Sequência do texto de ontem: onde mais o fascínio da inovação tecnologia se faz sentir é nos jogos. Aderi à moda das consolas de vídeo. Senti a necessidade de refrescar a cabeça com coisas mundanas. Foi um súbito apelo pela irresponsabilidade dos dias que passam na indolência do nada. Romper com o ritmo vertiginoso dos últimos anos, que teve o apogeu nos últimos seis meses. Parei para pensar: tens direito a uma pausa.
Uma página dobrada e novos desafios pela frente, mandam os costumes da vida frenética em que somos mergulhados. Os projectos sucedem-se, uns atrás dos outros, como se fôssemos obrigados a mostrar serviço. Temos que submergir no afã dos afazeres profissionais: é o preço a pagar pelo dom de pertencermos a uma comunidade. Somos agraciados com a dádiva de pertencer a uma comunidade, pois de contrário ficávamos votados ao ostracismo. Para não sermos remetidos ao reduto do isolamento penoso, a sociedade acolhe-nos no seu seio. O agradecimento tem o preço dos serviços que prestamos à sociedade. O nosso trabalho, que contribui para o progresso geral e para encher a carteira com os parcos recursos que vão alimentando o bem-estar pessoal.
Quando damos conta, sentimo-nos escravizados pelo trabalho. Lembro-me, no semestre passado, de ter dias que começavam às cinco e meia e terminavam depois da meia-noite (os que me conhecem podem advertir: ok, começavam tão cedo porque tens a loucura de fazer exercício físico a uma hora em que nem as galinhas estão acordadas…). A jornada durava dezanove horas! Não me orgulho da façanha. Achava preocupante ter prolongar por tanto tempo um dia de trabalho. Chegava ao final do dia absorto, exausto, a sensação de que pouco aproveitava dessas longas jornadas. Em rigor: eram dias necessariamente produtivos em termos de trabalho, mas vácuos em termos pessoais. Quando por fim repousava a cabeça no travesseiro, a percepção de que um dia imerso em tantos afazeres não era recompensador no plano pessoal.
O mundo moderno é feito de modas (aliás, moderno ou não, é sempre dominado por modismos). Hoje está na moda sermos dominados pela velocidade alucinante das exigências profissionais. Ao ouvir pessoas do nosso entorno a falar, invariavelmente relatos ao mesmo tempo de orgulho e de pesar por “não se ter tempo para nada”. Parece um concurso: quem sai mais tarde do trabalho, quem passa mais horas por dia, por semana, encerrado no recato de um nada bucólico cubículo cercado por quatro paredes e um tecto asfixiante. Quem sai da linha é olhado com suspeição. É um desalinhado que se solta do contrato com a comunidade. Quem não se gaba de trabalhar horas a fio dia após dia, vê-lhe pespegado o rótulo da preguiça inconsequente.
É este o estatuto que quero. Dar mais tempo ao lazer. Libertar-me das amarras do trabalho, sem negar o mínimo que devo cumprir. É certo que o trabalho que tenho me consagra flexibilidade para ser senhor do meu tempo. Posso adiar leituras que listei, remeter para mais tarde a escrita de artigos científicos, deixar para um dia destes a participação em congressos que enriquecem o curriculum. Deixar-para-mais-tarde. Fazer um parêntesis para o reencontro com um tempo que seja só meu. Oxigenar as ideias, desviar a atenção para outras facetas. Deixar-me cair num passado onde se imiscui o futuro: regressar à infância dos jogos, agora pontuada pelas maravilhas da tecnologia que estendem a faceta lúdica, outrora apenas ao alcance de crianças e adolescentes, para a idade adulta.
Não é pretexto. Apenas a convicção de que em certo momento se impõe uma pausa, ou somente abrandar o ritmo. Também aqui não é a quantidade que importa. Desconfio daqueles que se gabam, a toda a hora, de serem escravos do trabalho. Aqueles que contabilizam nas horas passadas atrás de uma secretaria o seu barómetro de produtividade. O contributo qualitativo pode ser maior em alguém que consagra metade do tempo ao trabalho. No tempo que resta, esse alguém pode ser dono de si mesmo, encontrar escapes que libertam a cabeça para escolhas mais avisadas. É o lazer que é bom conselheiro do trabalho e das suas exigências. O lazer que marca um reencontro de cada um de nós consigo mesmo. Por mais que o trabalho seja recompensador, por mais que gostemos das funções que exercemos, é no lazer que encontramos a verdadeira essência do eu que habita dentro de nós.
Não é o elogio da preguiça. É o caminho para não estar encarcerado no mundo do trabalho, como se uma necessária osmose entre o trabalho e o eu nos fundisse num só, indistinguível um do outro.
1 comentário:
Tens mais ou menos 4 anos de "computer entertainment alone" até a Leonor "descobrir" estas maravilhas! E depois tens um redobrado prazer que é jogar com ela!...
Parabéns!
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