliza, e os golos contavam à mesma”.

Percebi a mensagem: no passado a equipa rival mereceu os benefícios dos árbitros. Foi ela que venceu campeonatos atrás de campeonatos à custa de malabarismos da arbitragem. Privilégios que privaram as equipas rivais – e, em especial, a equipa da minha cidade – de títulos. Concorrência desleal, portanto. Estas pessoas sugeriam que esta legitimidade era ilegal, porque sustentava a concorrência desleal que afastou a equipa da minha cidade de títulos que seriam merecidos em condições de luta igual.

Esta ideia contém uma perversidade que, confesso, fiquei sem perceber se era inocente ou intencionada. Ao sugerir que no passado a equipa rival foi favorecida pelo regime, insinua-se que agora chegou o tempo das regalias mudarem para a equipa da minha cidade. Esta gente criticava as benesses que levavam “a equipa lá de baixo” às vitórias. Mas agora esquece-se que são os mesmos procedimentos que estão na origem dos títulos que a equipa da minha cidade tem acumulado. Em que ficamos? Os privilégios da concorrência desleal só são censurados quando são contra nós? E quando nós somos os beneficiados por esta ilegalidade, passamos uma esponja pela memória e apenas nos dedicamos a festejar as vitórias alcançadas?

É preocupante que haja pessoas sem pejo em admitir que se no passado o adversário foi beneficiado, agora chegou a sua vez de degustar o mesmo repasto. Joga-se na mesma moeda, como se as vitórias conquistadas sem auxílios alheios valessem a mesma coisa que as vitórias que se suportam em ajudas vindas de fora. Quando se admite isto em público, fica exposta a mediocridade que ainda por aí à solta. Confirmando que os meios – todos os meios – justificam os fins.

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