11.10.04

O regresso dos dias da censura?

Por estes dias anda o país assoberbado com a nova diatribe do professor Marcelo. Depois de homilias mil em que fez e desfez como quis, com a complacência de um dócil apresentador do jornal dominical da TVI, o professor ficou abespinhado com as pressões da administração e bateu com a porta. Ao que consta, terão existido pressões (ainda que indirectas) do governo sobre os proprietários da TVI. A palavra "censura" anda de boca em boca, relembrado tempos idos de lutas contra o tenebroso fascismo.

Pelo meio, a inabilidade do governo. Parecem elefantes em loja de porcelanas. É como se a cauda do paquiderme sacudisse e levasse consigo toda a cristaleira em redor. Um ministro desabrido fez as honras da casa. Gomes da Silva, que ornamenta o cargo de ministro dos assuntos parlamentares, é um ministro para lamentar. O seu direito à indignação não se compatibiliza com o cargo que ocupa. Nem muito menos se concilia com a estreita vigilância que um país inteiro faz a este governo, com o presidente da república à cabeça. A imagem que paira é a de um país sempre atento ao primeiro deslize do governo. À mínima desatenção os danos são exacerbados por quem ainda não digeriu a decisão presidencial de não convocar eleições.

Os abutres do costume saltaram, ufanos, para a praça pública. Soou o alarme: desde o 25 de Abril de 1974 não há memória de semelhante manifestação de censura, sentenciam. Curta é a memória. Era bom trazer do baú das recordações os tempos áureos do PREC, as inúmeras tentativas para silenciar a imprensa que não se filiava nos interesses revolucionários. Quem estivesse contra os “interesses da classe operária” era apodado de fascista. A legalidade revolucionária não hesitava em tentar calar as vozes dissidentes. Mas não, isto não é censura. Vindo agora os arautos da desgraça invocar a censura para o caso em apreço, logo dirão que eram tempos excepcionais, repletos de excessos que justificavam os deslizes totalitários. É o costume: dois pesos, duas medidas.

A atitude do governo não tem justificação. As declarações estapafúrdias de Gomes da Silva são inadmissíveis. Num país normal, este senhor apresentava a demissão no dia seguinte. Se ainda fossemos um país normal, e se o ministro se mantivesse apegado à sinecura, no dia seguinte era o seu chefe que o conduzia até à porta da saída. Mas as fidelidades pessoais pagam-se com um preço elevado. Em vez de gerir tacticamente o caso, o primeiro-ministro quis salvar o fiel ministro. Com o elevado custo de suportar a degradação da imagem do governo, num plano inclinado de que parece perder o controlo. O desgoverno é tanto que Santana está a ter o que merece: uma passagem efémera pela governação, um retrato que não ficará na retina dos cidadãos.

A gestão do caso foi desastrosa. Entrará para os compêndios como o paradigma do não fazer. E os governantes envolvidos acabaram por ir no engodo da estratégia de Marcelo Rebelo de Sousa. Acabaram por o elevar ao patamar de mártir, o injustiçado cuja voz foi silenciada. Chegamos ao ponto de ver um frentismo das esquerdas, irmanadas na defesa das homilias dominicais do professor. Suprema ironia! Quem sabe se não teremos a surpresa de ver o professor como candidato presidencial de uma frente de esquerdas, que assim acantonaria o PSD num beco sem saída – quem teria a coragem de combater Marcelo, o mártir, a figura tutelar das esquerdas unidas?

Censura? Censura existia antes da revolução de 1974. Instituída, organizada, com métodos estabelecidos, uma ameaça sempre presente que trazia um clima de temor pela permanente asfixia à liberdade de opinião. Os que se agarram a palavra censura ou têm memória curta ou servem-se de uma retórica lamentável para aquecer ainda mais a água fervente em que vai sendo cozida a sociedade. Porque muitas vezes é preciso exagerar no diagnóstico para conquistar apoios. Se me falarem em condicionamento da liberdade de imprensa já estou de acordo. O que é bem diferente de trazer à superfície a palavra "censura". A diferença não é apenas uma questão de grau, é acima de tudo uma questão de métodos. O primeiro político que nunca tentou fazer condicionamento da imprensa que atire a primeira pedra ao ar…

Falar de censura nos tempos que correm é um atropelo à memória. É ignorar que a censura foi vivida no Estado Novo, com as consequências nefastas conhecidas. Esta retórica alarmista, que convoca a palavra censura, equivale a um desrespeito da memória de tantos quantos viram a liberdade de expressão tolhida no passado, a todos os que pagaram com a privação da liberdade o preço da ousadia das ideias.

Uma pergunta para finalizar: haverá diferença quando a “censura” é imposta pelo governo e quando ela resulta do lápis azul dos chefes de redacção e directores de jornais (Saramago, o paladino das liberdades, foi o inquisidor-mor enquanto director do Diário de Notícias no Verão quente – ninguém o recorda?)? Inaceitável num caso, contemporiza-se no segundo? Porquê? O efeito não é o mesmo?

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