Acontece ano após ano. Os alunos que entram na universidade têm à sua espera um diligente comité de recepção. Dão-lhes as boas vindas, mas que não esperem mordomias de quem recebe um forasteiro com hospitalidade. Espera-lhes a praxe académica, um ritual iniciático que acolhe os recém-chegados. Funciona como a chancela sem a qual os novos alunos são estranhos para os seus pares que já frequentam a universidade há mais tempo. Uma espécie de socialização forçada, sem a qual os neófitos não são membros da comunidade. Pelo caminho, o pretexto para festas mil, o terreno que se fertiliza para as mais insanas diatribes a que se sujeitam os pobres caloiros. Que, pacientemente, se sujeitam às partidas dos veteranos, resignando-se à sua sorte, esperando que a imaginação dos praxantes não esteja virada para quadrantes que raiam a aberração.
Pensava que as praxes iam ficar meio adormecidas neste ano lectivo. Em anos anteriores as aulas começavam ao mesmo tempo para todos os anos. Era certo e sabido, a primeira semana de aulas era uma semana sem alunos nas salas de aulas. Como estavam entretidos com o espectáculo das praxes e com as festanças que se prolongavam até às primeiras horas da manhã, não havia espírito para começar a aturar os professores. Regressados de férias, o motor de arranque tinha dificuldades em funcionar. Os neurónios estavam preparados para colocar a fértil imaginação ao serviço da praxe anual. As aulas podiam esperar mais uma semana.
Este ano o calendário alterou-se. Nas duas primeiras semanas só houve aulas para o 2º, 3º e 4º anos. Os caloiros tiveram que esperar até a terceira semana para entrarem em cena. Por isso julgava que este ano lectivo o hábito ia ser atenuado, que não teríamos uma semana “frenética” de praxes académicas. Enganei-me. O uso está tão enraizado que nem assim, com esta décalage do calendário, os alunos deixaram cair a praxe na apatia. Ainda ontem, já com duas semanas de aulas para os caloiros, entrei na universidade e dei de caras com uma plateia bem recheada cheia de excitação pelas diabruras que se aplicavam aos dóceis caloiros.
Como um ritual de iniciação que se preze, a praxe obedece a um código de conduta e exterioriza-se num conjunto de sinais que devem ser escrupulosamente respeitados. Desconheço os pormenores, mas reparo que os “veteranos” (os não caloiros, para este efeito) só podem ter parte activa no ritual se envergarem o tétrico traje académico, que deles faz pinguins que não andam longe dos cangalheiros que levam as almas para sete palmos abaixo da terra. Um dia destes encaminhava-me para a universidade quando me cruzei com meia dúzia de “veteranos”. Uma delas chamou a atenção de uma colega por ter desleixado um pormenor qualquer do traje. “Olha que isso vai contra a tradição”, advertiu enquanto, com um gesto, indicava à colega o que estava errado.
Tudo em nome da tradição. Ainda que a tradição seja, ano após ano, subvertida com os exageros que são relatados. Lembro-me que no ano passado, em Lisboa, obrigaram um grupo de caloiros a simular um assalto a um banco! São tantas as histórias de humilhações que se impõem sobre os incautos caloiros, não lhes restando outra hipótese senão vergarem a cabeça perante a ignomínia dos “doutores” (assim os não caloiros exigem ser tratados pelos caloiros). Eles sabem que é preferível a resignação. Preferem ser motivo de chacota durante alguns minutos do que serem ostracizados no resto do seu percurso dentro da universidade.
Ainda que as associações de estudantes enfatizem que ninguém é obrigado a submeter-se à praxe académica, a verdade é outra. Quem se recusar aos ditames da praxe é apontado a dedo como a ovelha ranhosa sem espírito académico. É um desalinhado que será olhado de soslaio pelos seus pares. Na verdade, nunca será um dos “pares”. Esta é uma forma de exclusão que resulta da recusa em participar no ritual. Espezinhando algo de fundamental, mesmo para quem estuda nas universidades: a liberdade de opção, e o direito de não ser marginalizado em virtude das opções conscientemente tomadas.
Quando vejo o que se faz nas praxes (ainda que não dedique tempo ao espectáculo – o espectáculo é que me entra pelos olhos), quando leio, todos os anos, relatos de exageros que vão para além do que a imaginação pode comportar, só lamento que estes alunos esgotem o seu capital de imaginação na praxe. O dom imaginativo tem um curto pavio, que ao fim de uma semana de praxe se extingue. No resto do ano, quando eles mais precisavam de estimular esta capacidade, é a letargia. Um caso de desaproveitamento de capacidades!
1 comentário:
Acho a praxe académica uma valente manifestação da imaturidade da nossa juventude.
Insere-se no nível geral do ensino no nosso país.
E, para mim, esse é o problema fulcral.
Talvez os netos dos nossos netos tenham mais sorte.
Eça
P.S.- Este blog sem os comentários do Sr. Batido perde profundidade.
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