22.3.05

O amanhã é só hoje

Um desabafo. Um roteiro de vida. Querer impedir que os projectos vão para além do dia que se vive. Para evitar os desencontros que o futuro marca na agenda. Para não viver agarrado a expectativas que depois não se cumprem. Emparelhado às vinte e quatro horas intensas que cada dia oferece como dádiva, escapar do alçapão do porvir, fugir das curvas sinuosas que podem trazem o azedume.

Fáceis são as intenções que agendam o comportamento que ensaia os caminhos a palmilhar para a sanidade interior. Difícil é moldar os hábitos do quotidiano aos trilhos que, sabemo-lo, reencontram teoria e prática. É fácil gizar planos mil, promessas interiores de mudança, acatar os conselhos do subconsciente que, avisados, apontam o caminho a percorrer. Mas quando chega a altura de mudar nem sequer se dá conta que as ferramentas da mudança estão ali, mesmo à frente dos olhos, sem que a vista consiga alcançar os necessários passos para percorrer o trajecto da mudança. Depois, tempo depois, o balanço e a decepção. A sensação revisitada de que o tempo é gasto no vaguear inútil, em incursões que desperdiçam energia e semeiam a dilacerada dor de olhar para trás e saber que tantos dias foram consumidos na avidez do nada.

A máxima expressão de mudança é saber viver um dia atrás do outro. Sem haver ansiedade pelo dia que se segue, sem projectar obra que se inscreva na agenda do amanhã. Querer – e poder – viver um dia de cada vez, como se cada dia fosse o último para saborear. Sabendo que todos os dias são diferentes e que cada dia tem que ser percorrido como se fosse único, singular nas fontes inesgotáveis de prazer. Fazer do tempo uma coisa intemporal, que perdura para além das pedras gastas que dedilham as rugas da velhice, do tempo que não pára e que vai semeando os cabelos brancos da sensatez. Fitar o horizonte e saber conviver com a marcha dos ponteiros, viver por dentro a correria louca dos segundos que se afogueiam uns atrás dos outros, como se o tempo fosse um turbilhão que sorve sem se poder oferecer resistência. Ora com intensidade, ora com a tranquilidade de nada querer fazer senão sentir o pulsar do coração.

Os pensamentos vagueiam com a rédea solta. Diria que é uma sensibilidade que goteja, gritante, do meio de um nada que parece preencher as paredes que me cercam. Uma sensibilidade que se alimenta de um tempo condoído, marcado pelo sofrimento que de quem sofre com a dor de entes queridos. E, no entanto, um sofrimento que exalta um supremo egoísmo. Sofre-se com a dor das pessoas que nos são próximas, exacerbando essa dor. Esquecendo que a dor maior é sentida por quem deu à cama, entregue no seu destino à magia da medicina. Essa é dor maior. Incomparavelmente maior. Ao pé dela, o sofrimento de quem sofre pela desdita dos entes queridos é um acto menor que parece ausentar-se do obrigatório respeito por quem está entregue nos braços da doença. Não será falta de solidariedade. Apenas o respeito maior pela dor incomparável.

A dor que cerca e que se apodera de outras pessoas: um fio do novelo que se desvela, do roteiro de vida que faz do hoje o único património que merece ser trabalhado. A cada dia que passa e que emerge a lição de que foram horas perdidas no etéreo nada, a convicção que a vida se perdeu num dia inócuo. É no querer aproveitar tudo o que a vida tem para oferecer que vem a prescrição que substitui a metafísica insolente: ter a consciência que na voragem dos dias está o segredo de uma vida vivida com toda a intensidade. Saber que é na sucessão vertiginosa de dias que se encontra a plenitude do ser. Em cada dia, sem esperar que venha outro dia para saber que o futuro se cumpriu hoje. Ao contrário: a visão deve alcançar mais curto, inevitavelmente mais curto. A essência do bem-estar é ignorar o que o destino esconde para lá do dia que se há-de dobrar algures quando o sono está para chegar.

O segredo parece bem guardado, e afinal é de uma singeleza desarmante. O projecto de uma vida é o dia que desfila diante dos olhos. Amanhã será tarde demais para cumprir o projecto. Amanhã será tempo perdido na sofreguidão dos dias que se seguem sem parar, e que teimamos em destroçar como se nos fosse dado o luxo de perder o tempo que é sempre tão escasso.

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