26.10.04

Palavrões em estádios de futebol banidos na Bulgária

É esta a intenção do governo búlgaro, que fez aprovar legislação nesse sentido. Coisa diferente é saber se consegue levar a água ao seu moinho. Senão tentemos idealizar a concretização desta proibição na prática. Como poderão as autoridades búlgaras tornar a proibição de palavrões numa regra eficaz?

Poderão contar com o civismo dos adeptos, subitamente convertidos a uma nova ortodoxia de urbanidade que os transforma em recatados meninos incapazes de proferir uma palavra que passe além do calão? Não conheço o povo búlgaro para afiançar se é possível esta conversão a um novo paradigma linguístico. Dando de barato que nisto das emoções desregradas os adeptos obedecem a características uniformes em qualquer local do planeta, e descrente como sou na apetência do ser humano para a mutação a velocidades supersónicas, não acredito que sejam os adeptos búlgaros a adoptar voluntariamente um novo comportamento que faça a vontade dos governantes.

Como estes insistem numa espécie de higiene verbal dentro dos estádios, resta a hipótese do policiamento feroz dos adeptos. O que faz adivinhar os estádios preenchidos por agentes de autoridades, quem sabe se trajando à civil, para apanhar os que persistem em fazer tábua rasa da nova lei. Todos vigiam todos, com receio de que cada um seja o próximo apanhado na esparrela da lei, ficando ao alcance das coimas que se anunciam elevadas.

Confrontados com o espartilho da contenção verbal, os adeptos enveredam por uma de duas vias: ou deixam de vibrar com o espectáculo, para não serem atraiçoados pela destemperança verbal e terem que desembolsar quantias elevadas que alimentam o erário público; ou deixam de frequentar os estádios, com receio de se encaminharem para um penúria lacrimejante. Seja qual for a opção, a medida tem muito de castradora. Funciona como uma venda que se coloca na boca dos adeptos que, possuídos pela irracional emoção de quem ferve com o espectáculo, deixam escapar insultos e outros impropérios com a mesma fluência de uma diarreia.

No fundo, as autoridades búlgaras não devem gostar de futebol. O objectivo da medida não será engrossar os cofres do Estado com as multas aplicadas aos mal-educados adeptos que infringem as normas de recato verbal. O verdadeiro objectivo será esvaziar os estádios de futebol, tirando-lhes o sal e a pimenta que são um ingrediente especial do desporto – a emoção dos adeptos, o calor que se transmite das bancadas para o relvado e que empolga os intervenientes.

Tento imaginar a aplicação da medida em Portugal. Em boa verdade, não estou a ver a mínima hipótese de alguma vez um governo se aventurar no anúncio de semelhante medida. Tão forte é a tribo do futebol, e tão empenhada no desbragamento verbal ela está, que esta medida nunca poderia passar dos sonhos do maior dos utopistas. Mesmo assim, levemos a insólita hipótese ao extremo. Para aqueles que, ao menos uma vez na vida, assistiram a um jogo de futebol, decerto terá sido fácil detectar a enxurrada de palavrões que invade as bancadas. Não se passa um minuto sem que as pessoas à nossa volta não façam disparar a artilharia de palavrões que faria corar de vergonha os guardiães da decência.

Disparam em todos os sentidos: o árbitro é o mais visado (insulta-se mesmo antes de começar o jogo – “só para adiantar trabalho”, como me explicou um adepto quando lhe perguntei porque estava a chamar nomes ao árbitro se ele ainda nem sequer tinha começado o jogo…); os jogadores da equipa adversária também são bombardeados com a artilharia de vitupérios, como se o coro os levasse à desmoralização; e, quando as coisas correm mal à equipa da preferência, até os próprios jogadores não escapam ao vernáculo das massas.

Como somos latinos, usa-se dizer que temos o sangue na guelra. Os búlgaros não são latinos, são eslavos, povos mais calmos. Se na Bulgária existe a necessidade de regulamentar os comportamentos de quem frequenta estádios, numa cruzada em busca da urbanidade dos espectadores, por maioria de razão essa cruzada se devia estender até aos países onde a língua se solta com mais facilidade para o insulto fácil. Os adversários do protagonismo do futebol podiam aproveitar a ocasião para lançar uma campanha de descrédito da tribo que se alimenta deste desporto, propondo uma lei idêntica à aprovada na Bulgária. Eis a melhor forma de destruir por dentro o protagonismo do futebol.

Não antevejo sucesso a essa empresa. Porque seria anti-democrática (e agora a voz do povo está cada vez mais na moda, como imperativo que deve ser escutado, mesmo que se confunda os gritos de uns poucos com o sentimento da maioria). E porque iria subtrair a emoção das massas que se deixam iludir com o espectáculo do futebol, como se os jogos da equipa do coração fossem o único tónico que imprime rumo à sua vida. Com tanta emoção à flor da pele, como aceitar a castração das emoções, como silenciar as vozes das hordas irracionais que se passeiam pelos estádios? Aqui sim, um travão à liberdade de expressão – também muito em voga nos dias que correm. Não há lugar a tais exageros. Até porque se sabe que as mães dos árbitros não são as senhoras pouco recomendáveis que as multidões dos estádios insinuam…

Sem comentários: