5.10.04

Imagens de Inglaterra

Sempre que regresso a Inglaterra apodera-se de mim uma mescla de sensações, o lado bom e o lado mau do país. No lado bom, a organização que não existe em países latinos. A maior urbanidade das pessoas, com o hábito de fazer filas para tudo e mais alguma coisa, com o melhor hábito de respeitar essas filas. Também me agrada o país cosmopolita, uma amostra viva da diversidade humana de que o planeta é feito. Mais notório em Londres, é também visível ao andar pelo país. A cada momento cruzo-me com asiáticos, africanos, árabes, indianos, latino-americanos, europeus de leste. A amálgama de línguas que se escuta em Inglaterra, em plena rua, é outro espelho da constelação de pessoas que vêm de diferentes origens desaguar nas ilhas britânicas.

Este cosmopolitismo traz algumas aberrações. O melhor exemplo: os jovens japoneses que por aqui se instalam como estudantes e que, em pouco tempo, se convertem às “vanguardas” da cultura ocidental. É vê-los usar calças largas, rotas, coçadas como se tivessem anos e anos de uso, cabelos alourados ou enruivecidos após uma cura de cabeleireiro, óculos cor-de-laranja ou lilás, blusões de cores berrantes que se ajustam milimetricamente aos seus corpos franzinos. Ensaio um largo sorriso pela imagem patética que transmitem.

Do outro lado da moeda, os aspectos negativos. A alimentação – e aqui falo da gastronomia tipicamente inglesa, não da infinidade de restaurantes internacionais que servem de bom refúgio da péssima gastronomia local. Os pequenos-almoços são avantajados, com salsichas e bacon que escorrem gordura com generosidade, ovos (estrelados, mexidos ou escalfados), feijão e tomate, tudo cuidadosamente regado com doses industriais de ketchup ou mostarda. Quando tomo o pequeno-almoço acompanhado por nativos que ingerem este manjar fico no limiar da náusea. Imagino-me a deglutir semelhante pequeno-almoço e adivinhar o efeito indigesto nas horas seguintes. Prefiro não imaginar esse pequeno-almoço a entrar no meu estômago.

O tempo, o tenebroso tempo que se abate impiedosamente sobre as ilhas, é outro aspecto incómodo. A instabilidade é a nota dominante. As nuvens cobrem o céu com uma assiduidade militante, obrigando a esquecer a existência do sol. Mesmo quando os raios de sol espreitam tímidos por entre uma aberta de nuvens, é tão fugaz que parece que as nuvens se descuidaram para o sol se poder espalhar. Mas logo regressa a normalidade. O sindicato das nuvens cumpre a sua função. Organiza-se e, em breve, tinge o céu de negro, trazendo os ventos desagradáveis que despenteiam quem anda na rua. Com este tempo não é necessário perder muito tempo à frente do espelho a organizar um penteado. Nos primeiros momentos fora de portas, o zeloso penteado é consumido com avidez por uma rabanada de vento que leva os cabelos pelo ar. Talvez seja esta a explicação para os penteados anárquicos, cabelos espetados, revolvendo-se de um lado para o outro sem sentido pré-determinado. Confortáveis andam os carecas que evitam a exasperação de sentir os cabelos ondear, selvagens, ao sabor do vento.

O país é ainda um santuário para os piercings e tatuagens. Em Portugal esta é uma moda que ainda vai conquistando terreno. São os mais jovens que ostentam estas marcas de modernidade. Em Inglaterra é uma moda transversal, não olha a idades e sexos. Desde o piercing sóbrio incrustado numa das narinas, passando pela colecção de piercings colocados nas orelhas, aqueles que aparecem pregados no canto do sobrolho, os que as meninas envergam quando os umbigos vêm respirar o ar fresco, sem falar nos que se descobrem quando alguém deixa escapar uma gargalhada e se solta um aditivo cravado na língua. No auge, esta possibilidade: em Brighton existe uma loja da especialidade que anuncia mil e uma possibilidades de colocar piercings nos órgãos genitais femininos e masculinos.

Inglaterra é ainda um local de sensações pessoais, que traz recordações dos três intensos meses que aqui passei há quatro anos. Empenhado no trabalho, por obrigações inadiáveis, nunca como então fui assaltado pelo fantasma da solidão. Refugiado no trabalho que me esperava, lembro-me de passar dias seguidos em que apenas falava com alguém quando pedia o almoço. Foi aí que senti mais ainda a família, os amigos, a namorada, como são cruciais para o equilibro pessoal. Foi aí que descobri que eles são o meu país. Ficou a impressão de que nesses três meses de “reclusão” cresci numa medida equivalente a anos de amadurecimento. Uma introspecção sem precedentes, que serviu para conhecer partes de mim que andavam escondidas.

(Em Brighton)

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