31.3.05

A morte do Pacto de Estabilidade e Crescimento: um caso de polícia?

Havia umas regras. Elas foram acordadas pelos governos dos países que formam um clube. As regras impediam que os governos gastassem demais. O défice orçamental não podia ultrapassar 3% da riqueza gerada anualmente em cada sócio do clube. A ideia pertenceu ao sócio mais poderoso – a Alemanha – por suspeitar que outros sócios, conhecidos por terem uma tradição desregrada, se aproveitassem da pertença ao clube para regressarem ao regabofe. Os alemães receavam que os países do “clube Med” (os do sul da Europa) retornassem aos défices exagerados, apresentando a factura aos sócios bem comportados, convocados a suportar a factura. Assim nasceu o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC). Previa multas pesadas para os países que descarrilassem para além do limiar de gastos considerável aceitável.

Mas a vida tem descaminhos que só o futuro revela. Foi a Alemanha (em parelha com o outro todo-poderoso, a França) que pecou pela primeira vez. E voltou a pecar, uma e outra vez, sem que as regras se aplicassem. Multas, nem vê-las. Expedientes, muitos. Argumentação sinuosa, negociações obscuras para protelar a aplicação das regras que levariam às multas, manobras debaixo da mesa para congelar o PEC. Foram os próprios jogadores (os governos dos países) que decidiram alterar as regras.

Esta novela é um caso de polícia. A começar: quando tanto se invoca os direitos dos consumidores como algo de sagrado, o episódio ilustra o defraudamento de uma categoria muito importante de consumidores – que coincide numa dupla faceta, de eleitores e de contribuintes. Como eleitores sancionamos, com o voto, a política de gastos e de impostos necessários para dar cobertura às despesas. Como contribuintes, através dos impostos que somos forçados a pagar, somos a chancela da política despesista.

Ora o PEC tinha uma virtude: limitava a irresponsabilidade dos governos quando usam o dinheiro dos impostos, esse dinheiro ingrato que é de todos nós e, por isso mesmo, nada custa a gastar de forma leviana. Ao fixar limites para a superação das despesas em relação às receitas, o PEC era uma garantia para quem paga impostos. E representava uma tentativa de gestão mais racional, menos politizada, dos dinheiros públicos. Com outra vantagem adicional: défices orçamentais sucessivos exigem o endividamento do Estado. Como a dívida pública é de longo prazo, a factura da leviandade política de hoje é endossada às gerações futuras, sem que elas se possam pronunciar – porque ainda nem nasceram! Mas já o inspirador dos coveiros do PEC (Keynes) sancionava: isso não é importante, porque no longo prazo estamos todos mortos…

Segunda razão para o caso de polícia: a perda de moralidade dos governos nacionais. Quem tem a autoridade para fazer e impor regras deve dar o exemplo. As regras do PEC foram profundamente alteradas porque os sócios eram incapazes de as respeitar. A imagem que passa é a de um jogador que se arroga ao papel de árbitro e muda as regras do jogo, porque com elas não conseguia vencer. Eis o belo exemplo para os destinatários das regras – de todas as regras – que nascem com a chancela do Estado: é o Estado o primeiro a furá-las quando elas não são convenientes. Dando motivos para os cidadãos seguirem o exemplo. Daí ao desrespeito das regras definidas pelos governos, um passo curto. Boas notícias para um anarquista…

Europa à deriva, com líderes frouxos, demagogos, com excesso de socialistas (e de outros oportunistas) a quem interessa o ambiente de laxismo orçamental como instrumento para políticas falsamente sociais que lhes permitem viver agarrados ao poder. É nesta Europa à deriva que os consumidores da arena política são alegremente enganados por quem governa. Há quem ensine que um dos maiores poderes de quem coloca o voto nas urnas é “votar com os pés”, impedindo a continuidade em funções de quem tenha governado mal. O truque que ilude o consumidor-eleitor-contribuinte é simples e recompensador para políticos vendedores de banha da cobra: passar a imagem que temos que permitir a capacidade de gastar para além das possibilidades, como se fosse a receita mágica para retirar países das crises ou para a sobrevivência do estafado “modelo social europeu” – a razão da falência da Europa.

Dizem que o Estado somos todos nós. Então porque não estender ao Estado o princípio que limita a capacidade de endividamento dos particulares? É verdade que hoje olhamos para todos os lados e as hipóteses de endividamento das pessoas se multiplicam. Mas tudo tem um limite – e os bancos estão ao corrente desses limites, negando pedidos de crédito que os ultrapassam. Seria lógico que o mesmo acontecesse com a gestão dos dinheiros públicos. Quando são insuficientes para manter todos os vícios do Estado, cortem-se esses vícios, limite-se o tamanho do Estado que continua a ser gigantesco.

Com as novas regras o PEC está morto. Veremos mais inconsciência política acobertada pela hipocrisia dos sócios do clube. Quem vai pagar a factura? O consumidor-eleitor-contribuinte que pediu dinheiro emprestado ao banco para comprar a sua casa. O mais provável é o Banco Central Europeu reagir, aumentando as taxas de juro. Se o consumidor-eleitor-contribuinte for inteligente, deve fazer tudo menos caucionar as decisões irreflectidas dos políticos incompetentes e irresponsáveis que conduzem os nossos destinos. Serão eles os culpados pelo emagrecimento dos orçamentos familiares depois do aumento das taxas de juro.

30.3.05

Automobilistas, esses terroristas

Novo código da estrada, repressão é palavra de ordem. Como se fosse a panaceia para combater a elevada sinistralidade rodoviária. A ideia é simplista, e como todas as ideias simplistas vem com a atracção do raciocínio linear: há acidentes em demasia, causados por excesso de velocidade (desculpa oficial que encapota outros males); logo, há que combater o excesso de velocidade com todas as armas. Puni-lo com multas exorbitantes, num assalto à bolsa dos automobilistas.

A ideia simplista agrada aos que fogem de uma análise mais profunda dos males semeados pelas estradas de norte a sul. É uma forma dos governantes e dos burocratas sem rosto se porem a milhas da responsabilidade que o Estado tem. O lobby do sector automóvel defende-se deste ataque cerrado: a atenção devia estar concentrada a montante, na educação dos automobilistas (nas escolas de condução e, antes disso, nos bancos da escola) e na qualidade das estradas.

São argumentos poderosos. De que serve um modelo de ensino de condução que é vetusto? Os alunos são encartados e, só depois, por sua conta e risco, aprendem a circular em estrada. Um sistema omisso em relação aos princípios básicos de condução defensiva. Sai-se das escolas de condução sem a aprendizagem de manobras de recurso, como dominar um automóvel em situações adversas. O que poderia evitar muitos acidentes, que têm na inépcia dos condutores a sua explicação. De nada vale apontar o dedo acusador ao excesso de velocidade. Estabelecer regras objectivas quando a subjectividade de cada condutor sublinha a diferença é um princípio inútil. Para um inábil que – sabe-se lá como – conseguiu tirar a carta de condução à enésima tentativa, circular numa auto-estrada a 90 km/hora é mais perigoso do que para um condutor mediano que viaja a 150 km/hora.

Se certos arautos da desgraça insistem que a sinistralidade rodoviária é uma das chagas sociais dos tempos modernos, porque não retroceder a campanha educativa aos bancos da escola? Se cada criança é um condutor de automóveis no futuro, porque não matar o mal pela raiz e criar nos currículos escolares matérias que educam as crianças para um comportamento civilizado quando estiverem ao volante?

O Estado demite-se destas responsabilidades. Prefere a via repressiva. Porventura porque permite enfatizar a sua vocação autoritária. Com um código da estrada tão opressivo, com uma margem de arbitrariedade tão acentuada (os mínimos e máximos das multas para cada infracção, e a sugestão de um desorientado secretário de Estado, que defendeu que são os agentes da autoridade que decidem, caso a caso, onde situar a multa…), o que fica à vista é a suprema autoridade do Estado. Aos automobilistas resta baixar a cabeça, tiritantes de medo que à espreita esteja uma brigada de trânsito ansiosa por exibir o complexo de farda e aplicar a insultuosa multa pelo mínimo deslize.

É o Estado “moralizador”, que envereda pela via fácil – “para grandes males, grandes remédios”. É uma solução que só tem vantagens. Primeiro, é uma mina de receitas – se os condutores não se habituarem aos rigores do novo código, e se os agentes da autoridade forem zelosos. Depois, é a maneira de contornar as responsabilidades de que o Estado foge a sete pés. Que interessa que as estradas tenham defeitos de projecto que tantas vezes motivam os acidentes? Que interessa que a sinalização vertical seja o verdadeiro atentado terrorista a quem anda na estrada, a armadilha que leva os automobilistas ao encontro do sinistro? Que interessa mudar o sistema de ensino, para que quem conduz esteja habilitado a reagir em situações de adversidade? Mais importante é reprimir, multar, multar a eito.

A finalizar, a excitação da comunicação social. No rescaldo da “operação Páscoa”, menos acidentes e os mortos quase diminuíram para metade em relação ao ano passado. Embriagada pela excitação que tolda o discernimento, afadigou-se em tirar conclusões precipitadas: a ligação de causa e efeito com o novo código da estrada, como se fosse a solução milagrosa que, numa penada, fez baixar a sinistralidade rodoviária. Pena que se esqueçam de informar que o volume de tráfego foi bem menor do que em Páscoas anteriores: não houve engarrafamentos. Sinal, também, da famosa crise de que os socialistas nos hão-de retirar com uma varinha mágica. Ora, com menos carros em circulação pelas estradas, menos acidentes, menos vítimas. O efeito balsâmico do novo código da estrada é uma falácia.

29.3.05

Mourinho, a pomba branca

O mundo é belo, porque reserva surpresas inauditas a toda a hora. A mais recente veio de Israel. Na milionésima iniciativa de paz votada ao fracasso, José Mourinho – auto-proclamado "maior treinador de todos os mundos" – foi convidado para patrocinar uma iniciativa que misturava futebol, paz e crianças israelitas e palestinas. A escolha não podia ser melhor. Para Mourinho ser um santo, convenhamos, só lhe falta a auréola…

Gostava de saber o que passou pela cabeça dos promotores da iniciativa. Não sei se eles estão a leste do futebol internacional. Imagino que não tenham tomado contacto com o curriculum notável de Mourinho. De todo o curriculum, não apenas das conquistas desportivas que o embelezam. O treinador do Chelsea é mestre na arte de atingir os objectivos sem olhar aos meios utilizados. Amesquinha os adversários, utiliza tácticas que importou de manuais clássicos de guerrilha, lança mão de uma linguagem bélica – um arquétipo que nega o desporto como imagem do espírito olímpico.

Para Mourinho, no desporto só há um resultado possível – a vitória. E não interessa como ela é alcançada. Se for com mérito, tanto melhor. É a forma de mostrar como ele e os seus são os melhores, servindo para humilhar os adversários que ousaram sequer sonhar que podiam derrotar a equipa comandada pelo “melhor treinador do mundo”. Se a vitória lhe vai parar às mãos pelos descaminhos da sorte, ou com ajudas externas (árbitros encantados, ou expedientes “à Pinto da Costa”), nada disso interessa, apenas a vitória. Cultiva um espírito guerreiro nos seus atletas, que olham para os adversários como o inimigo. A meio do trajecto, se necessário for, mina psicologicamente o terreno pisado pelos treinadores das outras equipas, critica asperamente árbitros quando eles não estenderam a passadeira à sua equipa.

E assim Mourinho foi escolhido como embaixador da boa vontade. Em boa verdade, como paradigma da paz podre que é apanágio das tímidas tentativas de pacificação entre palestinos e israelitas. É este o cenário em que uma falsa pomba branca aterrou em solo israelita para promover, através do desporto, a paz impossível. Tudo fica cristalino: com o ego incomensurável de Mourinho, a deslocação a Israel serviu para limpar a imagem belicista que ele tem granjeado ultimamente, e que o pôs na mira de fogo das autoridades inglesas e europeias do futebol.

quem pressagie uma brilhante carreira política a Mourinho, algures num futuro não muito distante. Neste tirocínio pelo mundo da bola, o aprendiz já revela os tiques de retórica que fazem da classe política um mundo lastimável. A digressão pacífica por Israel mostra-o sem contemplações. Um Mourinho que ergue a sua voz a favor de algo (a paz) que ele não consegue cultivar naquilo em que se tornou conhecido – sendo aliás a antítese desse valor; um Mourinho que se aproveitou, na sua inocência saloia, para limpar a face do homem belicista com a colagem a uma iniciativa que patrocina a paz numa zona tão sensível. Um homem com a arte da retórica, que sabe manobrar inteligentemente a sua imagem.

Como político, há-de ir longe. Mesmo que não se goste dele, há que lhe reconhecer a inteligência que coloca ao serviço dos seus objectivos. Estou a vê-lo, homem confessadamente de direita, não se revendo nos partidos clássicos desse espectro político, a fundar o seu próprio partido – o PM (Partido do Mourinho), pois melhor idiossincrasia egocêntrica não podia existir. Depois, a afundar o PSD e o CDS-PP, a captar votos à esquerda, para desespero do PS e da extrema-esquerda, e a chegar a PM (primeiro-ministro) enquanto o diabo esfrega um olho. Portugal será então grande…

Um comentário final acerca da patética iniciativa de paz. Escolher Mourinho ou ir buscar Bin Laden às recônditas montanhas do Afeganistão – que diferença faria na promoção do valor que é pouco mais do que um dissonante exercício para aquelas terras?

28.3.05

Páscoa sofismada

Há imagens recorrentes, sempre que a Páscoa amovível se encontra com o calendário. Para além das narrações bíblicas que, pela milionésima vez, passam nos mesmos filmes pascais, assaltam-me a memória as imagens de sacrifícios humanos que retratam os momentos da crucificação de Cristo. Todos os anos, repete-se o ritual. Imagens de devotos fiéis filipinos que se oferecem para serem empalados numa cruz. Replicando o que terá acontecido há mais de dois séculos com Cristo.

São imagens de um sofrimento pungente. Retratam, algumas delas, o pormenor dos pregos cravados nas palmas das mãos dos homens que se imolam perante uma audiência vibrante, que exalta a capacidade de sacrifício. Um cenário arrepiante, a cruz içada depois de ambas as mãos terem sido cravejadas contra a madeira, o sangue que se esvai mascarando uma dor fulminante que os pobres sacrificados querem esconder. Entre nós, o ritual do sacrifício humano não é levado a este exagero. Encenam-se as imagens que vêm da narração bíblica, sem infligir a dor humana nos homens que trajam a imagem viva de Cristo. Por cá ninguém espeta pregos nas palmas das mãos bem abertas à dor que, na dogmática católica, é entrega total ao destino traçado por deus. Simula-se o acto da crucificação, porque o valor da vida humana, o valor de uma vida apartada do sofrimento inconsequente, já foi chão pisado outrora.

E, no entanto, há uma contradição insanável. A dogmática católica persiste na ideia do sacrifício como prova da entrega à entidade divina. Pode-se dizer: já não se defende os excessos que se repetem nas Filipinas. Não se aconselha que se passe do limiar do aceitável, que se monte um espectáculo que arregimenta a fé de muitos à custa do sofrimento de uns poucos que vão ensanguentar a madeira da cruz com as suas mãos pregadas num sofrimento inenarrável.

Mas o culto do sofrimento encerra-se noutras vestes. Os católicos apaziguam os seus fantasmas ao verem o sacrifício sobre-humano que o papa mantém. As imagens do fim-de-semana pascal são sua a versão extremada. Um papa enfraquecido, exangue de forças, que teima em aparecer para gáudio de uma população de crentes que atinge o púlpito do comprazimento ao testemunhar o esforço que não derrota o papa. É um testemunho do sacrifício que os crentes se devem impor. Exibição da entrega a deus, acto de humildade que revela o nada que todos somos perante a grandiosidade de um deus que comanda os nossos destinos.

Medidas as distâncias entre as Filipinas e o Vaticano, não encontro grandes diferenças. Não me interessa saber se são genuínas as imagens de um papa adoentado, mirrado pela dor, numa duvidosa teimosia de aparecer em público nem que seja para transmitir a imagem de um pouco mais do que autómato que permanece numa ligação ténue à vida; não me interessa saber se é o papa que, por sua vontade, quer aparecer, figura de corpo presente, cultivando a retórica enraizada entre os católicos; ou se é um acto bem encenado na hierarquia eclesiástica, com o consentimento papal, para alimentar esta forma de ser que alicerça o comportamento dos crentes. Fica o paralelismo inevitável: à distância de milhares de quilómetros, nas Filipinas como no Vaticano, o sofrimento cimenta uma fé que não se cansa em colocar o devir do indivíduo nas mãos de uma entidade divina. Uma fé feita sofrimento, chave da resignação que dilui a pouco mais do que nada a vontade do indivíduo.

Será o discurso mais visível do catolicismo – este de enfatizar a capacidade de sofrimento como prova de devoção? Pergunto-mo até que ponto a resignação perante o padecimento não é a negação do que somos? Ou nascemos para sofrer no silêncio, apenas porque “essa é a vontade de deus”? Para mim é incompreensível saber que há um deus que se contenta com o sofrimento dos crentes, como se a sua força encontre nesse sofrimento os nutrientes necessários.

25.3.05

Sindicatos retrógrados

A internacional sindicalista desfilou pelas ruas de Bruxelas no último fim-de-semana. Como é inato nos sindicatos, protestando. No caso, contra uma Europa sem “sensibilidade social”, erguendo a voz contra uma directiva que pretendia liberalizar o mercado europeu da prestação de serviços.

Da internacional sindicalista soou o alarme social: o receio que haja concorrência salarial negativa, porque o esbatimento das fronteiras permitiria que os prestadores de serviços dos países de leste se deslocassem à Europa ocidental na posse de uma vantagem comparativa – uma remuneração inferior à que recebem os prestadores de serviços “do lado de cá”. Lamentavelmente, a internacional sindicalista não percebe (ou não lhe convém perceber) que está a vedar a igualdade de oportunidades aos trabalhadores de leste, que querem vir à Europa ocidental em busca de bem-estar. A máscara do oportunismo e da hipocrisia cai com estrépito: afinal os sindicatos não zelam pelos interesses dos mais desfavorecidos. Eis como os que estão de barriga cheia vedam oportunidades aos que ainda vivem à míngua.

Uma curiosidade saltou à vista ao passar os olhos pelo folclore que desfilava em Bruxelas: ver a faixa etária avançada dos manifestantes. São os novos velhos do Restelo, crentes numa Europa que perdeu o seu protagonismo pelos excessos da generosidade do Estado do bem-estar. São a imagem da verdadeira “velha Europa”. Uma Europa que perdeu a sua glória algures no passado apenas cultivado pelos saudosistas do papel grandioso que a Europa então teve. Não foram apenas os anéis da geopolítica que se foram. Também os anéis da competitividade económica. E, no entanto, perante os fulgurantes ventos da modernidade (sob a capa da “abominável” globalização), os sindicatos insistem em viver agarrados às saudades do passado. Como se todo o mundo estivesse errado e eles fossem o oásis da verdade, a representação do modelo correcto que todos os outros deviam replicar.

Não é por acaso que, nestas manifestações, os sindicalistas que por lá pululam alegremente andam próximo da casa dos sessenta. São o testemunho do mais puro imobilismo social que retarda a Europa. Com um efeito contagioso que acentua a gangrena: conseguem influenciar muitas pessoas que exibem a repulsa por qualquer mudança que retire as benesses em que o generoso “Estado social” as educou. Pior ainda, é daquelas coisas populistas que dá votos. Daí o oportunismo político de socialistas e sociais-democratas por essa Europa fora, a quem se juntam os arcaicos franceses de direita, exalando um proteccionismo bafiento.

Do alto do folclore anti-estético da internacional sindicalista, um odor pestilento ao antiquado que é a antítese do tempo em que vivemos. Com mais adversidades pelo caminho: uma voz de protesto contra a exposição dos privilegiados europeus “deste lado” à concorrência com os europeus “do outro lado”. Negando uma concorrência que podia ser salutar – levá-los a padrões de maior competência, sem estarem agarrados à posição de monopólio garantida pela opacidade das fronteiras que os protegem da concorrência. Sem esquecer que os destinatários dos serviços não podem tirar partido da existência de um mercado aberto. É o desrespeito pelos interesses de uma larga maioria – os consumidores desses serviços – que continuam a pagar preços elevados por serviços de menor qualidade. Em nome dos privilégios intocáveis de uma escassa minoria que se acoberta no vozeirão insuportável dos sindicatos retrógrados.

Os sindicatos são uma das excrescências da democracia moderna: como entender que vingue a sua voz em defesa dos interesses de uma escassa minoria, espezinhando os interesses dos consumidores que retratam a imensa, mas silenciosa, maioria? Desde quando a democracia zela pelos interesses das minorias, em detrimento da maioria que aponta em sentido contrário? Na Europa, a internacional sindicalista não é apenas uma manifestação anti-democrática. É um dos factores que a mergulha no atraso que começa a ser irremediável.

24.3.05

Amor em tons de laranja

Mais um capítulo para a saga da intrusão dos partidos nas coisas mundanas da vida, como se estivessem autorizados a opinar, interferir, condicionar todos os aspectos que fazem parte das coisas corriqueiras que só dizem respeito a cada indivíduo. Depois da sapiência totalitária de Joaninha Amaral Dias e do “sexo bom só à esquerda”, hoje a doce história de um jovem laranjinha que pediu a namorada em casamento do alto da tribuna do congresso da organização.

A imaginação é das coisas mais admiráveis do ser humano. Sobretudo quando é usada para nobres fins. No fim-de-semana passado, em pleno congresso da JSD, eis que chegou a hora de um devotado e anónimo militante subir ao púlpito para discursar durante os escassos minutos que lhe foram atribuídos. Para surpresa dos congressistas que, adivinho, já iam bocejando com a sucessão de discursos sem pitada de sal, num contínuo chover no molhado que os fazia suspirar pela chegada da diversão nocturna (bem mais apetecível), eis que aparece o companheiro que decidiu inovar. Em vez de perorar sobre política nacional, ou sobre o estado vegetativo em que o seu partido se encontra depois da débâcle santanista, tirou da cartola um pedido de casamento! A namorada, também delegada ao congresso, terá ruborizado com a ousadia, atrapalhada com a surpresa preparada pelo enternecedor namorado.

O congresso aplaudiu em uníssono. Estou a imaginar algumas meninas, mais dadas a estas coisas do romantismo, a deixar escapar uma lágrima furtiva pelo canto do olho. Imersas nos olhos marejados, perdidas numa salutar inveja da companheira bafejada pela maior sorte que se pode cobiçar. Em cada cabecinha feminina das jovens laranjas, a representação da felizarda que teve a sorte de ser a destinatária do mais insólito pedido de casamento. Usando um adágio popular, “sopa no mel”: para dedicados militantes da JSD, nada melhor do que aliar o útil ao agradável. Será um casamento politizado ao mais alto nível. Daqui vai a sugestão: que o próximo líder do PSD se ofereça como padrinho da boda.

Mas há o lado do pragmatismo. Esse lado cinzento da vida, que despreza as coisas enternecedoras que os mais dados aos afagos da emoção se apostam em mostrar. Esses corações empedernidos terão abanado a cabeça em sinal de desaprovação. São os incuráveis do desamor, ou apenas os que se recusam a misturar aspectos pessoais, a intimidade, com o exercício da vida partidária. E não terão razão? Por maior que seja a dedicação à causa partidária, por maior que seja o empenho na vida interna da organização, por maior que seja a aposta de futuro como garantia de um tacho recompensador que evite a exigência das qualificações, será que tudo isto justifica a mistura de planos – o pessoal e íntimo, com o dogmatismo das lides partidárias? É a banalização do amor.

Há manifestações públicas de amor eivadas de ridículo. Não o são os poemas, por mais lacrimejantes que sejam. Não o são as flores que se oferecem por nada a não ser um apelo vindo de dentro. Não o são as manifestações que raiam a loucura, detonadas por um gesto espontâneo, e que são o percurso necessário para agrilhoar a pessoa amada. Sê-lo-ão estes arroubos de imaginação que misturam as águas. Por mais que me esforce, não vejo cenário menos idílico para a exteriorização do amor do que um congresso partidário. Só um funeral seria capaz de rivalizar no absurdo do tempo, do lugar e do modo escolhidos para a proposta casamenteira.

Os mais emocionados com o momento encantador dirão: o amor não tem tempo nem lugar, pode ser afirmado a todo o tempo, em qualquer lugar, por qualquer forma que a imaginação humana descubra. Poderão dizer que os dois laranjinhas terão começado a namorar por se terem conhecido dentro da organização juvenil a que pertencem. E que fará sentido que o que deu início a uma frutuosa relação seja o lugar ideal para o passo que se segue.

Por este andar, sugere-se que a boda seja realizada já no próximo congresso do partido, em Pombal, dentro de semanas. Paga pelo partido, com a bênção dos barões que lá forem, e com o exclusivo da TVI. Que não poupará esforços para abrilhantar mais um momento que há-de puxar lustro às emoções resguardadas dentro de cada cidadão embrulhado no estertor de uma vida mundana, longe das emoções fabricadas em directo pela televisão do povo. Com o ámen à falta de qualidade que, grotesca, caminha a passos largos.

22.3.05

O amanhã é só hoje

Um desabafo. Um roteiro de vida. Querer impedir que os projectos vão para além do dia que se vive. Para evitar os desencontros que o futuro marca na agenda. Para não viver agarrado a expectativas que depois não se cumprem. Emparelhado às vinte e quatro horas intensas que cada dia oferece como dádiva, escapar do alçapão do porvir, fugir das curvas sinuosas que podem trazem o azedume.

Fáceis são as intenções que agendam o comportamento que ensaia os caminhos a palmilhar para a sanidade interior. Difícil é moldar os hábitos do quotidiano aos trilhos que, sabemo-lo, reencontram teoria e prática. É fácil gizar planos mil, promessas interiores de mudança, acatar os conselhos do subconsciente que, avisados, apontam o caminho a percorrer. Mas quando chega a altura de mudar nem sequer se dá conta que as ferramentas da mudança estão ali, mesmo à frente dos olhos, sem que a vista consiga alcançar os necessários passos para percorrer o trajecto da mudança. Depois, tempo depois, o balanço e a decepção. A sensação revisitada de que o tempo é gasto no vaguear inútil, em incursões que desperdiçam energia e semeiam a dilacerada dor de olhar para trás e saber que tantos dias foram consumidos na avidez do nada.

A máxima expressão de mudança é saber viver um dia atrás do outro. Sem haver ansiedade pelo dia que se segue, sem projectar obra que se inscreva na agenda do amanhã. Querer – e poder – viver um dia de cada vez, como se cada dia fosse o último para saborear. Sabendo que todos os dias são diferentes e que cada dia tem que ser percorrido como se fosse único, singular nas fontes inesgotáveis de prazer. Fazer do tempo uma coisa intemporal, que perdura para além das pedras gastas que dedilham as rugas da velhice, do tempo que não pára e que vai semeando os cabelos brancos da sensatez. Fitar o horizonte e saber conviver com a marcha dos ponteiros, viver por dentro a correria louca dos segundos que se afogueiam uns atrás dos outros, como se o tempo fosse um turbilhão que sorve sem se poder oferecer resistência. Ora com intensidade, ora com a tranquilidade de nada querer fazer senão sentir o pulsar do coração.

Os pensamentos vagueiam com a rédea solta. Diria que é uma sensibilidade que goteja, gritante, do meio de um nada que parece preencher as paredes que me cercam. Uma sensibilidade que se alimenta de um tempo condoído, marcado pelo sofrimento que de quem sofre com a dor de entes queridos. E, no entanto, um sofrimento que exalta um supremo egoísmo. Sofre-se com a dor das pessoas que nos são próximas, exacerbando essa dor. Esquecendo que a dor maior é sentida por quem deu à cama, entregue no seu destino à magia da medicina. Essa é dor maior. Incomparavelmente maior. Ao pé dela, o sofrimento de quem sofre pela desdita dos entes queridos é um acto menor que parece ausentar-se do obrigatório respeito por quem está entregue nos braços da doença. Não será falta de solidariedade. Apenas o respeito maior pela dor incomparável.

A dor que cerca e que se apodera de outras pessoas: um fio do novelo que se desvela, do roteiro de vida que faz do hoje o único património que merece ser trabalhado. A cada dia que passa e que emerge a lição de que foram horas perdidas no etéreo nada, a convicção que a vida se perdeu num dia inócuo. É no querer aproveitar tudo o que a vida tem para oferecer que vem a prescrição que substitui a metafísica insolente: ter a consciência que na voragem dos dias está o segredo de uma vida vivida com toda a intensidade. Saber que é na sucessão vertiginosa de dias que se encontra a plenitude do ser. Em cada dia, sem esperar que venha outro dia para saber que o futuro se cumpriu hoje. Ao contrário: a visão deve alcançar mais curto, inevitavelmente mais curto. A essência do bem-estar é ignorar o que o destino esconde para lá do dia que se há-de dobrar algures quando o sono está para chegar.

O segredo parece bem guardado, e afinal é de uma singeleza desarmante. O projecto de uma vida é o dia que desfila diante dos olhos. Amanhã será tarde demais para cumprir o projecto. Amanhã será tempo perdido na sofreguidão dos dias que se seguem sem parar, e que teimamos em destroçar como se nos fosse dado o luxo de perder o tempo que é sempre tão escasso.

21.3.05

Primavera escondida

Chegou o equinócio da Primavera. Para o desmentir, o tempo pôs-se com um ar carrancudo. Vestiu as farpelas menos vistosas para receber a Primavera. Insiste em mostrar que ruma contra as marés do convencionado. Diria que neste tempo louco fervilha um espírito de contradição acentuado: quando se espera algo dele, oferece-nos o seu contrário.

Em boa verdade, a Primavera instalou-se há largas semanas. É inútil louvar de braços abertos a sua entrada que as folhas do calendário não deixam cair em esquecimento. E se hoje a chuva que se ausentou no Inverno se fez mostrar, se hoje acordámos com um dia cinzento a fazer lembrar o Inverno que não tivemos, é apenas para recordar que o tempo sossegado não se instala em definitivo quando a Primavera se põe no calendário.

Quem seja dado ao simbolismo das datas terá sofrido uma desilusão. Um equinócio primaveril pintado de tons cinzentos, com o peso do chumbo das nuvens carregadas de chuva, é a antítese da celebração da estação das cores alegres, dos odores que salpicam a atmosfera. É uma Primavera escondida que entra. Para quem espera ansiosamente que o calendário dobre as páginas da invernia, o tempo bonançoso dos meses anteriores já deixou no ar o cheiro a Primavera antecipada. A Primavera deu as alvíssaras dentro de uma estação que não era a sua. É o sinal do conturbado tempo em que vivemos, das alterações climáticas que trazem uma sensação de incerteza que baralha os sentidos, confunde as forças da natureza, enlouquece a normalidade climática.

O postal de boas vindas não ilustra a Primavera no seu esplendor. A tristeza não se deve apoderar dos cultores do simbolismo das efemérides. Eles sabem que o calendário tem os seus caprichos, que a própria Primavera é aqui e ali pontuada pela chuva abundante, pelo vento impiedoso, pelo frio convidativo do refúgio junto a um borralho. Sabem que um dia carregado de nuvens não é o prenúncio de uma Primavera de onde o sol se ausente. Nem o será o advento de uma Primavera que desminta as sementes de mudança que a força das convenções colocou em forma de letra, nos livros.

Teremos uma Primavera com temperaturas que convidam a trajar menos roupa, dias mais longos, noites que emagrecem até chegar o equinócio do Verão, quando elas começam de novo a estender-se. A eterna dança dos pássaros, que cantam loas ao tempo que se renova na imagem cintilante do sol que asperge uma terra que viveu na penumbra por tanto tempo. É ainda o festival da natureza, o rejuvenescimento das árvores e das flores, inspirados por uma Primavera aprimorada que traz alento às forças inatas da natureza que se soltam de meses de hibernação.

As mentes poderosas que se enquistam na Primavera generosa resguardam o poder do conhecimento bem junto de si. Também aqui há um mundo carregado de simbolismo. Uma Primavera política, de costumes, de comportamentos. Agora tudo é novo, os bafientos ares que empestavam a atmosfera foram soprados para outras latitudes. A Primavera também rima com a mudança que veio rejuvenescer a vida de todos nós. O povo recuperou a auto-estima – é o que anunciam os cultores do mundo cor-de-rosa, como se fossem sapientes alquimistas que, com uma varinha de condão, medem o pulso à sociedade em que vivem. Até o Benfica – esse clube que tem mais adeptos do que cidadãos nacionais – está bem encaminhado para alcançar um triunfo que durante anos a fio não passou de uma longínqua miragem.

Tudo está bem quando acaba em bem. Faz lembrar o argumento de um filme hollywoodesco, que sempre acaba com os bons na senda do triunfo, relegando os maus para o baú do esquecimento. Nisto, um refulgir da Primavera: o ânimo redobrado, a confiança recuperada, de braço dado com a memória curta. Esta memória que alcança só o que a vista miópica lhe permite ver é o espelho da falta de vocação histórica de todos nós. E um arremedo de como estamos convencidos que o futuro acaba depois de amanhã.

No adiantado dos dias que se esfumam no horizonte, quando os corpos estiverem cansados dos dias quentes do estio, chega o lugar da estação outonal. Ocasião para desmentir expectativas que vieram a rodos com a necessidade do optimismo. Que dará lugar ao realismo, que não demora nos desencontros do tempo. Todas as Primaveras são o lugar efémero das esperanças que renascem com a invernia enterrada.

18.3.05

Eleições autárquicas e referendo à Constituição europeia no mesmo dia?!

Uma das primeiras propostas do neófito governo foi agendar as eleições autárquicas e o referendo à Constituição da União Europeia para o mesmo dia. A iniciativa é louvável, se for encarada pelo prisma da economia de meios. Não se fustiga o povo com sucessivas chamadas às urnas, com o seu quê se cansativo, evitando-se o risco de desmotivar o eleitorado.

Com tantos actos eleitorais em tão pouco tempo, os eleitores podem apenas votar em actos eleitorais seleccionados. A diarreia eleitoral que se avizinha pode trazer efeitos colaterais indesejados: mais uma subida na taxa de abstenção, o que logo obrigará políticos profissionais e seus compagnons de route (os comentadores políticos e os jornalistas que cultivam a intimidade com o meio político) a assobiar para o lado, fazendo de conta que o aumento da abstenção significa nada.

(É curioso constatar o comportamento assimétrico desta elite. Quando a abstenção aumenta, paninhos quentes: ou era o magnífico dia de praia que se pôs, ou o jogo entre o Atouguia da Baleia e o Messinense que capitalizava as atenções de uma nação embrutecida, ou a remota União Europeia que nada diz a um provinciano eleitorado. Quando a abstenção desce umas migalhas, as pitonisas do sistema passeiam a sua excitação cantando vitória à democracia, tecendo loas ao eleitorado inteligente que se manifestou através do voto. É patético! Nas eleições que puseram o Eng. Sócrates no poder, a abstenção diminuiu pouco mais de 1,5 pontos percentuais. Quem ouvisse os comentadores de serviço pensaria que a abstenção passou para metade …)

No que me diz respeito, esta proposta tem um efeito doloroso – como se alguém pisasse em cheio um calo vistoso. Abstencionista militante, ainda não é desta que vou votar em eleições autárquicas (à distância do acto eleitoral, esta é a minha convicção actual). Mas tenho a vontade de me pronunciar no referendo sobre a Constituição da União Europeia. Desgraçadamente, é o meu fado do desalinho. Abstenho-me nas eleições onde a abstenção não é tão elevada, e vou a votos onde as pessoas se alheiam ainda mais das suas “obrigações eleitorais”.

É aqui que a falta de razoabilidade da proposta socrática aparece com nitidez. Como decidir o dilema no dia da eleição? Se for à mesa de voto, automaticamente sou dado como presente em ambos os actos eleitorais. Ora, eu não quero votar nas eleições autárquicas. Estou a adivinhar o funcionário de serviço à mesa de voto a explicar-me que posso votar em branco. Não é isso que quero. O objectivo é abster-me. O que sou impedido de fazer, porque ao querer votar no referendo sou logo contabilizado para efeitos dos votantes nas eleições onde quero que o meu nome surja entre os abstencionistas. E assim a democracia limita a minha liberdade de escolha.

Esta ideia do pacote “dois em um” pode ser meritória para os burocratas a quem interessam mais os fins do que os meios. Enquanto a abstenção não for uma ilegalidade (é punida com multa pesada na Austrália e na Bélgica, por exemplo), ela é tão legítima como o exercício do direito de voto. A menos que, indirectamente, se tomem medidas como esta que deixam entender o contrário. Estas ambiguidades têm a suave sedução de um veneno que se vai ingerindo sem ser possível detectar os seus efeitos maléficos. Só no momento da estocada final é que despertam as luzes para o que andou a acontecer no passado.

Por isso o digo: óptima iniciativa de um governo que mostra, como cartão de visita, que não hesita em beliscar os direitos individuais de maior inviolabilidade. Começam bem! Se estes “engenheiros sociais” acreditam que descobriram a pólvora para diminuir a abstenção com a aglutinação de dois actos eleitorais num só, suspeito que os efeitos vão ser decepcionantes. No meu caso, gostava de votar no referendo europeu. Atendendo à violência sobre o livre arbítrio (imposta pela decisão do governo), apresto-me a estender a abstenção das eleições autárquicas ao referendo.

17.3.05

A feira das vaidades

Das várias vezes que viajei de avião, só numa ocasião fiz ligação em Lisboa como etapa final da viagem até ao Porto. O voo era ao fim da tarde. Um laboratório por excelência para medir a intensidade ensimesmada dos executivos e “pais da nação” que têm o luxo de fazer a viagem entre as duas cidades a bordo de um avião.

Em tempos, uns amigos já me tinham avisado: aquilo é uma feira de vaidades. Pude confirma-lo. Fui dos primeiros a chegar à porta de embarque. E como se deu o caso do avião estar atrasado quase uma hora, a espera prolongada vitaminou as vaidades que, lustrosas, circulavam naquele estreito corredor. Das eminências pardas que desfilavam do alto do seu nariz empinado apenas conhecia uma pessoa – na altura bastonário dos advogados. Por sinal, dos passageiros que aguardavam o voo ele era dos mais discretos.

Os restantes figurões passeavam-se de um lado para o outro, em constantes chamadas telefónicas onde a privacidade era escancarada a quem por ali estivesse. Como se todos tivéssemos interesse em partilhar a conversa, quanto mais não fosse só para confirmar que o fulaninho era uma pessoa importante – muito embora ainda não tenha direito ao estrelato nacional, que se alcança quando a fotografia vem no caderno de negócios do Expresso, ou quando consegue sair da terceira, quarta ou quinta linha dos cargos dentro da estrutura do Estado.

A fauna era dominada por gestores de empresas que foram a Lisboa a uma reunião de negócios e por pessoal que ocupa cargos políticos, talvez deputados. Quanto à última categoria, é uma adivinhação que exercito: porque as caras que se pavoneavam eram desconhecidas, mas valha a verdade que entre os 230 deputados mais de dois terços se encaixa nesse perfil. Em conversa uns com os outros enfatizavam o “sor doutor isto, sor doutor aquilo”. O “sor doutor” soltava-se a toda a hora, o passaporte para receberem do outro lado o mesmo tratamento nobilitante. Um dos mais frenéticos em ostentar a condição de “pessoa importante” – não obstante ser tão anónimo como o indivíduo que minutos antes me vendera um jornal – teve a sua coroa de glória quando a funcionária da TAP que ia fazer o controlo de entrada o reconheceu, tratando-o com deferências sem fim, sempre com o sublinhado no “sor doutor”. Depois foi vê-lo a olhar para a restante plateia, com um ar triunfante, como se aquele fosse o dia mais importante da sua vida.

Esta gente sente uma necessidade fulminante de se socializar no meio reservado a que pertencem. Foi o atraso de quase uma hora que alimentou contactos entre as pessoas “muito importantes” que ali iam desaguando. No fundo, dava para perceber que eles se conheciam destas lides. Já tinham voado juntos em diversas ocasiões. São a marca de água da importância de quem tem acesso ao luxo de não se deslocar por terra entre Lisboa e Porto. Acantonam-se no seu suposto protagonismo (porque, na maior parte das vezes, esse protagonismo não se consegue libertar dos seus quadros mentais, das suas aspirações a algo mais que não chegam a passar de sonhos por realizar).

Reparei que se formam dois grupos: gestores e quadros executivos de empresas, de um lado, pequenos políticos, do outro. Os primeiros são mais jovens e desconfiam dos segundos. Também são mais discretos, ainda que exibam um insuportável ar de superioridade que deve ter origem na abastança dos seus ordenados. Os segundos são mais folclóricos, com idade mais avançada, bazófia a rodos. Sente-se neles a necessidade de exibir o garbo das funções que ocupam. Alguns conseguiram libertar-se da concelhia partidária que frequentaram anos a fio, mergulhando no tirocínio parlamentar. É o apogeu de uma carreira de serviços partidários, o culminar de um caminho palmilhado que os levou a pouco mais do que o anonimato geral. O ar que respiram em Lisboa empertiga-os, como se fosse a caução para libertar os tiques parolos que lhes são inatos.

Um voo atrasado é sempre um azar. Nestas circunstâncias, azar redobrado. Um postal provinciano, retrato dos estigmas do país profundo que se quer domesticar com a inspiração dos ares marítimos que vagueiam no litoral. Saloiice suprema, a necessidade de exibir troféus de caça, mostrando a superioridade aos demais, mostrando que outrora já foram inferiores, como os demais que ali estavam, mas agora foram elevados a uma dimensão suprema.

Um bálsamo para o ego de pessoas pequeninas.

16.3.05

O voto mais universal: o direito de voto das crianças através dos pais?

Lisboa, congresso internacional sobre os direitos das crianças. Para relembrar que as crianças são preteridas na definição das políticas públicas. Elas apenas são lembradas quando se comemora o respectivo dia internacional. Para além da efeméride, que parece aquietar as consciências dos adultos ao menos uma vez no ano, as crianças são notícia pelas piores razões: os maus-tratos, a violência física e psíquica que sobre elas se comete, a violência surda vinda dos brilhantes “pedagogos” que não hesitam em fazer das crianças as cobaias de experiências educativas de alcance duvidoso.

Ainda que se dê a mão à palmatória, anuindo que as crianças contam pouco na definição das políticas públicas, um aspecto mais importante compensa esse fenómeno: cada criança está protegida pela sua família (excluem-se os casos mais sensíveis, onde nem sequer a envolvente familiar consegue garantir essa protecção à criança). Como pais temos à nossa disposição escolhas que acautelam a melhor protecção dos nossos filhos. Dois exemplos: podemos suspeitar da qualidade do ensino das escolas públicas, enveredando pelo ensino particular; podemos não dar crédito ao sistema nacional de saúde, e contratamos um seguro de saúde que recolha a nossa confiança.

Podia enumerar exemplos até à exaustão. Para não me alongar, apenas mais um caso onde os interesses das crianças são acautelados pela família e não pelo Estado: as actividades extra-curriculares, como complemento da sua formação como pessoas. Eu posso decidir inscrever a minha filha em aulas de piano, ou de ballet, ou filiá-la nos escuteiros. São sempre opções pessoais, nas quais deve primar a não interferência dos políticos. Dito isto, não vejo razões para que se dramatize o discurso da desprotecção das crianças. Porque os maiores interessados em que as crianças tenham um crescimento sadio, amparado, são os pais e restante família. Este é um domínio onde a substituição da família pelo Estado seria lesiva dos interesses das crianças.

Tudo isto a propósito de uma ideia veiculada por um dos especialistas que discursou no congresso. Esse especialista – creio que sueco – interrogou-se: porque não conferir o direito de voto às crianças? Convidado a elaborar sobre a proposta, o expert concedeu que não seria viável prever um direito de voto imediato e directo. As crianças votariam através dos seus pais. Na sua opinião, esta seria a solução para captar a atenção dos governantes acerca da importância das crianças na formulação das políticas públicas.

Esta proposta representa um abalo telúrico nas ideias preconcebidas que norteiam a nossa conduta. Ela sugere alguns comentários. Primeiro, é duvidoso que este seja o caminho adequado para captar a atenção dos candidatos e dos governantes para os interesses das crianças. Quando muito, seria mais um elemento a levar em consideração, ampliando o leque de critérios que guiam a acção política. Mas um critério sem grande peso relativo.

Segundo, a proposta esconde dificuldades operacionais. Quem teria o direito de voto: o pai ou a mãe? Este dilema seria visível nos casos de agregados compostos por um só filho – e mais ainda em progenitores com diferentes escolhas partidárias. E o que dizer no caso de famílias separadas pelo divórcio: quem exerce o direito de voto neste caso? A ideia tem cambiantes que trazem suspeitas sobre a sua justiça: imagine-se o caso de um jovem de dezasseis anos, com os olhos bem abertos para o que se passa no mundo, e que sabe que um dos seus progenitores vota por ele de uma forma diferente daquela que seria a sua opção.

Terceiro comentário: aceita-se que seja necessário definir limiares de idade para conferir o direito de voto. Mas estes limites escondem grande subjectividade. Quem não conhece adultos a quem falta maturidade suficiente para exercer o direito de voto? E, do lado contrário, há menores de dezoito anos com maturidade suficiente para exercer o direito de voto.

Em quarto lugar, adivinho outra consequência perversa: militantes dos partidos mentalizados para aumentarem a descendência, pois cada filho contabiliza mais um voto nas respectivas fileiras. Seria bom para combater a crise de natalidade que traz tantas preocupações demográficas; e esta proposta seria homofóbica, ao marginalizar quem não tem a possibilidade natural de procriar. Eis como uma proposta vanguardista estaria condenada ao fracasso pela rota de colisão com outros interesses vanguardistas – os que defendem os direitos dos homossexuais.

15.3.05

Insónia

É a sublevação do sono. Um combate perdido, por mais que a mente se esforce em recuperar o sono. O corpo ressente-se com os ponteiros que prosseguem a sua marcha rumo ao final da noite. Hora atrás de hora, e o sono teima em estar ausente. O corpo deambula pela casa, na ânsia que o cansaço vença a insónia que fala mais alto. Uma ida à janela, para sentir o ar fresco da noite, a televisão ligada como se estivesse em linha de espera para instalar o sono que anda arredio. A paciência vai-se esgotando, após todos os exercícios inventados para afastar o fantasma da insonolência.

É uma luta desigual. Como se fosse um antagonismo enfatizado à medida que se renovam os esforços para diluir a insónia. Quanto mais é combatida, mais ela se apresenta, com nitidez, no horizonte das próximas horas. Insónia que vem acompanhada (ou é provocada) pela sufocação de uma gripe que veda as vias nasais. A asfixia que surge, latente, acentua ainda mais a indisposição que consome o corpo, que traz a cabeça latejante numa cefaleia que vai crescendo à medida que a insónia não é derrotada.

Com os olhos bem arregalados, muitas são as coisas que passam pela cabeça, muitos os pensamentos que desfilam à espera que o sono vença a tormentosa vigília. A mente desdobra-se em exercícios mil, tentando desligar-se da terra, como se fosse o segredo para varrer para o canto a insónia persistente. Malabarismos mentais, em desespero de causa, numa procura pelo bem-estar ausente nesta noite. Entretanto, as horas vão passando. Quase podia escutar o ritmo cadenciado dos ponteiros do relógio, contando cada segundo como o sinal do aborrecimento que se apoderou de mim. A espaços fico na dúvida se caí no sono por uns breves momentos, ou se apenas sonhei que tinha conseguido adormecer numa estocada final à insónia inimiga. Mas logo as dúvidas se dissipam. De novo acordado, invadido pelos tentáculos gelatinosos da insónia que promete adiar o sono para a noite seguinte.

Espreito o céu pela janela, o céu voltado para nascente. A claridade vai irrompendo, de início com timidez, mas depois com todo o seu fausto. É o chamamento para a derrota final. A insónia saíra vencedora, numa noite passada quase em branco. O corpo sente-se manietado, preso de movimentos, um peso grotesco a pairar sobre a cabeça que lateja sem parar, os olhos semi-cerrados ostentando umas olheiras bem marcadas. O discernimento escasseia, a concentração estacionou algures. Fica a promessa de uma dia sofrido, um longo de dia em que cada minuto se parece eternizar para além do razoável. Um dia perdido. Um mau dia para um trabalhador aparecer garboso da produtividade habitual.

A luta feérica que se travou é das manifestações mais desagradáveis de indisposição. Não consigo descobrir coisas piores do que uma insónia que se estende noite dentro, consumindo as energias que deviam ser retemperadas no sono que ela impede de vencer. É a imagem acabada da impotência de quem tenta vergar a insónia, sem o conseguir fazer. Como se a insónia fosse senhora absoluta da sua vontade. Só se deixa dobrar quando enfraquece espontaneamente, não por acção de quem a tenta derrotar.

14.3.05

Delírios febris

Já há mais de quinze anos que não tinha a desagradável visita da febre. A distância temporal fez redescobrir as sensações, num “déja vu” perdido no tempo remoto. Sensações estranhas, quando a febre se apodera do corpo e da mente. Na subida vertiginosa do mercúrio, as coisas perdem a sua nitidez. Já não basta o corpo ser tomado de assalto por uma preguiça indomável, o pior chega com as horas de sono – que se estendem por horas intermináveis e entediantes.

As tremuras febris parecem coalhar a perspicácia dos sentidos. Sobretudo no sono, tais as imagens extravagantes que desfilam no limiar do subconsciente. Esta noite sonhei que fazia de cicerone turístico junto da minha família, dando a conhecer o Funchal ao pormenor. Tive este sonho uma vez, acordei, voltei a mergulhar nas ondas do sono e a deixar-me invadir pelas sensações oníricas que fizeram de mim um profundo conhecedor do Funchal. No roteiro andado pela cidade, até as explicações históricas eram dadas com abundância de detalhe. São as armadilhas da diatribe febril. Para quem nunca foi ao Funchal, ter um sonho deste calibre é um mistério insondável.

Os delírios da febre trouxeram outros sonhos bizarros. Sonhei que pela primeira vez os concidadãos lusos puderam ver um primeiro-ministro trajando calções, no final de uma “extenuante” corrida de três ou quatro quilómetros, que tem servido para apresentar a escondida faceta de desportista de certos actores políticos – ao menos uma vez por ano. Sonhei que, ao cabo dos cansativos quilómetros de uma corrida que oscilou entre a passada lenta e muito lenta, o recém-empossado primeiro-ministro, lavado em suor – ou seria operação de cosmética para provar o esforço gasto? – soltou as idiossincráticas afirmações banais. Será que os assessores que lhe construíram a imagem não tiveram tempo de mudar o chip, chamando-o a atenção de que a campanha eleitoral já ficou para trás?

Sonhei que o país cor-de-rosa (politicamente falando) saiu às ruas de Lisboa para mostrar a verve desportista. Não foi só o homem do momento, com nome de filósofo. Foi o “mais alto magistrado da nação”, que a passo de caracol lá fez, a custo, a sua corrida anual, demorando uma eternidade para percorrer o curto trajecto do percurso. E um dos putativos candidatos rosa à câmara municipal de Lisboa, emérito professor de filosofia, que, sabe-se lá como, encontrou a chave do coração de uma das “beldades” oficiais da nação. Este terá chegado à meta antes do chefe. Perante as câmaras da televisão, à cata destes néons de deslumbramento rosa, confessou arrependimento por ter rompido a hierarquia. Era a imagem da frescura física, ostentando uns óculos escuros que encobriam a vista não se sabe bem que de luminosidade solar, ele que estava numa tenda a coberto do sol assassino para a vista. Com a bênção do patriarca partidário – um coelho – os sonhos bizarros não paravam de acossar o sono.

Para compor o ramalhete, à primeira-dama estava destinado o brilharete final neste encantador rosário. Como chegou à meta antes do marido, foi abordada pelos jornalistas, tão empenhados em fazer o boneco com o “socialite” político da mini-maratona. A dona Ritta encontrou a explicação, numa tirada humorística só comparável ao refinado humor do grande humorista Vitorino. Disse que o presidente é um cavalheiro à boa maneira inglesa. Como estava acompanhado por Rosa Mota – outro expoente da constelação de rosas que por lá desfilou – e porque a antiga campeã não estava em forma, o senhor presidente achou por bem sacrificar a sua prova para não fazer a descortesia de desacompanhar a campeã.

É o país que se reencontra consigo. Agora sim, acabou o discurso da tanga. Anunciam-se as facilidades. É só ver o povinho – entre emplastros que se acotovelam atrás das câmaras, procurando uma nesga da imagem, e os boys e girls que se põem em bicos de pés à cata do próximo tacho –, sorriso de contentamento rasgado de orelha a orelha, jactante com as manifestações de boa disposição e de humor contagiante dos senhores que se seguem ao leme da nau. Vêm aí tempos de bonança, um povo que volta a erguer a cabeça. O desígnio nacional estava inscrito nas estrelas: é com estas rameiras que se pavoneiam como varinas em fracas peças de teatro revisteiro que o povo lamuriento e medíocre se identifica.

Não, não era pesadelo induzido pela febre. Era o retrato de um pachorrento domingo nas vidas corriqueiras de todos nós.

11.3.05


A Casa da Música

Custou, mas foi. Depois de tanta expectativa, a obra-prima descobre-se aos olhos de quem a pagou com o sacrifício dos seus impostos (descontando a parte - quase metade - que veio dos fundos europeus). A obra vem “apenas” com quatro anos de atraso. A bem da verdade, dir-se-ia que o evento “Porto 2001” é que foi extemporâneo: apareceu com quatro anos de antecedência…

Também o descarrilamento orçamental é coisa de somenos importância. Por a obra ser tão majestosa, perdoa-se que os custos finais quase tenham triplicado. Nada a que não estejamos habituados. É o dinheiro de todos nós, da imensa mole anónima que paga impostos desbaratados por políticos incompetentes e irresponsáveis. É um pormenor sem importância: porque continuamos a depositar a confiança nesta gente que, obra após obra, revela perícia em exaurir o erário público. Não temos legitimidade para protestar, porque os legitimamos no poder.

Não são as sinuosidades do processo político que me interessam. Apenas opinar sobre a Casa da Música, descendo ao estatuto de leigo arquitectónico. Durante anos a fio, a obra estava escondida e a coisa tardava em revelar-se. Os tapumes encobriam o buraco a céu aberto, eram a cortina de fumo para os sucessivos atrasos que iam adiando o nascimento de uma coisa que já tinha entrado para os anais dos elefantes brancos das obras públicas. A única mira eram as maquetas do projecto. Agora que a obra vê a luz do dia, já é possível discernir o seu impacto real.

Confesso que a apreciação da Casa da Música está à partida enviesada. Admito um preconceito que me influencia o juízo: as obras faraónicas são dispêndios inúteis, mais quando se lamenta as lacunas sociais que nos distanciam da média europeia. Longe dos parceiros europeus, em áreas essenciais às camadas mais desfavorecidas, mas não hesitamos em caucionar obras megalómanas que apenas enchem a vista de uns poucos, sem utilidade para os mais pobres. É um tema que dá pano para mangas: a “obrigação” do Estado subsidiar generosamente a cultura, quando afinal a cultura apenas aproveita a uma reduzida elite que está a léguas dos estratos sociais carenciados.

Não gosto da Casa da Música. Seria adequado chamar-lhe “caixote da música”, tal a obtusidade das formas, a desproporcionalidade do objecto que contrasta com a harmonia da zona. Ao observar a Casa da Música, vejo um corpo estranho que rompe essa harmonia. Concedo que possa ser a falta de habituação a um corpo que, para todos os efeitos, é um corpo estranho. Os olhos não estão habituados a vê-lo num local que sempre preencheu o imaginário, como local de referência da cidade. Admito que daqui a umas décadas, mais para as gerações que hão-de vir, a harmonia a que me refiro irá contemplar a Casa da Música.

Não é apenas a desproporção da Casa da Música, que com o seu gigantismo ofusca o equilíbrio da Rotunda da Boavista (o que é visível sobretudo para quem vem da avenida para a rotunda, mas também para quem espreita do lado contrário, entre as árvores que preenchem a rotunda). São as formas agrestes, as arestas que se quebram em cascatas abruptas, as linhas desconchavadas que sublinham um edifício desequilibrado. Ainda bem que o projectista teve o discernimento de incorporar avantajadas vidraças que entrecortam as paredes de betão. Contrabalançam a frieza de um cubículo disforme, impedindo que as arestas que adejam os vértices sejam uma ferida aberta aos olhos de quem por ali passa.

A corporação da cultura há aplaudir com entusiasmo a Casa da Música. Interessa mais o marco que ela representa do que os desvios arquitectónicos semeados num local emblemático da cidade. Já vamos estando acostumados: o cubo na Ribeira, o inenarrável edifício transparente que separa a frente marítima do parque da cidade e, descendo até a Lisboa, essa obra que tece loas ao cavaquistão - o Centro Cultural de Belém -, uma intromissão abusiva entre a Torre de Belém e o Convento dos Jerónimos. Sinal de que há quem queria deixar a marca da sua gesta antes do tempo, como se fossem visionários para além do juízo dos seus pares, também eles mortais. Posted by Hello

10.3.05


A alvorada

Começam os dias a crescer com o andamento do calendário. As manhãs aparecem mais cedo. Antecipam-se aos ponteiros do relógio. O que há semanas ainda se fazia na escuridão de uma noite persistente, é agora testemunha da claridade que varre a noite dos céus.

A alvorada madrugadora é um postal da Primavera que não se demora. Sinal de que as escassas horas de luz natural, ilustração do Inverno, têm os dias contados. Os primeiros raios de sol, ainda escondidos atrás da linha do horizonte, fazem-se notar, tímidos, nas centelhas que lançam no céu que se clareia. Na penumbra das coisas, a luz mágica descobre-se entre a noite que cede passagem ao dia. As nuvens finas que se entreabrem aparecem tingidas pelos tons alaranjados dos raios do sol que se anuncia com todo o seu esplendor, para breve.

É um momento em que tudo fica em suspenso. Parado, a contemplar o quadro da alvorada, esqueço-me que os ponteiros do relógio vão na sua marcha implacável. E, contudo, esta alvorada tingida de um alaranjado encantador parece intemporal. Apetece retratá-la, encaixilhá-la como um daqueles momentos memoráveis que, de tanta singeleza, alimentam uma alma com uma torrente de bem-estar sem explicação.

A alvorada de Março é uma caixa de ressonância dos dias gentis que estão para chegar. Uma lavagem de alma. Os dias sentem-se mais cedo, e as sombras da noite ficam mergulhadas na ignorância dos olhos cerrados no sono nocturno. Andando pelas ruas da cidade, estes minutos em que a luz do dia se vai impondo à escuridão nocturna trazem um cenário ambíguo, com a penumbra das coisas misturada com a luz natural que do alto vem invadir todos os recantos da terra.

Fito o horizonte e distingo uma linha divisória: do céu, a luz respingada de longe pelo sol que soergue atrás da linha do horizonte; abaixo, as árvores ainda desnudadas mergulhadas na penumbra, ainda não tocadas pela luz que vai sendo irradiada pelo sol que vem renovar o dia. Os lampiões permanecem acesos, teimando em prolongar a noite que hesita em abandonar o seu posto, que resiste em dar lugar ao dia que a vem esconder até que o testemunho seja passado outra vez.

Há um encantamento por explicar, que mil palavras são incapazes de retratar. São uns instantes fugazes: entretanto o sol perde a timidez e descobre-se, empurrando a linha do horizonte para baixo. Então o deslumbramento da escassa nitidez, o jogo de espelhos com luminosidades contrastantes, cede lugar ao luzente sol que vem polir o dia com um brilho acalorado. A genealogia dos encantos tem aqui o seu ponto final. O dia passa a correr, rotineiro, como rotineira é a imagem de multidões que desaguam nas ruas nos hábitos maquinais do quotidiano.

Virão dias em que a alvorada terá outro encantamento. Dias com a Primavera no seu pino, com as flores que despontam, as folhas que rebentam nas pontas dos ramos das árvores, os odores da polinização que se soltam das flores acabadas de irromper. Estas cores e cheiros vão-se misturar ao encantamento da alvorada, para tecer um quadro repleto de uma beleza singular. Mas a alvorada dos dias que correm tem a magia dos segredos que ela desvela. É pela ruptura com os meses sombrios da invernia que a alvorada dos inícios de Março se abraça a esta beleza ímpar. É preciso esperar que o calendário volte a dobrar todas as páginas, completando o ciclo, para voltar a sentir a recompensa de reter na memória as imagens desta alvorada piedosa.
Posted by Hello

9.3.05

Regresso à infância, ou o prazer do lazer

Sequência do texto de ontem: onde mais o fascínio da inovação tecnologia se faz sentir é nos jogos. Aderi à moda das consolas de vídeo. Senti a necessidade de refrescar a cabeça com coisas mundanas. Foi um súbito apelo pela irresponsabilidade dos dias que passam na indolência do nada. Romper com o ritmo vertiginoso dos últimos anos, que teve o apogeu nos últimos seis meses. Parei para pensar: tens direito a uma pausa.

Uma página dobrada e novos desafios pela frente, mandam os costumes da vida frenética em que somos mergulhados. Os projectos sucedem-se, uns atrás dos outros, como se fôssemos obrigados a mostrar serviço. Temos que submergir no afã dos afazeres profissionais: é o preço a pagar pelo dom de pertencermos a uma comunidade. Somos agraciados com a dádiva de pertencer a uma comunidade, pois de contrário ficávamos votados ao ostracismo. Para não sermos remetidos ao reduto do isolamento penoso, a sociedade acolhe-nos no seu seio. O agradecimento tem o preço dos serviços que prestamos à sociedade. O nosso trabalho, que contribui para o progresso geral e para encher a carteira com os parcos recursos que vão alimentando o bem-estar pessoal.

Quando damos conta, sentimo-nos escravizados pelo trabalho. Lembro-me, no semestre passado, de ter dias que começavam às cinco e meia e terminavam depois da meia-noite (os que me conhecem podem advertir: ok, começavam tão cedo porque tens a loucura de fazer exercício físico a uma hora em que nem as galinhas estão acordadas…). A jornada durava dezanove horas! Não me orgulho da façanha. Achava preocupante ter prolongar por tanto tempo um dia de trabalho. Chegava ao final do dia absorto, exausto, a sensação de que pouco aproveitava dessas longas jornadas. Em rigor: eram dias necessariamente produtivos em termos de trabalho, mas vácuos em termos pessoais. Quando por fim repousava a cabeça no travesseiro, a percepção de que um dia imerso em tantos afazeres não era recompensador no plano pessoal.

O mundo moderno é feito de modas (aliás, moderno ou não, é sempre dominado por modismos). Hoje está na moda sermos dominados pela velocidade alucinante das exigências profissionais. Ao ouvir pessoas do nosso entorno a falar, invariavelmente relatos ao mesmo tempo de orgulho e de pesar por “não se ter tempo para nada”. Parece um concurso: quem sai mais tarde do trabalho, quem passa mais horas por dia, por semana, encerrado no recato de um nada bucólico cubículo cercado por quatro paredes e um tecto asfixiante. Quem sai da linha é olhado com suspeição. É um desalinhado que se solta do contrato com a comunidade. Quem não se gaba de trabalhar horas a fio dia após dia, vê-lhe pespegado o rótulo da preguiça inconsequente.

É este o estatuto que quero. Dar mais tempo ao lazer. Libertar-me das amarras do trabalho, sem negar o mínimo que devo cumprir. É certo que o trabalho que tenho me consagra flexibilidade para ser senhor do meu tempo. Posso adiar leituras que listei, remeter para mais tarde a escrita de artigos científicos, deixar para um dia destes a participação em congressos que enriquecem o curriculum. Deixar-para-mais-tarde. Fazer um parêntesis para o reencontro com um tempo que seja só meu. Oxigenar as ideias, desviar a atenção para outras facetas. Deixar-me cair num passado onde se imiscui o futuro: regressar à infância dos jogos, agora pontuada pelas maravilhas da tecnologia que estendem a faceta lúdica, outrora apenas ao alcance de crianças e adolescentes, para a idade adulta.

Não é pretexto. Apenas a convicção de que em certo momento se impõe uma pausa, ou somente abrandar o ritmo. Também aqui não é a quantidade que importa. Desconfio daqueles que se gabam, a toda a hora, de serem escravos do trabalho. Aqueles que contabilizam nas horas passadas atrás de uma secretaria o seu barómetro de produtividade. O contributo qualitativo pode ser maior em alguém que consagra metade do tempo ao trabalho. No tempo que resta, esse alguém pode ser dono de si mesmo, encontrar escapes que libertam a cabeça para escolhas mais avisadas. É o lazer que é bom conselheiro do trabalho e das suas exigências. O lazer que marca um reencontro de cada um de nós consigo mesmo. Por mais que o trabalho seja recompensador, por mais que gostemos das funções que exercemos, é no lazer que encontramos a verdadeira essência do eu que habita dentro de nós.

Não é o elogio da preguiça. É o caminho para não estar encarcerado no mundo do trabalho, como se uma necessária osmose entre o trabalho e o eu nos fundisse num só, indistinguível um do outro.

8.3.05

Go technologics

Nota prévia sobre o título deste texto: ponderei algum tempo sobre o título. Surgiram várias hipóteses. Todas formavam uma frase extensa. Problemas típicos de uma língua tão complicada como a portuguesa. De repente soltou-se esta expressão em inglês: “go technologics”. A ideia é sublinhar o fascínio pela tecnologia, pelos novos domínios que estão em constante mutação, terreno para um mercado em vertiginosa mutação. De repente, o que é hoje grito da moda está amanhã nos limiares da sucata tecnológica. A expressão em inglês que encima o texto explica a atracção pelos avanços da tecnologia, a tentação que se descerra debaixo dos meus olhos.

São inúmeros os domínios. Os computadores, com a parafernália de acessórios que os tornam mais potentes e aptos a aplicações há anos impensáveis. O aspecto lúdico dos jogos, com gráficos próximos da realidade, viciantes até ao tutano. O gosto pela meteorologia e pelas estações meteorológicas. O grito da moda do GPS, da navegação automóvel que coloca o automobilista no limiar de outras fronteiras, como se fosse o comandante de um avião, orientado por uma voz que lhe indica as estradas e percorrer para atingir o destino traçado. Houvesse mais abundância material e adivinho-me mergulhado em aparelhos mil, entretido com as potencialidades que oferecem.

Acredito que somos de gostos passageiros. Que as preferências pessoais, que vão além das obrigações da profissão, oscilam com o tempo que passa. Hoje é isto, amanhã será um outro hobby. O meu encantamento pela tecnologia é coisa recente. A informática é uma ferramenta imprescindível para o dia-a-dia de um homem moderno. Quem consegue passar sem correio electrónico, sem consultar as páginas da Internet da sua preferência? Quando viajo pelo estrangeiro, e quando é impossível ligar o portátil à rede (companheiro fiel e necessário nas deslocações), tenho que fazer uma visita diária a um “Internet café”. Para verificar as mensagens que chegaram às contas de e-mail. Para me actualizar com as informações que todos os dias busco nos sites elencados na lista de preferências.

Há tempos, numa deslocação à Polónia, dei comigo encerrado numa estância turística durante três dias. Num local ermo, a surpresa seria encontrar um sítio onde pudesse cumprir a rotina diária. Senti que me faltava qualquer coisa. Senti que o ar que respirava era rarefeito, por ausência dos actos rotineiros que levam às visitas habituais pelo mundo da Internet, pela consulta das mensagens de correio electrónico. Detectei algo de preocupante nesta dependência. Porque de uma dependência se trata, no fim de contas. Prende a uma rotina diária que me leva à desorientação, caso não entre em contacto com o mundo ligado em rede.

A aproximação às maravilhas da tecnologia é coisa recente. Do passado vem um desprendimento do mundo tecnológico. Não sei se foi a voragem da inovação tecnológica, centrada no sector da informática, a responsável pelo encontro marcado com a tecnologia. Sei que os tempos da escola secundária e de estudante universitário foram tempos de insensibilidade tecnológica. A veia pelas ciências sociais fez-se então notar. A única excepção era o fascínio que a meteorologia exercia. Sempre gostei de compreender os fenómenos meteorológicos. De tal forma que às vezes me interrogo se a geofísica não será a minha vocação escondida (ou frustrada). Ou a veterinária, pelo enorme gosto por animais. Áreas bem distantes das ciências sociais pelas quais enveredei, nos estudos e depois na profissão.

Hoje sou consumidor ávido de revistas que são o mostruário das inovações da tecnologia. Interessa-me estar a par do que está na berra, do que se anuncia como o último grito da moda. E pergunto-me: sintoma de desumanização? O gosto pela maquinaria, pelas potencialidades da informática, expõe uma insensibilidade pelas ciências que enaltecem o ser humano (a literatura, a filosofia, a economia, a política, a sociologia, as artes plásticas e cénicas – outrora mais visitadas)?

7.3.05

Futebol e política: mais paralelismos

Já temos governo indigitado. O que deu mais brado foi a colocação de Freitas do Amaral no ministério dos negócios estrangeiros. Esta metamorfose política tem motivado manifestações de repúdio entre a direita. Esta direita esquece-se que nada disse em relação a outras personagens que fizeram trajectos inversos, da esquerda para a direita (José Barroso, Pacheco Pereira, Zita Seabra). A indignação tem falado alto. Verbera-se o trajecto de Freitas do Amaral, como se estivesse vedado o direito de mudar de posição ao longo da vida. Tudo isto soa a manobras tácticas, plenas de oportunismo, engendradas por Freitas do Amaral? Sim. Porém perde-se a razão quando se aponta o dedo a Freitas do Amaral pela sua deriva esquerdista. É tão legítimo o desvio da esquerda para a direita, como o é o percurso inverso.

No meio do desnorte, o CDS-PP cavou mais fundo a sua cova. Anunciaram que vão retirar o retrato de Freitas do Amaral da sede do partido, remetendo-o à sede do PS. A isto chama-se mau perder. É uma criancice, ao jeito dos meninos birrentos sempre a fazer beicinho quando as coisas não lhes correm a preceito. Mau augúrio para um partido que tem o capital positivo de ter lutado contra as derivas totalitaristas dos comunistas após o 25 de Abril. Para um partido que sempre denunciou as purgas branqueadas pelo PCP, esta manobra de lavagem do passado tresanda ao mais hediondo estalinismo. O passado, goste-se ou não, está feito e bem marcado na memória do tempo. Renegá-lo, ou manobrá-lo, é digno de quem não é tolerante consigo mesmo – quanto mais com os demais.

O súbito protagonismo de Freitas do Amaral fertiliza mais afinidades entre o futebol e a política. Uma espécie de futebolização da política. Não é verdade que os profissionais da bola mudam de camisola de ano para ano? Não é verdade que, com o advento do profissionalismo, se diluiu o “amor à camisola”, o fervor clubista que associa os jogadores a um certo emblema? Porque não aceitar o mesmo princípio na política? Aqui há obrigações de decoro que impedem a oscilação de partido em partido. Quem anda a saltar de partido em partido perde credibilidade junto do eleitorado. Não se percebe porquê. Os partidos deviam ser espaços abertos à metamorfose pessoal. Devia existir um mercado aberto às transferências de políticos entre diferentes partidos. O risco é óbvio: uma aura de oportunismo barato andaria de braço dado com os políticos mais saltimbancos. No fundo, vinha ao encontro da perda de âncoras ideológicas que hoje caracteriza os partidos. Seriam partidos de pessoas, em vez de partidos acobertados em ideologias que não praticam.

Ao tecer este paralelismo entre futebol e política há outra ideia que se perfila: a transnacionalidade dos cargos políticos. Por coincidência, na edição de ontem do Diário de Notícias, Vicente Jorge Silva e Miguel Esteves Cardoso (em separado) comparavam Sócrates a Mourinho. Ora Mourinho, o paradigma do sucesso, o grande orgulho pátrio pelas conquistas além fronteiras, está na senda do sucesso fora de Portugal. Como alguns estrangeiros – treinadores e jogadores – têm vencido no futebol português. Para gáudio dos adeptos das equipas que erguem os troféus. Pouco importa se as vitórias são conseguidas com onze nacionais, com onze estrangeiros, ou com um misto de nativos e estrangeiros. O que conta é arrecadar a vitória, desfeitear os adversários. Foram hábitos que se enraizaram nos adeptos da bola. Se isso contribuía para ser mais forte do que os adversários, era recebido de braços abertos.

Porque não estender este princípio à política? Porque não abrir o mercado político – partidário e do exercício de cargos de responsabilidade – a estrangeiros? Havendo a garantia de que o resultado final – o exercício da governação – se traduzia em acrescida qualidade, qual o problema em ter um primeiro-ministro de outro país? A ideia pode soar a bizarro. Mas o paradoxal é conviver com ela no mundo do futebol, que diz muito mais do que a política a tanta gente, e depois ver essas mesmas pessoas incomodadas em exportar a ideia para o plano da política.

Há um precedente com bons resultados: a TAP. Rompendo com hábitos instalados, há anos foi nomeada uma administração presidida por Fernando Pinto, um brasileiro de gema (que trouxe consigo uma equipa de brasileiros). Depois de anos a fio a dar prejuízos abundantes, a TAP conseguiu apresentar lucros pelo segundo ano seguido. Dizem os entendidos que é o resultado da gestão da equipa de brasileiros. Quem sabe se não será o começo para mais pessoas de outras nacionalidades virem gerir os nossos destinos, velando pelo nosso bem-estar? Quem sabe se esse seria o caminho para baixar os índices de abstenção, cativando a atenção dos eleitores através do incremento qualitativo dos candidatos?

4.3.05

Liberdade ou escravidão mental?

Ainda da última ida a Inglaterra. À boa maneira local, uma cerimónia de titulação universitária impregnada de solenidade. Togas vistosas trajadas por professores que, compassadamente, se encaminham para o palco onde vão agraciar os estudantes. Um cerimonial que se assemelha a uma entronização. Não é por acaso que as pessoas reunidas naquele teatro constituem o que, na gíria da ocasião, se chama “congregação”. Os discursos de importantes professores surgem revestidos da mesma solenidade. Num discurso, um venerando professor saltou para o púlpito e discorreu sobre os males que atormentam a sociedade contemporânea. Retive esta passagem:

Não é a liberdade que importa, mas sim o exercício da liberdade. Quando dizemos que conquistámos a liberdade, voltamos a abdicar dela”.

Ao início pareceu-me um exercício de retórica, embrulhado num estranho labirinto que negava a existência da liberdade. Ela seria uma miragem, inalcançável ao ser humano. Para o orador, quem se diz livre deixa de o ser a partir do momento em que faz essa afirmação. Perplexo, interroguei-me: será que as mentes espontaneamente livres são aquelas que passam ao lado dos desejos de liberdade? Os verdadeiramente livres serão aqueles que se resignam aos desígnios superiores? É quem não se preocupa com a liberdade que não esbarra no espartilho que é sentir-se agrilhoado por outrem – por uma entidade divina, pelas autoridades, por um herói deificado?

O resto da oratória decifrou o enigma. A prédica depreciou o passado de liberdade individual inscrito no património genético do país que viu nascer o orador. É algo de imanente à natureza humana: estamos descontentes com o que temos à nossa volta, com o terreno que pisamos. O raciocínio tecido pelo orador desvalorizou o valor das liberdades das democracias modernas. Num ponto concordo com ele: enfatizou as contradições em que as democracias modernas incorrem, ao afirmarem a retórica da liberdade como valor axiológico, mas não hesitando em pôr em marcha um Estado polícia com o pretexto de que as liberdades estão ameaçadas.

Desse pressuposto, o palestrante partiu para conclusões com as quais discordo. Foi aí que a sua mensagem central fez sentido. Quando alerta para a incoerência entre querer ser livre e exercer a liberdade, estende a passadeira para a desvalorização da liberdade. Sugere que há outros valores mais importantes do que a liberdade individual. Foi então que tirou da cartola a homenagem à revolução francesa, batendo na tecla da igualdade, da solidariedade a que os indivíduos devem estar comprometidos como dever necessário de inserção social.

São estas as pessoas que não hesitam em espezinhar a liberdade quando ela entra em conflito com o “sagrado” valor da igualdade. Atalhando caminho para a arbitrariedade, para a imposição sobre os indivíduos, para um colete-de-forças que leva seres livres a abdicar do livre arbítrio, robotizados pela formatação imposta de cima. É o império dos engenheiros sociais, iluminados e acima de qualquer suspeita, sobredotados para encontrar as melhores soluções que conduzem o grupo para a harmonia. Inscrevendo os membros do grupo numa acefalia acrítica. Passam a ser números anónimos a quem está destinada a acomodação. São os fautores da desumanização das pessoas, com a receita que os acorrenta aos necessários ditames impostos.

Estes condutores de almas levam-me ao império das suspeitas. Desconfio das soluções milagrosas, preconizadas por quem se acha investido de superioridade (moral e intelectual) para se impor sobre as “pessoas comuns”. É por estes descaminhos que se constroem as fórmulas retóricas como a que destaquei. Sugerir que deixamos de ser livres quando acreditamos que alcançámos os patamares da liberdade é advertir que não nos devemos preocupar com a liberdade. É preferível que cada pessoa se entregue, de corpo e alma, nas mãos de milagrosos e sobredotados engenheiros sociais que encontram o caminho ideal para a sociedade perfeita. Mesmo que isso signifique empenhar a liberdade.

Eu cá prefiro uma sociedade imperfeita cheia de liberdade.

3.3.05

Não darás a comunhão a quem usar contraceptivos

Deve ser o novo mandamento das sagradas escrituras que regem os sacerdotes católicos. A novidade veio na insólita forma de anúncio mandado publicar pelo padre Nuno Serras Pereira. Não são só os contraceptivos o alvo da fúria do clérigo fundamentalista. A recusa em participar no ritual da comunhão estende-se a todos os que aceitam a reprodução assistida e que estejam de acordo com a lei do aborto.

De acordo com a fonte, o padre Serras Pereira invocou um preceito do Código Canónico para fundamentar a sua decisão. Está no seu direito. Cada qual fica com as decisões que a consciência determina. Também terá de arcar com as consequências dos seus actos. Para começar, a exposição ao ridículo. Apesar da ausência de fé, indigna-me a subtil perseguição movida aos católicos pelos cânones do politicamente correcto. São notícias destas que enchem de contentamento os inquisidores hodiernos, os que não querem esquecer as diatribes em que a igreja foi pródiga no passado e não perdoam o mais pequeno vestígio de intolerância vinda de agentes que se movem na hierarquia católica. À intolerância respondem com mais intolerância, perdendo a razão.

Se a igreja sabe da intolerância que lhe é devotada, menos se percebe como pessoas de dentro da igreja escolhem actos desta estirpe, que os ridicularizam e esvaziam a credibilidade junto da sociedade. Sei que a fé não se mede pelo barómetro das sondagens que estimam os avanços e recuos da igreja junto do público. Mas também não se pode eximir à responsabilidade de ser uma igreja adequada aos tempos que vivemos. Por mais que lhe custe, não são os tempos modernos que se têm que ajustar aos dogmas da igreja, mas o contrário.

Como se não bastasse o passado recheado de intromissões na esfera privada dos crentes, a igreja insiste no procedimento. Exibições como a do padre Serras Pereira tresandam a maniqueísmo. Invadem as opções pessoais dos crentes que, no seu íntimo, sentem a necessidade (ou a obrigação – para o caso é indiferente a distinção) de partilhar o momento da comunhão. Quando o patusco padre vem anunciar que se recusa a dar a comunhão a quem se afastar das condições por ele enunciadas, está a violentar os espíritos habituados a ir à missa que ele celebra. Representa uma condicionante da vontade individual. É a negação da liberdade que deve fundamentar as escolhas de cidadãos descomprometidos. Exprime a ideia de que a fé não é um acto de libertação dos crentes, antes uma entrega a dogmas que tolhem a afirmação do eu que há dentro de cada crente.

Incredulidade. Foi a primeira reacção ao dar conta da notícia. É em momentos deste calibre que faz sentido o diagnóstico dos cépticos, quando afirmam que o mundo está de pantanas, mergulhado numa insanidade incompreensível. Depois da fase atónita, os pés regressam à terra. Ensaiam-se leituras alternativas. Tenta-se indagar se não há outros objectivos, escondidos atrás de uma leitura simplista do episódio. A espontaneidade do raciocínio leva a acreditar que, com esta atitude, o padre Serras Pereira está a afastar muitas ovelhas do seu rebanho habitual. Afastará aquelas pessoas que não se revêem nas orientações intoleráveis que tentam condicionar a sua vontade. Feridos na sua dignidade, estes crentes farão a vontade ao padre Serras Pereira: não estão dispostos a desrespeitar o dever de consciência que os impede de comungar contra a vontade de quem lhes oferece a comunhão, desviando-se para outros templos.

Bem vistas as coisas, até pode ser que tudo se passe ao contrário. É então que descubro que o padre Serras Pereira é um génio do marketing. Uma mente peregrina, que trouxe as virtudes do marketing para a religião. Aposto que depois deste anúncio passará a ter as suas celebrações repletas. De crentes que acham mais importante continuar a cumprir os seus deveres de consciência, mais do que respeitar as obrigações ditadas pelos caprichos do padre. E de muitos não crentes, que numa posição de desafio farão, pelo menos uma vez, o sacrifício de atender a uma missa do padre Serra Pereira e de comungar, em desafio à patética declaração.

Assim se enche uma igreja. Assim um padre que estava condenado ao anonimato passou para as luzes da ribalta. E enquanto a hierarquia eclesiástica não se demarcar deste ridículo anúncio, subscreve o repto do padre Serras Pereira. Será a confirmação de que a igreja é um instrumento de manipulação do livre arbítrio das pessoas. Uma igreja totalitária, anacrónica, deplorável.

2.3.05

A técnica do boato

Parque da cidade, corrida matinal. No tempo gélido que nos traz tiritantes de frio, a temperatura estacionou nos zero graus. Nuvens negras tingem o céu, encobrindo a lua no seu quarto minguante. São nuvens altas. Não são prenúncio de chuva. Ensaio um exercício especulativo: imagino que aquelas nuvens espremidas e que a precipitação seria em forma de neve, tal a temperatura que se fazia notar. A meio da corrida dou comigo a pensar qual seria a sensação de correr debaixo da melodia dos flocos de neve na sua queda em direcção ao solo.

No fim da corrida, outro exercício proveio da imaginação. Deitei-me a adivinhar as consequências de um boato inocentemente lançado no sítio onde costumo tomar café, de regresso a casa. Lembrei-me de como nos anos longínquos da escola secundária uma professora ensinou os efeitos devastadores das falhas de comunicação quando uma história passa de boca em boca. Recordo-me da simulação na sala de aula: pediu a um aluno que segredasse uma história ao ouvido do seu colega de carteira. De aluno em aluno, a história correu a sala. Quando o último aluno a contou, ela era bem diferente da história relatada ao primeiro que iniciou a cadeia.

De regresso ao presente, vestiria a pele de boateiro enquanto tomava o café matinal. Diria que uns tímidos flocos de neve se soltaram das nuvens que pairavam sobre o parque da cidade, durante uns breves minutos da minha corrida. A senhora Eunice (nome imaginário, como todos os que se seguem), dona do café, escutou a minha história. Lamentou não ter sido contemplada pela ténue queda de neve. A senhora Maria dos Prazeres estava sentada na mesa junto à entrada do café. Ouvia-me contar a mentira do dia, em silêncio.

Minutos mais tarde, a senhora Eunice passou a mensagem a um dos seus habituais clientes, o senhor Almeida. Em vez de dizer que a neve tombou, fraca e por uns escassos instantes, informou que alguém lhe tinha dito que no parque da cidade tinha nevado com alguma abundância. A senhora Maria dos Prazeres, chegada à empresa onde faz a limpeza matinal, contou ao segurança que tinha visto nevar perto de sua casa, enquanto esperava pelo autocarro. O senhor Horácio, atormentando por crónicos problemas de audição, julgou ouvir que tinha nevado durante toda a noite. Lamentou estar encerrado no seu casulo, sem acesso ao exterior, o que o impediu de ser testemunha de um espectáculo a que raras vezes assistiu.

A cadeia do boato estava lançada. Embora não tivesse nevado, é como se uma bola de neve fosse engrossando de tamanho à medida que a história ia passando de boca em boca. O senhor Almeida saiu do café e, no caminho para o trabalho, recebeu um telefonema de um familiar que vive em Leiria, o senhor Beltrão. Disse-lhe que tinha ouvido dizer que no Porto os flocos de neve fizeram uma visita a toda a cidade. Este entendeu que a cidade estava coberta por um fino manto de neve, como já há muitos anos não sucedia.

Mais a norte, o senhor Horácio estava radiante com a notícia dada pela senhora Maria dos Prazeres. Atraiçoado pela semi-surdez, pegou no telefone e ligou para a sua mulher. Do outro lado do telefone, uma longa espera medida pelo sinal de um telemóvel a tocar, sem que ninguém o atendesse. Na ânsia de ver a história confirmada, o senhor Horácio queria uma segunda voz que corroborasse a versão da senhora Maria dos Prazeres. Afinal ela era conhecida pelos predicados de alcoviteira. À segunda tentativa, a senhora Claudina atendeu a chamada, ainda atarantada pelo som estridente do telemóvel que a despertou do sono. Ouviu o senhor Horácio a dizer que estava regresso a casa, depois do turno da noite. E ouviu a boa nova: a cidade tinha sido coberta por um manto de neve durante a gélida noite.

Pousado o telemóvel, a decepção atingiu duas almas ao mesmo tempo. O senhor Horácio saiu para a rua no exacto momento em que a senhora Claudina descerrou a persiana da janela do seu quarto. Afinal, se nevara pela noite, a neve não chegou a esbranquiçar a paisagem. Quilómetros a sul, a notícia correu, célere, no autocarro que o senhor Beltrão apanhou para o trabalho. Quando as pessoas que seguiam no autocarro entraram nos seus trabalhos, apressaram-se a espreitar a televisão. Queriam ver as imagens de um Porto pintado de branco. A expectativa foi frustrada pela não notícia.

Todos caíram em si. O boato lançado exagerou-se pelas dimensões que tomou com as sucessivas falhas de comunicação que se encadearam. É como estamos habituados a ouvir: quem ouve um conto acrescenta um cento.

1.3.05

Em nome da ciência: as experiências cruéis em animais

É uma imagem brutal que entra pelos olhos dentro. Por cá ainda não vi as campanhas dos activistas dos direitos dos animais, despertando as consciências para a selvajaria que exercitamos sobre animais indefesos, em nome da ciência colocada ao serviço do ser humano. É mais comum ver os cartazes dos activistas dos direitos dos animais pela Europa fora. De cada vez que vou a Londres, as imagens chocantes estão lá, advertindo para a barbárie que se pratica mesmo debaixo do nosso nariz, sem darmos conta de que somos cúmplices dessa barbárie.

As imagens são arrepiantes. Fotografias das experiências cruéis em animais – desde os infelizes ratos, promovidos à condição de cobaias por excelência, passando por cães e gatos extraídos à vadiagem a troco do enclausuramento e do sacrifício às mais horripilantes experiências científicas. Para quem tiver coragem de passar os olhos pelas fotografias, para quem quiser ficar com insónias quando a cabeça repousar no travesseiro, basta tirar uns minutos e violentar-se com a violência a que estes animais estão expostos. São corpos ensanguentados, esventrados, mutilados. Animais agrilhoados a uma vida vegetativa. Cães e gatos presos, membros inferiores e superiores estendidos e espetados com ferros que, para um leigo, apenas mostram a imagem de uma violência insuportável.

Qual o preço a pagar? Dizem aqueles que querem apaziguar as suas consciências, é o preço do progresso. A factura do bem-estar humano. Sem estas experiências seria impossível desbravar o caminho para descobertas científicas que trouxeram mais esperança de vida para os humanos, remédios que inoculam o organismo humano contra doenças outrora fatais. Se bem entendo as campanhas dos activistas dos direitos dos animais, as imagens sofridas com que nos violentam referem-se a experiências sobre animais na indústria de cosméticos.

Mesmo aí os percursores do humanismo – os que colocam o ser humano como prioridade de acção – dirão que são aceitáveis os sacrifícios impostos aos animais enquanto cobaias. Porque é uma indústria que proporciona bem-estar aos humanos, tal basta para se contemporizar com as experiências cruéis em animais. Não consigo concordar com esta visão utilitarista. É uma visão que renega o mais puro humanismo de cada indivíduo. Não é mais humanista aquele que apenas olha para os direitos do ser humano, instrumentalizando os animais em proveito do Homem. Esse é um humanismo autista, antropocêntrico, um falso humanismo. O Homem não é a única espécie humana no planeta: convivemos com outros animais. E se insistimos que somos superiores às demais espécies por causa da racionalidade que é atributo exclusivo, espezinhar os direitos dos animais é o caminho simbólico da negação dessa racionalidade.

Por uma vez estou ao lado dos ambientalistas. Descontando os excessos característicos dos fundamentalistas da causa ambiental, não me repugna assinar petições que chamam à atenção da indignidade que é fazer os animais passar por sacrifícios brutais em nome de vaidades humanas alimentadas pela indústria de cosméticos.

Há algo de incómodo nestas campanhas de rua. A violência das imagens pode exercer um efeito contraproducente. Confesso que apenas uma vez tive estômago para olhar de frente para as fotografias apresentadas pelos activistas. De todas as outras vezes que me deparei com estas campanhas de rua, ou com autocolantes afixados no metro, o instinto levou-me a desviar o olhar para o lado contrário. Para evitar a violência que as imagens de animais em sacrifício (ou acabados de sacrificar) exercem aos meus olhos.

Dou comigo a pensar se esta fuga não é uma manobra retráctil da consciência, uma hipocrisia, não querer que o meu bem-estar emocional seja momentaneamente perturbado pelas imagens horríveis que surgem. E se, com esta reacção, não estou a ser condescendente com as experiências violentas que se perpetuam sobre animais indefesos, caucionando os produtos cosméticos que se continuam a vender para que possamos ter uma pele mais lisa, para que nos perfumemos, ou para que mulheres surjam em público como lojas ambulantes de cosméticos, nem que para tudo isso seja necessário sacrificar animais.