4.3.05

Liberdade ou escravidão mental?

Ainda da última ida a Inglaterra. À boa maneira local, uma cerimónia de titulação universitária impregnada de solenidade. Togas vistosas trajadas por professores que, compassadamente, se encaminham para o palco onde vão agraciar os estudantes. Um cerimonial que se assemelha a uma entronização. Não é por acaso que as pessoas reunidas naquele teatro constituem o que, na gíria da ocasião, se chama “congregação”. Os discursos de importantes professores surgem revestidos da mesma solenidade. Num discurso, um venerando professor saltou para o púlpito e discorreu sobre os males que atormentam a sociedade contemporânea. Retive esta passagem:

Não é a liberdade que importa, mas sim o exercício da liberdade. Quando dizemos que conquistámos a liberdade, voltamos a abdicar dela”.

Ao início pareceu-me um exercício de retórica, embrulhado num estranho labirinto que negava a existência da liberdade. Ela seria uma miragem, inalcançável ao ser humano. Para o orador, quem se diz livre deixa de o ser a partir do momento em que faz essa afirmação. Perplexo, interroguei-me: será que as mentes espontaneamente livres são aquelas que passam ao lado dos desejos de liberdade? Os verdadeiramente livres serão aqueles que se resignam aos desígnios superiores? É quem não se preocupa com a liberdade que não esbarra no espartilho que é sentir-se agrilhoado por outrem – por uma entidade divina, pelas autoridades, por um herói deificado?

O resto da oratória decifrou o enigma. A prédica depreciou o passado de liberdade individual inscrito no património genético do país que viu nascer o orador. É algo de imanente à natureza humana: estamos descontentes com o que temos à nossa volta, com o terreno que pisamos. O raciocínio tecido pelo orador desvalorizou o valor das liberdades das democracias modernas. Num ponto concordo com ele: enfatizou as contradições em que as democracias modernas incorrem, ao afirmarem a retórica da liberdade como valor axiológico, mas não hesitando em pôr em marcha um Estado polícia com o pretexto de que as liberdades estão ameaçadas.

Desse pressuposto, o palestrante partiu para conclusões com as quais discordo. Foi aí que a sua mensagem central fez sentido. Quando alerta para a incoerência entre querer ser livre e exercer a liberdade, estende a passadeira para a desvalorização da liberdade. Sugere que há outros valores mais importantes do que a liberdade individual. Foi então que tirou da cartola a homenagem à revolução francesa, batendo na tecla da igualdade, da solidariedade a que os indivíduos devem estar comprometidos como dever necessário de inserção social.

São estas as pessoas que não hesitam em espezinhar a liberdade quando ela entra em conflito com o “sagrado” valor da igualdade. Atalhando caminho para a arbitrariedade, para a imposição sobre os indivíduos, para um colete-de-forças que leva seres livres a abdicar do livre arbítrio, robotizados pela formatação imposta de cima. É o império dos engenheiros sociais, iluminados e acima de qualquer suspeita, sobredotados para encontrar as melhores soluções que conduzem o grupo para a harmonia. Inscrevendo os membros do grupo numa acefalia acrítica. Passam a ser números anónimos a quem está destinada a acomodação. São os fautores da desumanização das pessoas, com a receita que os acorrenta aos necessários ditames impostos.

Estes condutores de almas levam-me ao império das suspeitas. Desconfio das soluções milagrosas, preconizadas por quem se acha investido de superioridade (moral e intelectual) para se impor sobre as “pessoas comuns”. É por estes descaminhos que se constroem as fórmulas retóricas como a que destaquei. Sugerir que deixamos de ser livres quando acreditamos que alcançámos os patamares da liberdade é advertir que não nos devemos preocupar com a liberdade. É preferível que cada pessoa se entregue, de corpo e alma, nas mãos de milagrosos e sobredotados engenheiros sociais que encontram o caminho ideal para a sociedade perfeita. Mesmo que isso signifique empenhar a liberdade.

Eu cá prefiro uma sociedade imperfeita cheia de liberdade.

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