Quando pensávamos que estava enterrado na sua tumba política, Cavaco desperta da letargia e liberta-se do casulo. Há quem diga que gere o calendário dos acontecimentos políticos para lançar, no devido momento, a candidatura à presidência da república. É isso que o leva a surgir no horário nobre, catapultando a atenção das câmaras e dos microfones. Onde o senhor professor conferencia acorre em peso a comunicação social, ansiosa por um lamiré que anuncie o professor como o candidato às presidenciais.
Há dias, em mais uma conferência que prendia a atenção de uma plateia que se saciava com as palavras do professor, tivemos mais do mesmo Cavaco. A idade pode passar, mas os tiques mantêm-se. Diria que se refinam, estes tiques. Continuamos a ouvi-lo, em referências ao passado, a dissertar sobre “o meu” governo, “os meus” ministros, “as minhas” decisões de governação. Um rosário de auto-elogios, um retrato de gabarolice incontida. Como quem enfatiza que (na sua maneira de ver) foi o melhor primeiro-ministro da nova era democrática, numa auto-promoção ao papel do novo Messias que trará a redenção e a felicidade ao país.
As últimas declarações mostram pessimismo quanto à conjuntura económica. Tentando antecipar o que está para vir, Cavaco suspeita que estamos no caminho da diarreia despesista. Com um novo ciclo de eleições que se abeira, o antigo primeiro-ministro – talvez lembrando-se da sua própria experiência – achou por bem alertar para o regabofe orçamental que se está a preparar. A aproximação de eleições é sinónimo de descontrolo das contas públicas, com um aumento das despesas (exigências do eleitoralismo que atravessa todos os governos, independentemente da cor política) sem ser acompanhado por um acréscimo das receitas. A situação agrava-se porque as expectativas de crescimento económico não são favoráveis. Ao que tudo indica, abeiramo-nos de um descontrolo das despesas que terá efeitos perversos para a estabilidade orçamental, depois do impensável deslize dos governos Guterres.
Tão grave será a situação que se avizinha, que Cavaco sugeriu ao devoto povo português que reze. Reze muito, para que o descontrolo orçamental não se instale. Não sei se o destinatário destas afirmações seria o ministro das finanças, conhecido católico praticante, pessoa de arreigada fé. Não sei se nesta mensagem da personagem messiânica que se insinua para o Palácio de Belém há linguagem em código. Sendo Bagão Félix tão convictamente católico, a invocação das preces que fazem chamamentos divinos parece indicar que Cavaco estava a falar em código para o ministro das finanças. Uma espécie de apelo à “boa consciência cristã” do ministro, para que não caucione os danos às finanças públicas que o populista primeiro-ministro congemina.
Com o ar de quem tem uma certeza inabalável sobre o que diz, Cavaco introduz uma linha fracturante na sociedade. Já não bastava a polémica europeia desencadeada pelo fundamentalismo católico de Buttiglione, agora vem Cavaco contribuir para o peditório com a sugestão de que só as preces podem evitar a crise orçamental que está a bater à nossa porta. Cavaco terá esquecido que somos um Estado laico, e que nem todos acreditam que as rezas têm efeitos equivalentes às mezinhas milagreiras de bruxas e quejandos. Até parece que Cavaco convoca as preces como os índios fazem a dança da chuva para quebrar o ciclo vicioso da seca que rouba a fertilidade desejada.
O apelo do além é um mistério insondável, vindo de quem tem tantas certezas. Ou talvez não. Porventura encerra outra mensagem cifrada: a desconfiança em relação ao (des)governo que temos, o receio de que com a aproximação das eleições os sacrifícios orçamentais do passado recente se diluam em nada. Intrigante, para quem se perfila como o candidato natural à presidência da república dos partidos que estão no governo. A menos que, com este claro desafio ao governo, Cavaco esteja a enviar sinais de que não se quer dar ao trabalho de ser o futuro presidente da república.
Caso contrário, ele que se cuide. As esquerdas, pressurosas, cultoras da liberdade de expressão como mais ninguém o consegue ser, deviam alertá-lo que deve ter tento na língua. Senão acontece-lhe o que sucedeu ao seu concorrente na corrida à sinecura presidencial, o homem das prédicas dominicais na TVI (que deixaram de ter lugar). Se quer avançar para a corrida presidencial, ele que não desafie o douto primeiro-ministro e a sua equipa de ministros de primeira água. Porque nem a invocação divina lhe valerá para evitar o silenciamento se o governo puser em prática a maquiavélica prática de pressionar os órgãos de comunicação social, que deixarão de ser a câmara de ressonância da dissidência cavaquista.
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