28.3.05

Páscoa sofismada

Há imagens recorrentes, sempre que a Páscoa amovível se encontra com o calendário. Para além das narrações bíblicas que, pela milionésima vez, passam nos mesmos filmes pascais, assaltam-me a memória as imagens de sacrifícios humanos que retratam os momentos da crucificação de Cristo. Todos os anos, repete-se o ritual. Imagens de devotos fiéis filipinos que se oferecem para serem empalados numa cruz. Replicando o que terá acontecido há mais de dois séculos com Cristo.

São imagens de um sofrimento pungente. Retratam, algumas delas, o pormenor dos pregos cravados nas palmas das mãos dos homens que se imolam perante uma audiência vibrante, que exalta a capacidade de sacrifício. Um cenário arrepiante, a cruz içada depois de ambas as mãos terem sido cravejadas contra a madeira, o sangue que se esvai mascarando uma dor fulminante que os pobres sacrificados querem esconder. Entre nós, o ritual do sacrifício humano não é levado a este exagero. Encenam-se as imagens que vêm da narração bíblica, sem infligir a dor humana nos homens que trajam a imagem viva de Cristo. Por cá ninguém espeta pregos nas palmas das mãos bem abertas à dor que, na dogmática católica, é entrega total ao destino traçado por deus. Simula-se o acto da crucificação, porque o valor da vida humana, o valor de uma vida apartada do sofrimento inconsequente, já foi chão pisado outrora.

E, no entanto, há uma contradição insanável. A dogmática católica persiste na ideia do sacrifício como prova da entrega à entidade divina. Pode-se dizer: já não se defende os excessos que se repetem nas Filipinas. Não se aconselha que se passe do limiar do aceitável, que se monte um espectáculo que arregimenta a fé de muitos à custa do sofrimento de uns poucos que vão ensanguentar a madeira da cruz com as suas mãos pregadas num sofrimento inenarrável.

Mas o culto do sofrimento encerra-se noutras vestes. Os católicos apaziguam os seus fantasmas ao verem o sacrifício sobre-humano que o papa mantém. As imagens do fim-de-semana pascal são sua a versão extremada. Um papa enfraquecido, exangue de forças, que teima em aparecer para gáudio de uma população de crentes que atinge o púlpito do comprazimento ao testemunhar o esforço que não derrota o papa. É um testemunho do sacrifício que os crentes se devem impor. Exibição da entrega a deus, acto de humildade que revela o nada que todos somos perante a grandiosidade de um deus que comanda os nossos destinos.

Medidas as distâncias entre as Filipinas e o Vaticano, não encontro grandes diferenças. Não me interessa saber se são genuínas as imagens de um papa adoentado, mirrado pela dor, numa duvidosa teimosia de aparecer em público nem que seja para transmitir a imagem de um pouco mais do que autómato que permanece numa ligação ténue à vida; não me interessa saber se é o papa que, por sua vontade, quer aparecer, figura de corpo presente, cultivando a retórica enraizada entre os católicos; ou se é um acto bem encenado na hierarquia eclesiástica, com o consentimento papal, para alimentar esta forma de ser que alicerça o comportamento dos crentes. Fica o paralelismo inevitável: à distância de milhares de quilómetros, nas Filipinas como no Vaticano, o sofrimento cimenta uma fé que não se cansa em colocar o devir do indivíduo nas mãos de uma entidade divina. Uma fé feita sofrimento, chave da resignação que dilui a pouco mais do que nada a vontade do indivíduo.

Será o discurso mais visível do catolicismo – este de enfatizar a capacidade de sofrimento como prova de devoção? Pergunto-mo até que ponto a resignação perante o padecimento não é a negação do que somos? Ou nascemos para sofrer no silêncio, apenas porque “essa é a vontade de deus”? Para mim é incompreensível saber que há um deus que se contenta com o sofrimento dos crentes, como se a sua força encontre nesse sofrimento os nutrientes necessários.

Sem comentários: