30.3.05

Automobilistas, esses terroristas

Novo código da estrada, repressão é palavra de ordem. Como se fosse a panaceia para combater a elevada sinistralidade rodoviária. A ideia é simplista, e como todas as ideias simplistas vem com a atracção do raciocínio linear: há acidentes em demasia, causados por excesso de velocidade (desculpa oficial que encapota outros males); logo, há que combater o excesso de velocidade com todas as armas. Puni-lo com multas exorbitantes, num assalto à bolsa dos automobilistas.

A ideia simplista agrada aos que fogem de uma análise mais profunda dos males semeados pelas estradas de norte a sul. É uma forma dos governantes e dos burocratas sem rosto se porem a milhas da responsabilidade que o Estado tem. O lobby do sector automóvel defende-se deste ataque cerrado: a atenção devia estar concentrada a montante, na educação dos automobilistas (nas escolas de condução e, antes disso, nos bancos da escola) e na qualidade das estradas.

São argumentos poderosos. De que serve um modelo de ensino de condução que é vetusto? Os alunos são encartados e, só depois, por sua conta e risco, aprendem a circular em estrada. Um sistema omisso em relação aos princípios básicos de condução defensiva. Sai-se das escolas de condução sem a aprendizagem de manobras de recurso, como dominar um automóvel em situações adversas. O que poderia evitar muitos acidentes, que têm na inépcia dos condutores a sua explicação. De nada vale apontar o dedo acusador ao excesso de velocidade. Estabelecer regras objectivas quando a subjectividade de cada condutor sublinha a diferença é um princípio inútil. Para um inábil que – sabe-se lá como – conseguiu tirar a carta de condução à enésima tentativa, circular numa auto-estrada a 90 km/hora é mais perigoso do que para um condutor mediano que viaja a 150 km/hora.

Se certos arautos da desgraça insistem que a sinistralidade rodoviária é uma das chagas sociais dos tempos modernos, porque não retroceder a campanha educativa aos bancos da escola? Se cada criança é um condutor de automóveis no futuro, porque não matar o mal pela raiz e criar nos currículos escolares matérias que educam as crianças para um comportamento civilizado quando estiverem ao volante?

O Estado demite-se destas responsabilidades. Prefere a via repressiva. Porventura porque permite enfatizar a sua vocação autoritária. Com um código da estrada tão opressivo, com uma margem de arbitrariedade tão acentuada (os mínimos e máximos das multas para cada infracção, e a sugestão de um desorientado secretário de Estado, que defendeu que são os agentes da autoridade que decidem, caso a caso, onde situar a multa…), o que fica à vista é a suprema autoridade do Estado. Aos automobilistas resta baixar a cabeça, tiritantes de medo que à espreita esteja uma brigada de trânsito ansiosa por exibir o complexo de farda e aplicar a insultuosa multa pelo mínimo deslize.

É o Estado “moralizador”, que envereda pela via fácil – “para grandes males, grandes remédios”. É uma solução que só tem vantagens. Primeiro, é uma mina de receitas – se os condutores não se habituarem aos rigores do novo código, e se os agentes da autoridade forem zelosos. Depois, é a maneira de contornar as responsabilidades de que o Estado foge a sete pés. Que interessa que as estradas tenham defeitos de projecto que tantas vezes motivam os acidentes? Que interessa que a sinalização vertical seja o verdadeiro atentado terrorista a quem anda na estrada, a armadilha que leva os automobilistas ao encontro do sinistro? Que interessa mudar o sistema de ensino, para que quem conduz esteja habilitado a reagir em situações de adversidade? Mais importante é reprimir, multar, multar a eito.

A finalizar, a excitação da comunicação social. No rescaldo da “operação Páscoa”, menos acidentes e os mortos quase diminuíram para metade em relação ao ano passado. Embriagada pela excitação que tolda o discernimento, afadigou-se em tirar conclusões precipitadas: a ligação de causa e efeito com o novo código da estrada, como se fosse a solução milagrosa que, numa penada, fez baixar a sinistralidade rodoviária. Pena que se esqueçam de informar que o volume de tráfego foi bem menor do que em Páscoas anteriores: não houve engarrafamentos. Sinal, também, da famosa crise de que os socialistas nos hão-de retirar com uma varinha mágica. Ora, com menos carros em circulação pelas estradas, menos acidentes, menos vítimas. O efeito balsâmico do novo código da estrada é uma falácia.

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