30.6.05

Desobediência civil: um manual de instruções

Se queres fazer carreira nas manifestações de protesto contra o malfadado capitalismo. Se queres engrossar a turba que não cala a voz contra as injustiças provocadas pela globalização selvagem. Se estás contra o lucro, o individualismo, a opressão dos pobres e indefesos pelos poderosos. Se queres participar em acções de desobediência civil que mostrem à sociedade o caminho para a felicidade (qualquer que ele seja, pois ainda não estamos certos de ter encontrado os trilhos para lá chegar…). Se te revês neste retrato, junta-te a nós. Milita na causa bloquista e inscreve-te no workshop de desobediência civil que vamos organizar para ti, jovem insatisfeito com o curso do mundo.

Garantimos a presença de formadores de elevado calibre. Agitadores profissionais com passagens pelas manifestações que acompanham, em tournée, as reuniões do G8, Organização Mundial do Comércio, Fundo Monetário Internacional, Fórum de Davos, Conselho Europeu e tudo o que tiver o bafiento odor do conservadorismo anquilosado que deprime esta sociedade apodrecida. Vem até nós. Aprender a ser um agitador social. Vamos ensinar a seres a anónima carne para canhão que alimenta uma causa colectiva. Nós, os grandes líderes, os pensadores das causas justas que nos arregimentam em torno de um ideal, asseguramos a presença na retaguarda. Enquanto tu, depois do tirocínio, andares a dar o corpo ao manifesto e apanhar cacetadas policias, lá estaremos, no conforto dos hotéis, a dar entrevistas à imprensa veiculando as nossas ideias – as ideias que estão certas, que ninguém ponha dúvidas.

Jovem, não te deixes possuir pelo conformismo. É uma doença letal, que ameaça fazer de ti mais um alienado membro da sociedade consumista inquinada pela despersonalização. Oferece-te para participar nas agitações que levam destruição às ruas das cidades onde o maldito capitalismo se pavoneia em cimeiras que perpetuam um sistema putrefacto. Vamos-te ensinar a iludir as forças policiais. Como elaborar um cocktail molotov, como o arremessar. Terás os rudimentos da intifada – porque contra o poderio bélico instalado devemos recorrer ao que a natureza nos dá, as pedras espalhadas pelas ruas. Vem aprender essa coisa tão bela que dá pelo nome de resistência pacífica. Ensinaremos como te deves plantar, estático, acorrentado se preciso for, a objectivos que queremos boicotar.

Garantimos treino mental, para poderes oferecer mais resistência às investidas da polícia quando estiveres a ser interrogado numa esquadra e nós, os timoneiros, regalados num hotel de cinco estrelas a fumar o nosso havano e a tragar o delicioso whisky velho. Também asseguramos um curso intensivo de lavagem cerebral, para que possas interiorizar a cartilha ideológica que nos guia (ainda a estamos a reciclar…). No final do workshop, jovem, estarás habilitado a ser um agitador profissional. Com as nossas ligações internacionais, e com a ajuda de misteriosos financiadores, terás pela frente uma promissora carreira que passa por espalhar a confusão, desestabilizar os costumes estabelecidos. Com a vantagem de viajares pelo mundo, envolvido numa rede que contraria o mundo que somos sem, contudo, adiantar propostas para uma alternativa de mundo melhor.

Jovem: não te contentes com a aparência de intelectual de esquerda deslavado. Não basta trajar roupas negras, compradas numa feira de ciganos, orgulhosamente ostentando a ausência de marcas chiques (não te esqueças que o privilégio de vestir roupa de marca, ainda que vinda do inimigo maior – os Estados Unidos da América – fica reservado às elites pensantes que dirigem os destinos do nosso movimento). Não basta cultivar chocas no teu cabelo de rasta. Nem exibir a falta de banho, atitude ecológica porque se a água escasseia ela deve ser poupada. Tens que estar comprometido com a acção. Como sabes, os holofotes, a ribalta das aparições na comunicação social, estão reservados aos que lideram as massas que se insurgem contra o pensamento dominante. A ti, a militância começa pelas tarefas de base, pela agitação que dá corpo aos nossos protestos contra a sociedade em que vivemos. Tenhas sucesso na empresa que te propomos e ascenderás na hierarquia.

Jovem, sabes que professamos o desprendimento dos valores materiais (hum…para vocês, carne para canhão, que nós já comemos o pão que o diabo amassou e agora temos direito a usufruir de regalias materiais – mas não consintas que o adversário o saiba!). Não te garantimos remuneração pela militância na desobediência civil. Ficarás com a consolação de saber que dás um contributo inestimável para uma causa justa – aliás, “a” causa justa, que, como sabes, somos detentores da verdade absoluta. Ficarás alojado em pousadas de juventude, comerás comida macrobiótica de um dos nossos patrocinadores (será tempo para deixares esse hábito execrável de comer animais…). O acesso a drogas leves terá a nossa caução. Deves interiorizar um novo ascetismo em nome da causa colectiva que nos mobiliza.

Vem fazer o nosso curso de desobediência civil. Uma porta que se entreabre para uma vida só comprometida com os ideias justos que prossegues.

29.6.05

Sindicatos que não pertencem a este tempo

Se a memória não me atraiçoa, um fenómeno interessante repete-se ciclicamente: quando os socialistas abocanham o poder, cresce a contestação social. Para os devidos efeitos, convencionou-se que a contestação social espelha as manifestações de rua organizadas por uma central sindical correia de transmissão de um partido que não chega a representar 10% do eleitorado. Contestação social também é a expressão das greves que defendem os interesses de uns poucos, nem que para tal seja necessário sacrificar uma imensa maioria.

São os socialistas, uma vez instalados temporariamente no poder, que mais têm suportado o desconforto do vozeirão sindical. O que prova como se rompeu a linearidade do espectro direita-esquerda. Ao comparar os índices de contestação social em governos PSD e em governos PS, em teoria seria mais fácil assistir a representações extremadas de protesto com os primeiros. A prática mostra o contrário. Talvez sinal de que os comunistas arregimentados em torno da CGTP estão mais à vontade para morder as canelas dos socialistas, de quem estão teoricamente mais próximos. O assunto podia ser investigado por psicólogos, para descobrirem o complexo que domina esta relação tormentosa entre socialistas e comunistas. Avanço uma hipótese de trabalho: os primeiros desviaram-se da ortodoxia marxista, à qual os segundos ainda dedicam toda a sua fé. Esta é a sua heresia.

Ontem, mais manifestações de rua, com o condão de serem notícia de abertura em noticiários nocturnos. Desde há algumas semanas que a contestação social fala bem alto nas ruas, pela palavra de sindicalistas catequizados, com o beneplácito de políticos que se grudam às manifestações, numa osmose que não deixa perceber onde começa o sindicalista e termina o filiado no partido. Protestam contra as decisões do governo que ameaçam retirar privilégios exclusivos dos funcionários públicos. Pelo caminho, entoam palavras de ordem, cânticos ao jeito das hooliganescas claques de futebol. Ontem ouvi, numa repetição nauseabunda, chamar “mentirosos” aos membros do governo.

Num aspecto estou de acordo com os esmerados sindicalistas: este governo tem tomado decisões que são o contrário das promessas eleitorais que foram o cardápio para a sua eleição. Podemos acusar o governo de ser mentiroso, como fazem os sindicatos de inspiração comunista. Podemos contemporizar, como os apaniguados do partido da rosa, dizendo que a ruptura das promessas se deve ao legado dos governos anteriores. Seja qual for a fórmula, é verdade que o programa eleitoral que levou muitos cidadãos a votarem no PS está a ser incumprido. Mas não será este pormenor que mobiliza os sindicatos para o protesto ensurdecedor.

É intrigante como os protestos revelam uma face escondida que irmana socialistas e comunistas. Estes, sem o confessarem, acabam por se rever nas promessas que levaram o Eng. Sócrates à maioria absoluta. De outro modo, como entender que agora manifestem o seu incómodo, chamando mentirosos aos ministros que defraudaram as suas expectativas? Quem sabe se alguns deles, violando a sagrada disciplina partidária, não contribuiriam para a histórica maioria absoluta dos socialistas…

A essência da questão – porque protestam? Em defesa de regalias iníquas, que favorecem os trabalhadores que menos merecem. Apetece aplicar uma máxima do futebol: benefício do infractor. Esquecem-se que há pessoas que não têm a sorte de trabalhar na administração pública, para quem estas regalias são uma miragem. São os sindicatos, professando teorias que se dizem tributárias do valor supremo da “igualdade”, que na prática desmentem o valor. São economistas que trabalham nestes sindicatos que continuam a debitar uma cartilha económica anacrónica como instrumento de crítica às medidas de aperto orçamental que só pecam por serem escassas e por se enganaram no alvo prioritário (aumentar impostos, em vez de cortar a eito nas despesas).

Tenho que aperfeiçoar o espírito cínico que vai habitando em mim. Olho para este panorama e fico revoltado: pelo tempo de antena dado a sindicatos que representam uma minoria, ainda por cima parasitária; pelos disparates proferidos pela douta palavra de sindicalistas e seus gurus; pela condescendência geral, pois quem se opõe às ideias dos sindicatos arrisca-se a que lhe caia em cima o epíteto de “fascista”. Tenho que levar o cinismo ao máximo, para me rir, rir com gargalhadas sonoras com este espectáculo que lança um fogo-fátuo. E pensar: que continuem assim, os sindicatos. Que permaneçam imobilizados num tempo que pertence ao passado. Quanto mais teimarem em serem como sempre foram, menor a credibilidade, menos os adeptos (basta ver a faixa etária dos manifestantes…). Até que um dia o repto final surgirá pela frente: ou se modernizam e perdem o timbre demagógico e politizado, ou desaparecem.

28.6.05

A ditadura fiscal (o sigilo fiscal perdido)

É o desespero de causa. Quando se invoca o desespero de causa, a noção que se exige a solução final para resolver um problema. Tentou-se de tudo; e como os meios razoáveis se esgotaram, só resta a solução extrema. É aí que a ideia do desespero de causa emerge, como que a tentar justificar que o que à partida seria destituído de razoabilidade surja como a última instância utilizável para solucionar o problema.

Quando se discute a falta de sanidade das finanças públicas, o dedo aponta, invariavelmente, para o lado das receitas. A acusação dirige-se ao contribuinte relapso que não hesita em fugir às suas obrigações. A evasão fiscal é, na opinião maioritária, a grande culpada do desequilíbrio estrutural das contas públicas. Poucos desviam o olhar para o descalabro despesista do Estado-monstro. É a estafada lógica das “despesas rígidas”: diz-se que mais de 80% das despesas são intocáveis, argumento auto-blindado que faz dessas despesas uma matéria tabu, indiscutível. Sendo indiscutível, afina-se a mira para as receitas. Das duas uma: ou se aumentam os impostos; ou se agravam as medidas de combate à fraude fiscal, para impedir que muitos continuem a escapar ao pagamento dos impostos. (Ou as duas medidas ao mesmo tempo.)

A mais recente novidade é a diluição do sigilo fiscal. Já não bastava o levantamento do sigilo bancário, agora é possível que qualquer pessoa se desloque a uma repartição de finanças e exija a um zeloso funcionário a consulta de declarações de rendimentos alheias. É a instituição da devassa fiscal. De acordo com a lógica de quem pensou a medida, acredita-se que ela funciona como um elemento de pressão para os que fogem aos impostos. Estas pessoas vão andar com o fel do medo a povoar a existência, sabendo que não pagaram impostos na quantia exacta e que podem ser denunciados por um consciente cidadão que investigue declarações de impostos alheias.

Para os que aceitam a lógica de que os meios compensam os fins – coisa que abunda na ética de duvidoso recorte que se instalou – a medida é compreensível. Convivem, sem problemas, com a intrusão em dados que devem fazem parte da privacidade de cada um. Ironia do destino: quando tanto se reforçam as garantias de privacidade dos dados pessoais, com legislação detalhada a garantir tais direitos, abre-se um rombo no princípio para permitir a violação dos dados fiscais de cada pessoa. Como sou daqueles que põe acima dos objectivos os meios utilizados, suspeito que o levantamento do sigilo fiscal é um perigoso precedente. Não só pela incoerência de contrariar a maré da inviolabilidade de dados pessoais, mas pelas consequências mais profundas que se adivinham.

A possibilidade de consultar declarações de rendimentos é um maná para os invejosos de serviço, para os cultores da mediocridade. A abundância material do vizinho causa invejas que perturbam o espírito dos invejosos. Como não são capazes de chegar aos mesmos índices de bem-estar, os medíocres suspeitam da proveniência da abundância material do vizinho. Os boatos têm terreno fértil para prosperar. Agora que o sigilo fiscal foi destruído, os invejosos têm o caminho desbravado para investigar a ostentação do vizinho. O outro lado da moeda aparece com nitidez: a inveja leva à delação, quando os invejosos de serviço concluírem que algo não bate certo entre a declaração de rendimentos e os sinais exteriores de riqueza do “investigado”. É a nova PIDE, especializada em prestar informações relativas aos infractores fiscais.

Com esta brilhante medida, teremos metade do país afadigado a investigar a situação fiscal da outra metade (desperdiçando tempo valioso que podia ser um contributo para a produtividade nacional…). As denúncias hão-de crescer a um ritmo exponencial. É um excelente negócio para o Estado: não tem que reforçar o quadro de fiscais de impostos, já que terá ao seu serviço uma horda de invejosos dispostos a fazer o serviço gratuitamente. Esta é a ditadura fiscal que se prepara para avançar contra todos nós – sim, ninguém está livre de ver a sua situação fiscal devassada por um maníaco que vá consultar a nossa declaração de rendimentos; e ninguém se livra de denúncias, mesmo que os deveres fiscais estejam a ser cumpridos com um custoso escrúpulo.

É a bufaria do antigamente, reconvertida às novas exigências da “democracia fiscal”. Que se traveste de ditadura: não basta estarmos cercados de impostos por todos os lados (tendência reforçada pelas medidas aprovadas pelo governo para combater o desequilíbrio do orçamento); junta-se, agora, uma rede de voluntariosos espiões fiscais com as denúncias que trazem surpresas desagradáveis. É indigno. Espera-se que as consciências que sempre se inquietaram com a lógica de delação do Estado Novo denunciem a sua feição moderna, corporizada na quebra do sigilo fiscal.

27.6.05

As forças armadas dispensáveis

Foi no sábado, mais um momento de exaltação patriótica: o dia das forças armadas (ou coisa que o valha). Como os cofres públicos estão à míngua, foram parcos e modestos os festejos militares. Os aviões nem sequer levantaram voo para as habituais acrobacias. Para desgosto das hormonas aos pulos dos seus pilotos e para infelicidade das patentes da força aérea, sempre na linha da frente para mostrar a “riqueza de meios”.

Como os cofres do Estado têm os tostões contados, o ministro da tutela teve o discurso pedagógico que se impõe. O discurso da racionalização de meios. A contenção de custos, que já tinha chegado às forças armadas há algum tempo, tem agora nova arremetida. É o país de tanga, agora embuçado por um mais estreito fio dental que deixa quase tudo à mostra…

Na lógica de racionalização de meios e de custos, o ministro da defesa lá concedeu, qual rebuçado para adoçar as bocas dos militares, que as forças armadas ainda têm um papel activo na defesa da independência nacional. A fórmula escolhida não foi a mais feliz. Metendo a seara em foice alheia, o ministro da defesa dissertou sobre a crise orçamental que obriga o governo a fazer tábua rasa das suas promessas eleitorais. No apogeu do discurso pedagógico, o governante sentenciou: a manter-se a crise das contas públicas, é a independência nacional que está em causa. A ambiguidade foi esclarecida com mais ambiguidade, quando veio dizer que estava a falar em sentido figurado!

Ouvi isto em viagem de regresso a casa, depois de uma semana a descansar os neurónios. Em pleno Ribatejo, na monotonia da paisagem e de uma auto-estrada que convida a velocidades proibidas pela sanha persecutória do código da estrada, deitei-me a imaginar o que seria de nós se um belo dia um governante perspicaz decidisse saldar as forças armadas. O momento de fechar as portas para balanço. O governante ideal (que, por o ser, não existe) teria chegado à brilhante conclusão que as forças armadas são um sorvedouro de dinheiro sem que ofereçam contrapartidas que se vejam. Até porque os tempos são outros. De desanuviamento mundial, sem os perigos passados que punham em causa essa vaca sagrada – a soberania, a independência nacional.

O governante ideal teria tentado reconverter as forças armadas a exercícios com alguma utilidade. Esbarrara no orgulho másculo, nas tradições arreigadas de belicismo anacrónico. Não restou outra opção senão colocar as forças armadas à beira do precipício. O governante esforçara-se por mobilizar as forças armadas para actividades úteis. Por exemplo, tirar as tropas dos quartéis, onde passam largo tempo a brincar às guerras, a beber cerveja, em concursos de boçalidade, a consumir avidamente revistas pornográficas. Mandá-las para as florestas, para a limpeza de matas, na prevenção dos fogos de que tanto se fala e que, ano após ano, fica sempre por cumprir. Mandá-las para as florestas, combatendo os fogos. Os meios da força aérea seriam reconvertidos para o auxílio ao apagamento dos fogos.

Um esboço para tentar dar alguma “utilidade social” às forças armadas, um esforço último para a sua sobrevivência. Os militares, remetidos ao reduto das casernas – esse mundo absurdo, enquistado numa caverna desfasada dos tempos que correm –, ter-se-iam recusado. Consideravam humilhantes as novas tarefas. Irredutíveis, lavraram pelo seu punho a sua extinção. Para bem das contas públicas. O erário público agradeceria a folga dada pela desobrigação de verter dinheiro a rodos para umas forças armadas destituídas de utilidade.

Apetece especular: imaginar o que aconteceria se um dia acordássemos e já não houvesse forças armadas – nenhum dos ramos. Dizem os costumes, teríamos a independência nacional em risco. Alguém acredita que, na ausência de forças armadas, os espanhóis – ou outro país – nos invadissem com os seus meios bélicos? Mesmo a marinha, agora fadada para a vigilância marítima, para acções que tentam impedir a criminalidade económica que chega por mar, parece desnecessária. Na semana passada foi encontrada uma lancha recheada de estupefacientes vários, encalhada em Caminha. Quem a detectou não foi a marinha, mais os seus “meios sofisticados”. Foi um pescador amador.

Eis como fica provado que a iniciativa privada se substitui, com eficácia, aos meios do Estado. Com a vantagem que se poupa muito, muito dinheiro. E quando se menciona a poupança de recursos ao erário público, estamos a falar da possibilidade (sublinhe-se, possibilidade) de pagar menos impostos. O nirvana!

24.6.05

O estigma de Carrilho

“Quem não quer ser cordeiro não lhe veste a pele”. Um adágio popular, no espírito de contradição da figura de Manuel Maria Carrilho. Investido na condição de máximo expoente da elite intelectual, deve vituperar adágios populares. Nisso estou de acordo com ele. Mas como hoje é dia de S. João, e na festa do povo se convencionou que o povo há-de ter sempre razão (pelo menos quando convém…), lembrei-me daquele ditado popular para reflectir o dilema existencial do filósofo Carrilho que se decidiu travestir em político.

Conta a tradição que no dia de S. João se fazia a chacina de cordeiros, para gáudio da horda que via na degustação do animal um traço simbólico das festividades. Em Carrilho vejo a mesma chacina, auto-infligida, é certo. Foi Carrilho que quis vestir a pele de cordeiro. Foi ele que se foi pondo a jeito da devassa, do chiste, da paradoxal imagem que cultiva – aquela aura de ser bem pensante, na vanguarda do bom gosto, mas ao mesmo tempo prenhe de clichés que o colocam no universo do kitsch. Carrilho era um académico reputado. Tinha atingido a cátedra, o topo da carreira académica, ainda jovem para os padrões actuais e para o contexto da carreira. Quis penetrar o universo da política, dando azo a ambições irreprimíveis. Está no seu direito. Ao fazê-lo, passou para o terreno do mediatismo. Expôs-se aos olhares curiosos que adejam a classe política. Quis vestir a pele do cordeiro, e agora anda a ser tosquiado. E tanto se pode sair bem (se ganhar a corrida para a câmara de Lisboa), como ser degolado (se perder, pondo fim a uma “promissora” carreira política).

Carrilho é daqueles políticos que não esconde as ambições vastas que povoam o seu espírito. Nada me move contra pessoas ambiciosas. É sinal de vitalidade, portas entreabertas a espíritos inventivos benéficos para os próprios e para a colectividade. Exaspera-me, isso sim, os que vivem presos aos excessos de ambição e se deixam inebriar pelo perfume da inevitabilidade da sua pessoa. Reproduzem o mundo com o fiel da sua lente: sem eles o mundo é banal; com o seu inestimável contributo, o mundo é um lugar melhor para se viver. São os eleitos de uma gesta de privilegiados fadados para o império do poder. Ainda que tenham que espezinhar os que se atravessam no caminho e ousam desafiá-los. É aqui que o perigo entra em rota de colisão com estas personalidades: não hesitam em recorrer a todos os meios para atingir os fins.

No lançamento da candidatura de Carrilho à autarquia de Lisboa, um filme patético deu brado: a consorte e o rebento apareciam, numa espécie de vídeo familiar, dando provas do previsível – o apoio ao “chefe de família”. Até o pequeno infante, ainda a desbravar o fascinante reino das palavras, já soube esboçar “papá” quando a mediática consorte o interrogou sobre o melhor candidato à câmara de Lisboa. Patético e piroso, para dizer o mínimo. E por mais que os apoiantes da figura (e o próprio, pelo seu punho) tenham tentando lavar a face do candidato, esgrimindo argumentos que tornam aceitável o aproveitamento do meio familiar como arma de campanha, não fico convencido.

Do alto da sua sabedoria, Carrilho e apaniguados esforçam-se por ir ao baú das recordações e mostram como outros políticos se rodearam da família em acções de campanha. Falham o alvo. Os candidatos estão no direito de decidir se devem expor a família ou não. Mas quando tentam passar a mensagem de que até uma criança com pouco mais de um ano apoia a candidatura do pai, passa-se do enternecedor para o absurdo. Entramos no campo da manipulação pura e dura, mostrando que quem o faz não olha a meios para atingir os objectivos. No caso, o vídeo é um instrumento de uma estratégia de “política cor-de-rosa”, como se fosse importante cativar as preferências dos eleitores dados aos aspectos mundanos da vida. Como se fossem os aspectos cor-de-rosa da vida do candidato a afirmar a qualidade do seu projecto. É o nivelamento por baixo, vindo de alguém entretido com o culto da personalidade, na vereda percorrida para mais alto voos (alguém se convence que Carrilho quer ficar pela câmara de Lisboa?).

Na memória guardo as palavras ditas num discurso solene, em Inglaterra, por um adepto dos servidores da causa pública. O orador aplaudia a coragem dos que se expõem perante os olhares indiscretos do público. A sua tenacidade era elogiada, porque há a necessidade de alguém se sacrificar quando se coloca ao serviço do público. Nos dias que correm, o preço mais elevado a pagar é a exposição pública, quantas vezes a devassa da vida pessoal, a perda desse bem tão valioso chamado anonimato. Eu não tenho uma visão tão romantizada. Não vejo os servidores da causa pública como ascetas que abdicam da sua vida. Antes, pessoas que através do serviço público servem interesses privados – os seus e do séquito adjacente. Para alguns, a exposição pública não é uma maleita. É o afago supremo de um ego que vai além da existência pessoal.

Lembro-me, outra vez, do elogio solene aos devotos servidores da causa pública. Fosse tão ingénuo como o orador e apetecia perguntar: o que leva Carrilho, afamado académico, reputação irrepreensível, a prescindir da tranquilidade da vida de académico numa transferência para o bulício da vida política? Que cálculos terá feito para concluir que é compensadora a troca de uma vida sossegada por outra em que é alvo constante da chacota, da perda do valioso bem que é andar na rua sem ser reconhecido?

(Em Vilamoura)

23.6.05

Japoneses desengravatados em nome do ambiente

Umas vezes são notícia pela bizarria. Outras vezes pelo exemplo que legam. Os japoneses, desta vez, inovaram nos costumes. Alteraram-nos em homenagem ao meio ambiente que se degrada a cada dia que passa, fruto de agressões com têm múltiplas origens. Foi o primeiro-ministro que tomou a iniciativa de aparecer sem gravata. Passando a mensagem: os homens sem gravata aclimatizam-se melhor a um ambiente de trabalho dois ou três graus mais quente. Dispensam-se aparelhos de ar condicionado que gastam tanta energia a refrescar as salas onde os japoneses trabalham. Com a poupança de energia, os cálculos dos especialistas apontam para um impacto notável na melhoria do meio ambiente.

Depois do primeiro-ministro ter aparecido perante as câmaras da televisão em mangas de camisa e com as fraldas de fora, foi a vez dos executivos das principais empresas seguirem as pisadas. Desconheço o sucesso da iniciativa. Retenho estas imagens na memória, captadas há largas semanas. Entretanto foi o silêncio. Quando o ruído devia prosseguir, para sabermos se as intenções se ficaram por isso mesmo, intenções. Ou se a original iniciativa foi levada para a frente, fazendo com que o quotidiano estival dos políticos, empresários e de tantos trabalhadores que trajam fato e gravata seja agora ausente do adereço que aperta o gargalo e asfixia quando o tempo tépido caustica os corpos.

A iniciativa pôs-me a pensar: só se fala do seu impacto no sexo masculino, uma forma sexista de ver as coisas, tanto mais que o calor afecta os homens como as mulheres. Eis como a defesa do meio ambiente, vanguarda das causas politicamente correctas, choca de frente contra outro domínio do pensamento politicamente correcto – a discriminação positiva em favor das mulheres. É verdade que não são elas que suportam o fardo da gravata. Elas podem trajar roupas ligeiras, enfrentando a canícula com mais à vontade. O que seria suficiente para concluir que a medida não encerra discriminação sexista. E que o calor é atributo de uma desigualdade que atinge os homens que por convenção usam gravata. Os elementos da natureza ao serviço dos interesses que querem impor por decreto uma igualdade forçada dos sexos.

As fundamentalistas do feminismo não ficariam satisfeitas com o raciocínio. Desconfortáveis com a cobertura do direito natural, as militantes feministas teriam motivos para clamar por um tratamento preferencial que caucionasse uma desigualdade em seu favor. Se aos homens é garantida a faculdade de remeter as gravatas para o fundo do armário enquanto durar a canícula estival, exigir-se-ia que as mulheres pudessem virem trabalhar com roupas ainda mais aligeiradas.

Mas eis que na dobra da esquina outro engulho estaria à espreita: o terrível sexismo também é feito de assédio sexual que campeia no mundo profissional, para não dizer fora dele, nas ruas, nos corredores do metro de Tóquio. E conceder o direito a trajar roupas ligeiras às pequenas japonesas teria o impacto telúrico de perturbar a atenção dos homens, mais atentos a olhar de soslaio para a colega com mais pedaços do corpo à mostra, com consequências negativas na sagrada produtividade. Já para não mencionar o incómodo que as mulheres sentiriam, ao passearem pelas ruas nos seus corpos semi-desnudados, alvos de olhares indiscretos e de dislates proferidos por homens com as hormonas emproadas. Há medidas cujas consequências acabam por se virar contra os nobres propósitos que elas contêm…

Este é mais um exemplo de como a economia e o ambiente são conflituantes. É dos manuais: é normal que a defesa do meio ambiente tenha um impacto negativo sobre a economia, da mesma forma que uma visão economicista agride a preservação do ambiente. Com o exemplo vindo do Japão, a lição é a mesma. Por um lado, porque a extensão da medida às mulheres (para não pesar a acusação de desigualdade sexista) teria o condão de distrair os seus colegas masculinos do trabalho, com os olhares desviados para as tentações carnais que se passeiam ali mesmo ao lado. Por outro lado, porque a emancipação da gravata não é sinónimo de mais produtividade do trabalho. O calor continua presente – aliás, ainda mais, pois os aparelhos de ar condicionado estão afinados para temperaturas mais elevadas, logo mais desconfortáveis para a execução das tarefas.

A medida é boa para o ambiente, má para a economia. Sinal do dilema que o mundo moderno enfrenta: o que é mais importante – ambiente ou economia?

(Em Vilamoura)

22.6.05

Vai trabalhar, malandro

Têm sido as estrelas da actualidade. O Sr. Sucena, o Sr. Dias da Silva, outros senhores e senhoras dos sindicatos de professores. Parecem inquinados com o que chamaria “vírus Carrilho”: aparecem como sacerdotes da verdade, pairando com a sua brilhante intelectualidade acima do cidadão comum. Com o estatuto avantajado, arrogam-se ao direito de difundir as informações mais estapafúrdias que se pode imaginar, acreditando piamente no que dizem. De caminho, fazem de parvos todos os que escutam as suas palavras.

Os senhores destes sindicatos decidiram defender os privilégios da classe. É compreensível que o façam. Primeiro, esse é o papel que os representados deles esperam. Já que estão dispensados da leccionação para se ocuparem da extenuante tarefa de defender os direitos e regalias dos professores que ensinam as criancinhas, o mínimo que se lhes exige é que sejam zelosos quando um governo ameace beliscar privilégios. Segundo, os preceitos da politização obrigam ao conflito social. Para que os militantes de um partido cada vez mais marginal não se esqueçam que o partido vai caindo no vazio. Não chega a actividade partidária, com menos visibilidade do que em tempos áureos. Os sindicatos são o prolongamento dessa actividade. Terceiro, estes sindicalistas que aparecem, ululantes, espingardando contra “esta” (sic) ministra da educação, temem que algum dia as regalias cessadas atinjam as suas pessoas. É o pesadelo mais terrível que os pode assaltar: a eventualidade de terem que regressar aos bancos da escola, para ensinarem, e mal, as crianças que por lá passam.

Sindicalistas deste calibre causam-se uma indisfarçável alergia. Um preconceito toma conta de mim: de cada vez que vêm protestar, reivindicar, anunciar a legitimidade de greves, uma centelha diz-me que a verdade se encontra algures, não nas suas palavras envenenadas. Ontem, depois de mais um dia de greve aos exames, o Sr. Sucena, enervado, tentou explicar às massas duas coisas que só a desonestidade intelectual capacita. Que esta foi a maior greve dos últimos quinze anos. Pena que os números sejam flagrantes no desmentido: de mais de 67.000 alunos, apenas 7 (sete) não conseguiram fazer exames. Logo de seguida, veio falar de uma adesão à greve de 70% (o que, para os números que os sindicatos costumam atirar cá para fora, é uma percentagem escassa, o insucesso da greve). Depois tentou convencer os cidadãos que ainda se dão ao trabalho de o ouvir que a greve “coincidiu” com os exames, que o objectivo não era afectar a realização dos exames. O governo não tinha dado outra oportunidade para calendarizar a paralisação. O Sr. Sucena deve-nos tomar por pacóvios, ou por inocentes obrigados a dar como verdadeiras as palavras que se soltam da sua cartilha…

O ritual enervado destes sindicalistas causa-me náuseas. Montam “quartel-general”, agarram-se ao telemóvel no desassossego de ouvir a boa nova espalhada pelas escolas de norte a sul. Na ânsia de saber que foram muitos os professores que aderiram à greve. Sem se preocuparem com os efeitos da greve. Que interessa que milhares de alunos possam ser afectados num momento tão crítico? Que respeito mostram pelo nervosismo dos alunos, pelo stress que deles se apodera nesta ocasião? Nada de novo: afinal, para estes sindicatos, vinga a ideia de que o sector da educação existe para que os meninos que respeitam os preceitos da escolaridade obrigatória se ponham ao serviço dos extremosos professores. Não são os professores que estão ao serviço dos alunos, antes o contrário. Corrompido sistema educativo, este em que os sindicatos teimam em assumir um protagonismo desproporcionado.

A indigestão prosseguiu. Ao ver a encenação patética do Sr. Sucena a meter um cigarro à boca, terminando um jejum fumador de quinze anos, para revolta de uma dedicada apoiante que lançou a farpa venenosa: “foi preciso esta ministra para o pôr a fumar”. Estamos todos solidários com a dor do Sr. Sucena…Finalizando com a teatralidade obscena de outro sindicalista que apareceu (o Sr. Sucena devia estar muito ocupado a ocorrer a outras solicitações) a ensaiar uma justificação para tão poucos alunos terem sido afectados, sem que isso prejudicasse o sucesso da greve. Com desplante, disse que foram professores sem qualificação (os da informática, “que nem sequer fazem parte do quadro” e os “professores novinhos, com receio de represálias”) que asseguraram as vigilâncias. Registe-se mais um laivo de desonestidade intelectual: não era necessário apoucar os professores de informática, afinal seus colegas de magistério; e, que se saiba, não são necessárias qualificações do outro mundo para vigiar um exame.

Vejo estas criaturas que deambulam na arte da ociosidade. E só me apetece dizer a cada um: vai trabalhar, malandro!

(Em Vilamoura)

21.6.05

Quinze anos mudam muita coisa

O tempo é balsâmico. Soberano de si mesmo, nele germina a mudança. Com os ponteiros do relógio que batem sem cessar, sedimentam-se as alterações que fazem de nós pessoas diferentes das que conhecemos outrora. A amplitude da transfiguração varia. Mas tenho a impressão que o fenómeno toca a todos, mesmo aos que, orgulhosos, querem mostrar resistência à erosão do tempo.

Há momentos em que se exige um mergulho no passado, numa viagem pelo empoeirado livro das recordações assimiladas. Para fazer um balanço do que mudou com o hiato decorrido. Foi assim que me lembrei da passagem de ano de 1982 para 1983 (se a memória não me atraiçoa). Uma das mais bizarras passagens de ano de que me recordo. Eram anos de efervescência na música moderna portuguesa. Começavam a gotejar novos grupos, novas sonoridades, uma tentativa para partilhar o código genético de novas vagas musicais que percorriam o mundo, com a inspiração dominante da música anglo-saxónica. Os UHF eram figura emblemática da nova corrente musical. Naqueles anos consumia UHF com avidez. Com o entusiasmo próprio da adolescência, os ouvidos não se cansavam de escutar pela enésima vez o vinil dos UHF, que se ia desgastando com a insistência.

Corria o Dezembro já avançado quando um amigo, também cultor dos UHF, me disse que o grupo vinha fazer um concerto ao vivo no Porto. Convém esclarecer que nesses tempos escasseavam eventos do género. Não havia um mercado de espectáculos ao vivo no domínio da música moderna, como hoje acontece. Quando sabíamos de um destes espectáculos era como se nos dessem uma iguaria que só podíamos degustar a espaços. Daí a excitação. Havia um senão a vencer: o concerto dos UHF estava enquadrado no réveillon organizado pelo partido comunista, célula local. No pavilhão do Académico do Porto. Aliás, existia outro senão: a primeira parte era reservada a Paulo de Carvalho, “grande artista”.

Sendo então um anti-comunista primário, foi um enorme elefante que tive que engolir ao tomar a decisão de partilhar a passagem de ano com uma multidão de fiéis camaradas da causa comunista. Hesitei. Decidi abdicar das antipatias ideológicas, dando vencimento ao apelo que vinha do interior e que convocava o espírito para as sensações fortes da música ao vivo dos UHF. Numa escala de prioridades, essa era a determinante. Tão forte que bastava para suportar a companhia dos camaradas do partido comunista e a música inenarrável de Paulo de Carvalho.

Um salto no tempo, até 1997. A coincidência agendou um concerto ao vivo dos UHF para o Algarve, numa discoteca onde fui com um grupo de amigos, numa noite de Maio. Fomos apanhados de surpresa, já a banda estava em palco preparada para os primeiros acordes. Em contraste com o que tinha acontecido quinze anos antes, não era entusiasmo que se apoderava de mim. Apenas desconfiança de que o espectáculo ia ser uma lamentável exibição. Uns UHF desfigurados, de que apenas restava o resistente líder, um homem que devia ter a sensatez de perceber que a veia inspiradora já há muito o abandonou. Dez minutos mais tarde, ninguém – nem mesmo eu e o amigo que me tinha acompanhado naquela passagem de ano em finais de 1982 – conseguiu suportar a performance sem sal de uma banda moribunda.

Passamos pelo tempo com a marca indelével do que somos. O tempo, esse, vai desgastando as pedras que calçamos. Fazendo de nós pessoas diferentes. Os anos acumulados são o património da mudança que toma conta do horizonte. Muda-nos, na convenção estabelecida que vamos crescendo com o tempo que prossegue a sua marcha imparável. E nesse tempo muita coisa se transforma, o que acalenta ainda mais o terreno da mudança. Sobretudo quando por entre os escombros do tempo, há transformações que caminham em sentidos divergentes. Uma atrela-se à outra fazendo extremar os riscos da mudança. São encruzilhadas que apartam as pessoas por caminhos que contêm os seus opostos. Aos mistérios do tempo, reservada a chave que guarda o segredo: haverá um momento em que os caminhos divergentes se voltam a tocar?

(Em Vilamoura)

20.6.05

A cleptocracia angolana

Imagens de luxo abundante. De damas ostentando as suas vestidos refulgentes, compridos, lantejoulas que brilham sob os holofotes. Respigam a sua grandiosidade no testemunho das etiquetas de afamados costureiros. Os maridos, aperaltados na fatiota ocidental, aparentam mais discrição. Todos se reúnem à volta da mesa, num clube farto em Luanda. Na companhia de duas estrelas do futebol mundial. Apadrinham uma iniciativa de uma “fundação” presidida pela senhora que esposou o ditador angolano. Diz a notícia, uma “fundação” para apoiar os mais carenciados.

O altruísmo é sempre de enaltecer. Ainda mais quando os actos de altruísmo revelam a intenção de ajudar os mais pobres. Altruísmo condoído pelas dores de consciência dos abastados angolanos que fizeram fortuna à sombra de um regime corrompido. Pobres não faltam por aquelas terras de abundância. O problema é a riqueza estar tão mal distribuída. É nestes momentos que me enternecem as análises eruditas dos detractores dessa coisa arrepiante chamada capitalismo. Sempre agarrados ao chavão de que 80% da riqueza é detida por apenas 20% da população. Sentenciam: a riqueza é distribuída de forma desigual, uma tremenda injustiça que mancha o capitalismo.

Pena que estes cultores da antítese do capitalismo (que não se chega a perceber bem que modelo alternativo sugerem) tenham uma visão de um sentido só. Só olham para os países mais ricos, onde o capitalismo atinge o seu expoente máximo. Esquecem-se de estender a sapiente análise a países que aparecem mais abaixo na escala, mas onde há abundância de recursos naturais apropriados por uma escassa elite. Esquecem-se de entrar pela realidade destas cleptocracias, onde as elites votam à escabrosa miséria toda uma população para quem a sobrevivência diária é o grande desafio a vencer.

Os adeptos da alter-globalização nada dizem das cleptocracias onde grassa uma miséria hedionda, onde a desproporção é mais acentuada. Em países como Angola não andará longe da verdade dizer que 99% da riqueza está nas mãos de 1% da população (se formos optimistas). O que é mais grave: uma distribuição iníqua, onde 80% das pessoas têm acesso apenas a 20% da riqueza, existindo casos de pobreza que não atingem a escala de sofrimento generalizado das cleptocracias africanas? Ou a perversão de concentrar quase toda a riqueza num escol de iluminados que a nomenclatura partidária ditou na escala de ascensão das influência e da apropriação de regalias?

É nas cleptocracias que ainda estão por satisfazer, em maior medida, necessidades essenciais para largas franjas dos cidadãos. É aí que campeia a miséria na sua face mais ignominiosa. É aí que se acobertam falsas democracias, reciclagens da queda do muro de Berlim, que exigiu operações de cosmética para a sobrevivência dos regimes cleptocráticos. Com o registo de outra diferença fundamental: nos países onde há capitalismo há um mercado aberto, pleno de oportunidades que estão acessíveis a quem tenha o engenho de transformar ideias em bem-estar. Nas cleptocracias o mercado é uma ficção. É o critério de pertença política (com o auxílio do critério familiar, em muitas casos) que cauciona o acesso às oportunidades. Com muita corrupção à mistura, que desvia ainda mais recursos para as mãos dos endinheirados e influentes membros da cúpula política.

Foi tocante ver as duas estrelas do futebol mundial patrocinarem, com o cunho da sua presença, a incitativa filantrópica da primeira-dama angolana. Sem saberem se é apenas uma forma de lavar uma ínfima percentagem do dinheiro sujo que o ditador angolano vai amealhando nas suas contas detidas em bancos suíços. Com o beneplácito da elite que se banqueteia à mesa do ditador que aumenta o seu pecúlio, nem que para isso continue a mergulhar o povo que governa no mais vergonhoso sofrimento.

Oxalá houvesse meio de sentar criaturas deste jaez no banco dos réus. Julgando-as por serem os primeiros responsáveis pela miséria que abunda nos países que lideram.

(Em Vilamoura)

19.6.05

Ausência

Por uma semana. Actualizações se houver cyber-cafés por perto. Ou na semana a seguir.

17.6.05

Direito de manifestação para a extrema-direita?

A extrema-direita marcou uma manifestação para protestar contra a política de imigração. Depois do arrastão de Carcavelos, o auge de uma série de actos de criminalidade perpetrados por negros com problemas de assimilação, a extrema-direita reitera uma das suas bandeiras de campanha. Querem repatriar os imigrantes para os países de origem, numa espécie de limpeza étnica de lamentáveis contornos. Estão no exercício do seu direito de opinião. Ir contra este direito é crime que lesa preceitos democráticos.

A manifestação está marcada para domingo. Ao longo da semana, a comunicação social foi dando notícias que começaram a preparar o alvoroço. É curiosa a reacção do sistema instalado às tentativas de afirmação da extrema-direita caseira. Os mais radicais vedam o direito de opinião e de manifestação aos grupelhos de extrema-direita. Alegam que estes movimentos negam a essência da democracia. A democracia não pode conviver com movimentos que querem a sua destruição. Outros sectores, mais moderados, fingem que toleram a extrema-direita. Não declaram com frontalidade a discordância com o direito de associação destes extremistas. No entanto, passam para o exterior o fantasma da extrema-direita. A retórica é a conhecida: são movimentos intolerantes e que cultivam a violência. Quando se reúnem, há violência atrelada à expressão de pontos de vista destes grupos que vivem na margem da sociedade.

Perguntam-me: estás de acordo com o motivo da manifestação? Eras capaz de desfilar ao lado da extrema-direita (por esta ou por qualquer outra razão)? À última pergunta diria que não, por uma questão de pudor. Sou incapaz de mover os ossos para qualquer manifestação pública, por mais que me identifique com o móbil da reunião. À primeira pergunta respondo também que não. Em questões de imigração tenho uma opinião diametralmente oposta à da extrema-direita. Não vejo nos imigrantes, nos esforços que alguns fazem para se integrarem, mesmo na teimosia de outros para viverem alheados dos costumes nativos, razões para a “decadência de costumes” que parece corromper a sociedade contemporânea. Em vez de se atirar o odioso da questão para os estrangeiros que connosco convivem, melhor seria olhar para o próprio umbigo. Os nativos, os expoentes da portugalidade lamentável, são os primeiros culpados do estado a que chegámos. Negar isto é hipocrisia.

Não me revendo nos motivos que levam a extrema-direita a desfilar pelo Martim Moniz, não concordo com o alarido que se instalou. Seja pela oposição declarada, seja pelo método requintado dos que não têm coragem para dizer que estão contra o direito de manifestação da extrema-direita, o alvoroço e o bramido que acamparam são nefastos para a democracia em que dizemos viver. Bastaria pegar na essência dos valores democráticos. Bastaria respigar o valor supremo da tolerância pelas ideias dos que se nos opõem para aceitar que a extrema-direita – ainda que cultive valores anti-democráticos – se possa reunir, possa expor as suas opiniões, enfim, possa existir. Relembrar o que é a democracia seria suficiente para matar a discussão estéril sobre os direitos que devem ou não ser garantidos à extrema-direita.

Como se isso não fosse suficiente, podia-se desviar o olhar para a desigualdade de tratamento que favorece sectores situados na outra extremidade do espectro político. É grande a tolerância em relação às franjas da esquerda que afirmam, com despudor, princípios que fazem tábua rasa da tolerância pelo outro, do respeito pela diversidade de ideologias. Na semana em que o grande timoneiro do partido comunista morreu, testemunhei inúmeros ensaios de branqueamento da história, num exercício com laivos de deificação de alguém que sempre teve uma postura ortodoxa na defesa das atrocidades cometidas pelo regime inspirador de Moscovo.

Uma democracia que trata desigualmente iguais é uma democracia fracassada, abortada, enviesada. Decerto ainda paira o estigma da ditadura do Estado Novo, a fonte de inspiração dos movimentos de extrema-direita que tentam emergir à superfície. Será a razão que incomoda as consciências bem pensantes e que as leva a extremar posições que raiam a intolerância em relação à extrema-direita. Pena que a intolerância – sobretudo dos que são mais moderados no tratamento desigual – não estenda a sua mira a quem, da outra extremidade, não tem vergonha em negar valores caros à democracia.

Esta desigualdade de tratamento é incompreensível. Mais ainda porque quem tem assento parlamentar, quem pode minar por dentro a democracia, são os sectores comunistas e trotskistas. Não a extrema-direita que tem uma expressão insignificante.

16.6.05

“Não tenho o cartão de eleitor na carteira e nem quero saber onde o guardei”

Cenário: um inquérito de opinião feito na rua por um canal de televisão. As pessoas eram sondadas acerca da Constituição europeia. Perguntava-se-lhes se estavam ao corrente da Constituição. E depois eram inquiridas acerca do sentido de voto, caso o prometido referendo venha a ter lugar. Um idoso saiu-se com a resposta que intitula este texto. Um velho amargurado, a raiva a espumar entre os dentes a cada palavra que se soltava no ardor da emoção de quem está insatisfeito com o país onde vive. Uma daquelas pessoas que iria misturar alhos com bugalhos na consulta referendária: às perguntas que lhe faziam sobre a Constituição europeia, destilava o descontentamento com a classe política caseira, tecia loas aos tempos do antigamente salazarista.

Não é a confusão mental que invade a cabeça dos eleitores que me traz à escrita hoje. É o simbolismo da última frase proferida por aquele popular: “olhe menina, já não trago o cartão de eleitor na carteira e nem quero saber onde o guardei”. Confessada a abstencionista condição da pessoa, imagino uma carrada de seres bem pensantes, desde representantes da classe política a lídimos cultores da virtude do voto, a abanarem a cabeça em sinal de desaprovação. Os primeiros, enterrando a cabeça na areia, quais avestruzes, persistindo no erro de quem não vê que são eles, com a falta de credibilidade e a desconfiança que geram, que têm afastado mais eleitores das mesas de voto. Os segundos, no opróbrio ao abstencionista militante, tecendo as teorias que censuram com aspereza aqueles que teimam em se ausentar do dever de voto.

Votar é um dever como é um direito. Um direito que não pode ser vedado aos maiores de idade, um dever que convoca a consciência individual. Ouvi a frase do patusco idoso e fui assaltado pela recordação de um episódio que ocorreu há quase três anos. Estava em Belfast, para participar num congresso. No final do primeiro dia, ao jantar, uma animada discussão com meia dúzia de congressistas. À minha frente, dois jovens ingleses. Depois de saberem a minha nacionalidade, ambos quiseram brilhar desfiando os vastos conhecimentos acerca da realidade política lusitana. Informação que a leitura de um jornal britânico preocupado com a actualidade mundial é capaz de dar aos leitores. Os jovens lá prosseguiram com a sua sapiência: sabiam o nome do primeiro-ministro, sabiam que Guterres tinha abdicado do governo porque o seu partido tinha sido derrotado nas eleições autárquicas, e afirmaram que na coligação entre o PSD e o CDS-PP uma das cabeças pensantes era um tal Portas, “um indivíduo de extrema-direita”.

Comecei a perceber que os jovens estavam catequizados ideologicamente. Procurei saber o que faziam na vida. Para além da investigação universitária, ambos estavam empenhados na militância partidária: partido trabalhista. Adeptos de Tony Blair, da “terceira via”, da inevitabilidade de uma sociedade social-democrática, desígnio a que o ser humano não pode escapar. Os meus interlocutores eram entusiásticos defensores das ideias de Anthony Giddens, o guru espiritual da “terceira via”. Ele não estava tão empenhado na militância partidária como ela. A jovem expôs de imediato a sua declaração de interesses: tinha responsabilidades partidárias. No dia seguinte percebi, depois de ouvir a sua comunicação, que estava ali para defender as posições do governo Blair no contexto da União Europeia.

Fingindo-me inocente, perguntei-lhes se tinham a certeza que Portas era um tenebroso expoente da extrema-direita. Nem pestanejaram. A famosa cassete que distinguiu os nossos compatriotas comunistas tem versões mais requintadas, menos dadas à visibilidade, entre os sociais-democratas ingleses. Esses que se gabam de serem os campeões da tolerância, mas acabam por cair no alçapão das verdades incontestáveis que exibem uma discreta intolerância. Os jovens tentaram sacar a minha filiação ideológica. Apenas lhes disse que era um abstencionista militante. O que fui confessar! Ela insurgiu-se, indignada, não percebendo como há “pessoas instruídas” que desperdiçam o voto. Como é possível manter-me à margem do processo político, abdicando do direito de voto – inquiriu, estarrecida.

O caldo estava entornado. Perante a impertinência da aspirante, devolvi a pergunta: “como se sentira se lhe perguntasse porque vota nos trabalhistas?” Foi o final da conversa, por iniciativa dela, suponho por considerar a minha pergunta inadmissível. Entretanto as conversas prosseguiram, cruzadas. Enquanto falava com alguém à minha direita, consegui perceber a indignação que ainda percorria a jovem. Incomodada, perguntava a quem estava ao seu lado como era possível alguém, neste mundo moderno, teimar na abstenção.

É nestas ocasiões, sobretudo nestas ocasiões, que refino a queda pela abstenção. Para além das motivações íntimas que concorrem para a abstenção sistemática, a tendência acentua-se por um espírito de contradição que se apodera de mim quando sou confrontado por estes senhores da verdade que não conseguem compreender porque me abstenho. Eles são incapazes de perceber duas coisas: que eles não aceitariam ser questionados sobre as suas opções eleitorais, pois pertencem ao domínio da vontade individual que não merece contestação; e que o voto é um direito antes de ser um dever.

Enquanto a abstenção não for punida com multa, como na Bélgica e na Austrália (que eu conheça), e enquanto o panorama político nacional persistir na mediocridade que se conhece, manter-me-ei abstencionista. Como o popular entrevistado na televisão, também não sei onde está o meu cartão de eleitor.

15.6.05

Fez-se justiça? (Na ilibação de Michael Jackson)

Nunca pensei algum dia escrever sobre Michael Jackson. É artista que está nos antípodas das minhas preferências musicais. Como se isso não bastasse, destila estranhos tiques, manias inconsequentes, sinais de esquizofrenia que o elevam ao estatuto da anormalidade. As suas patéticas excentricidades colocam-no no pedestal do risível. Será um produto do marketing que amarra um séquito de fiéis seguidores que deliram religiosamente com os discos que o outrora negro publica. E há essa aberração da natureza que é conhecer alguém que mudou de cor, numa espécie de racismo ao contrário.

Nunca pensei que pudesse elaborar o raciocínio que se segue sobre os problemas que Jackson viveu com a justiça. Confesso um preconceito pessoal: pelo que Jackson é, não me move simpatia. Quando rebentou o escândalo que o levou a sentar o rabo no banco dos réus, no meu íntimo cresceu a convicção: “claro que ele é culpado”. Era, como direi, um malvado desejo de o ver a contas com a justiça, a responder no tribunal perante os crimes de que acusado, e que tudo culminasse com a ida para a prisão. A antipatia pessoal levou-me à desfocagem da realidade. Em bom rigor, que conhecimento de causa tinha para formar a convicção de que Jackson era culpado? Daí o preconceito que confesso.

Jackson foi julgado. O júri decidiu absolvê-lo de todas as acusações. Saiu em liberdade e varreu a aleivosia que sobre ele pesava. Fiquei contente? A minha felicidade passa ao lado do que acontece ao Sr. Jackson. Repito: alguma malvadez espontânea dentro de mim sugeria sentença contrária. Mas o tribunal decidiu absolvê-lo. Não vale a pena continuar a alimentar a especulação, com engenhosas teorias da conspiração que apenas arranjam pretextos para a absolvição. Como se, apesar da sentença do tribunal, sobre Jackson continuasse a pesar o juízo dos populares que dele não gostam e que continuam a acreditar que ele fez as coisas tenebrosas de que vinha acusado.

Irracionalmente, gostava de o ver condenado. Mas respeito a decisão do órgão que existe para fazer justiça. Pode-se tentar arranjar mil e uma desculpas que explicam a absolvição. Alegar que, por uma divina coincidência, o sorteio do júri produziu um colectivo formado em maioria por simpatizantes de Jackson. Ou adivinhar que se estivesse sentada no banco dos réus pessoa anónima a sentença seria diferente. As elucubrações podem ir mais longe, entrando no domínio do fantasioso: sugerindo que muito dinheiro correu debaixo da mesa, para jurados e testemunhas que desdisseram depoimentos anteriores. Nada apaga a sentença que absolveu Jackson. A sentença que deve ser respeitada, mesmo por aqueles que muito gostariam de o ver condenado.

Respeitando o sentido da sentença, há uma interrogação a que não se pode escapar: depois de tanto tempo em que a suspeita pairou sobre Jackson, depois de se terem formado convicções de que ele era abusador sexual de crianças desfavorecidas, como limpar a sua imagem? Mesmo saindo em absolvição, há algo que não consegue ser apagado da memória: a imagem chamuscada do artista. Nada pode ser feito para restaurar a imagem que ele tinha antes de ser acusado dos crimes que o levaram a tribunal. São danos irreparáveis. Não há mecanismos que permitam regressar ao tempo em que tinha a imagem imaculada de quem não molestava sexualmente inocentes rapazes.

É difícil ser figura pública nos tempos que correm. A crer na sentença que o ilibou (sublinhe-se este pressuposto, para validar a conclusão que vem de seguida) basta uma orquestração de vontades para queimar a imagem da figura pública. Que tem que se defender em tribunal. Ao arrepio das mais básicas regras do direito, pois sobre ele se impõe o dever de provar a inocência. E, quando o pesadelo termina e o tribunal o absolve, a suspeita de que não se fez inteiramente justiça fica a pairar, impedindo a restauração da sua imagem. Imaginemos que ele é mesmo inocente: como se repara esta injustiça? (O que se aplica a qualquer pessoa que tenha estado nas mesmas circunstâncias de Jackson).

14.6.05

No espólio de último 10 de Junho sampaiês: a vertigem das condecorações e a mania das grandezas

O expoente máximo da portugalidade, o 10 de Junho. Dia em que o orgulho pátrio atinge o zénite. Emproam-se as almas do alto do seu brio nacionalista, zarpando em alcateia para a cidade onde decorrem as comemorações oficiais do dia do lusitano escol. É momento importante: afinal tanto se zurze contra desgraçados que não se cansam de alfinetar a auto-estima nacional, insistindo na mediocridade do luso povo, que o dia que celebra o cimento da portugalidade deve ser enaltecido com toda a energia.

É uma espécie de festejos do 25 de Abril, mas sem a carga ideológica que certos quadrantes gostam de imprimir à data em que a vetusta ditadura caiu. Mais abrangente, procurando abrigar todo o arco político e abraçar a população sem olhar a diferenças de cor política. Um dia grandioso, em que o mestre-de-cerimónias – o presidente da república – tem um dos raros momentos de protagonismo ao longo do mandato. Dia de comendas distribuídas por uma generosa lista de “personalidades” que se distinguiram pelo serviço público, por feitos pessoais que tanto enobreceram o brio pátrio. Há as condecorações presidenciais, a expressão de gratidão que o “presidente de todos os portugueses” exibe em nome dos representados.

O desfile das comendas, em cerimónia cheia de solenidade, alimenta os anais do ridículo. Há humoristas que gozam com o protocolo do regime: tantos têm sido os agraciados que hoje quase não sobram cidadãos nacionais a quem oferecer as condecorações. Todos os anos critérios duvidosos. Claro que o império da subjectividade encontra aqui terreno fértil. As escolhas do presidente são aceitáveis ou criticáveis, dependendo da opinião de quem as avalia. No rescaldo de anos sucessivos de cerimonial, os festejos banalizaram-se, as comendas colocadas ao pescoço dos premiados são tão triviais que perderam o significado de grandeza que se lhes quer atribuir.

É um estranho caldeirão onde cabem personalidades conhecidas por contributos díspares: enquanto de uns não se duvida o mérito, de outros questiona-se a oportunidade, quando mesmo as razões que os levam a receber a condecoração. E quando se misturam maçãs podres com as boas, diz a química que estas acabam por apodrecer pelo contágio que tem origem nas fétidas. É o simbolismo da cerimónia que aparece afectado: ao misturar no mesmo caldeirão ambos os tipos, os que tiveram contributos de destaque acabam por não ter a relevância que merecem, ofuscados pela comenda distribuída a pessoas que se fica sem saber porque são agraciadas.

O ritual do 10 de Junho, com a sua solenidade republicana, em pouco se diferencia dos costumes nobiliárquicos típicos das monarquias. Haverá diferenças, decerto. Na monarquia as comendas são distribuídas segundo critérios de linhagem familiar, tributários de uma sucessão dinástica que mancha de anacronismo as monarquias que se dizem modernas. Mas há um elo entre as cerimónias de embelezamento dos regimes republicano e monárquico: a solenidade da ocasião, a grandeza imprimida aos festejos, o orgulho dos galardoados. Em ambos os casos, um ritual, com sinais e códigos que apartam repúblicas de monarquias, mas um ritual de dignificação, o cimento identitário de uma comunidade.

Talvez por ainda não ter sido alvo de semelhante manifestação de enceramento do ego, o presidente da Portugal Telecom, Horta e Costa, decidiu comprar uma comenda nobiliárquica. Fez-se “duque-de-qualquer-coisa” e agora surge em público com a aura do “nobre novo” que se enganou no país para o ser. Alguém diga à pavoneada personagem que aqui vivemos em república, não numa monarquia que é feita de castas de privilegiados, de condes, duques e quejandos. Ou que metam uma cunha por ele: se chegou ao estrelato empresarial com colocação partidária através de um dos partidos do bloco central, alguém lhe faça o favor de encomendar a condecoração para 10 de Junho do ano de graça de 2006. Tanto que, por essa altura, desconfiam os analistas políticos que haverá pela primeira vez um presidente da república não socialista.

13.6.05

O hino, o sagrado hino

Há notícias que se encaixam na perfeição no calendário. Esta foi lida na sexta-feira, “dia de Portugal, de Camões e das Comunidades” (assim rezam os dizeres oficiais). Noticia um requerimento apresentado por um deputado – por enquanto mantido no anonimato, para alimentar o efeito-surpresa – que se insurgiu contra o desrespeito da RTP por ter saltado o momento em que era entoado o hino portugês em Tallin, no último jogo da selecção nacional.

Vale a pena reproduzir excertos do requerimento do esmerado deputado. Acusando a RTP de “falta de respeito pela selecção nacional” ao ter preterido o hino por publicidade, o deputado asseverava, do alto da sua douta pena, que “honrar os símbolos nacionais é obrigação primeira do serviço público”. Sem se deter, concluiu o requerimento com um laivo de pedagogia. Foi dito que “a entoação colectiva do hino, acompanhada pelos jogadores da Selecção Nacional e pelos milhões de portugueses espalhados pelo mundo é um momento único de identificação nacional e de partilha emocional, que não pode ser ignorado por quem tem uma missão de serviço público”. Uma pérola do mais alto calibre! Tocante!

Agora deslinda-se o mistério. Quem foi o autor de semelhante arroubo de exaltação patrioteira? Um deputado de direita, decerto. Dizem os costumes que o fervor nacionalista é apanágio da direita trauliteira, que, agarrada aos preconceitos salazaristas, ainda estremece de emoção quando os símbolos da nacionalidade são evocados. São estes sectores que cantam o hino nacional com sentimento. São eles que prestam vassalagem à bandeira vermelha e verde com o escudo armilar. Para eles, o devir nacional sobrepõe-se ao indivíduo. Da sua cartilha faz parte uma retórica que enaltece os feitos de quem deu a vida ao serviço da pátria, de quem tombou em combate em defesa do grandioso Portugal.

É tempo de desfazer as ilusões alimentadas pelos usos a que estamos habituados. Afinal há esquerdistas que também dão para o peditório do patriotismo. Esquerdistas que não hesitam em usar palavras que, anos antes, eram vituperadas por eles mesmos. Quem ousasse, à saída da revolução de Abril, invocar a condição de patriota, ou exigir respeito pelo hino e pela bandeira, era apedrejado em praça pública por estar a aludir a símbolos que faziam lembrar os tenebrosos tempos da ditadura derrubada. Agora são os mesmos que se servem da retórica nacionalista para arregimentar fiéis às suas causas. Foi este requerimento, lavrado por um deputado socialista (por mais uns momentos reservado à condição do anonimato, para manter o suspanse…). Foram os inúmeros camaradas que falaram a sua mágoa pela morte do companheiro Vasco, de quem disseram ser um esmerado patriota. Espera-se que o mesmo seja dito do camarada Cunhal, depois da notícia da sua morte ter sido conhecida há minutos.

Cada um pode ser “patriota” ou “nacionalista” à sua maneira. É uma necessidade que emerge amiúde, sobretudo quando quem verte esse palavreado sente que os “símbolos nacionais” são o cimento para congregar multidões acarneiradas em redor do ideal, de um objectivo. Por isso, a perversão da linguagem que correspondia ao binómio esquerda-direita. A direita tem incorporado no seu discurso ideias caras à esquerda. Como as esquerdas não ousam em fazer a apologia de simbologias desde sempre conotadas com a direita, como é o caso da retórica nacionalista.

O deputado do PS que falou, com o protesto vigoroso da sua voz grave, foi Manuel Alegre. Alguém vindo da ala mais à esquerda do PS esteve com atenção à distracção da RTP. Ou os outros deputados do PS não tiveram tempo para ver o jogo da selecção nacional – crime anti-patriótico, ou não fosse passada a imagem de que a selecção de futebol é um símbolo do país que temos. Ou estes deputados ainda não aprenderam a lição de transformismo semântico de que o deputado Alegre é pioneiro entre as esquerdas.

Um dia destes ainda veremos o deputado Alegre protestar contra a perda de soberania nacional imputada aos avanços da União Europeia. Andará de braço dado com esse ícone do soberanismo à antiga que é Manuel Monteiro. Alegre será a voz dissonante dentro do PS, ou não sejam todos os deputados rosa instruídos para fazerem campanha a favor do sim no referendo (se o houver…) à Constituição Europeia. Sim, porque ninguém cala Manuel Alegre!

10.6.05

Rejuvenescimento paternal

Recuar no tempo. Resgatar a infância emoldurada na poeira do passado. São reminiscências dos tempos idos, dos anos da meninice, quando as brincadeiras eram o consolo diário e as despreocupações vagueavam com a teimosia da incompreensão da vida. Retomo esses tempos mercê da filha que cresce a pequenos passos. Não é o pai embevecido que se expõe. É o pai que tenta comunicar com uma filha ainda bebé, esboçando uma linguagem ininteligível que ela sabe perceber. Um pai que se perde em esgares que levam a filha à gargalhada empanturrada. Um espólio de brincadeiras que julgava perdido nos distantes anos da infância. No regresso ao passado, reinventar o espírito através da inspiração que vem, num fluxo incessante, da filha que me olha da profundidade dos seus olhos azul-acizentados.

São coisas distintas. Uma, o preenchimento da alma que a paternidade acalenta. Daquelas sensações que milhentas palavras são incapazes de reproduzir com fidelidade. Outra, diferente, é estar embrenhado numa comunicação que se vai tecendo, uma intimidade que esquadrinha os caminhos de uma identificação a dois. É aí que compreendo a agradável sensação de estar a reviver a leveza dos anos infantis: ao esgadanhar sons sem sentido que levam a filha ao sorriso espontâneo; ao mergulhar na barriga desnudada da bebé, esfregando o nariz com vigor, sorvendo a gargalhada que ela solta; ao nutrir um diálogo em que a língua se prende entre os maxilares e liberta perdigotos salivados acompanhados de um silvo bem audível.

Faço tudo isto na convicção de que a educação de um filho não deve ser dominada por laivos patéticos, o “gugu-dada” da praxe, as aborrecidas canções infantis que, dizem pedagogos encartados, fertilizam um crescimento adequado. Sinto algum egoísmo quando acabo por fazer aquilo a que, em teoria, me oponho. Sensato egoísmo, por sentir que a minha filha se acha feliz com as palhaçadas esboçadas pelo pai. Egoísmo puro, porque o pai se sente cercado por uma revoada de bem-estar ao descer à faixa etária da filha, resvalando para o “gugu-dada” (em sentido figurado…) que à partida depreciava.

Oito meses de experiência paternal. Meses imensamente ricos, meses de um crescimento inigualável, talvez pelo regresso à linguagem infantil que trouxe reminiscências de uma inocência perdida no processo de crescimento. Não é gratificante apenas por acompanhar, dia após dia, o crescimento de uma filha que é o repositório de muito amor. É gratificante por permitir desligar da terra, isolar-me da mágoa que é viver no mundo. Retomo, por instantes, naqueles momentos de cumplicidade com a minha filha, a infância que o tempo quis, mas não conseguiu, enterrar nas brumas da memória. Um mergulho às origens sacia a fortificação do espírito renovado.

Acaso houvesse necessidade de dar um sentido à vida, diria que assumir a paternidade a corpo inteiro é o milagre esperado. Dóceis gestos que merecem a retribuição de um sorriso envergonhado da filha gerada, um afago que a sua pequena mão repousa na cara do pai, a curiosidade que a leva a descobrir os recantos de uma face que a fita sem se cansar. Para o pai, a filha é a recompensa maior. O orgulho da arte criada, o regalo de a ver crescer todos os dias. Mas também a lufada revigorante que preenche o pai ao afagá-la no regaço, quando ela adormece no calor do seu peito, quando lhe muda a fralda e ela esboça o contentamento de sentir o corpo desnudado, livre.

Um amplexo de sensações que são a reinvenção do espírito, uma vivência revigorada, tónico para suportar com estoicismo as adversidades que a vida teima em semear no caminho. Que deixam de ter importância ao sentir o pulsar de uma vida frágil que está nas nossas mãos. A entrega de nós, na essência da virtude maior que os sentimentos podem conhecer.

9.6.05

Pecado carnal

Não é isso que estão a pensar…

Circulava pela auto-estrada com alguma velocidade, porque o relógio se tinha adiantado ao compromisso agendado. Dos veículos ultrapassados, um ficou na retina: uma carrinha de transporte de carne porcina. A confissão da infracção ao código da estrada (secção: excesso de velocidade) impediu-me de fixar o nome da empresa proprietária da carrinha. Apenas retive o “salsicharia-charcutaria”. A caixa frigorífica estava decorada de forma sugestiva: um avantajado painel que retratava a carcaça de um porco, carcaça esventrada a meio. Que preenchia a parte traseira da caixa frigorífica. E, em escala ainda maior, o lateral de uma extremidade à outra.

Sou consumidor de produtos que derivam de carne porcina. Salsichas, enchidos vários, a carne em si, são parte da minha dieta. Por enquanto. Porque me choca ver retratado o cadáver do animal numa carrinha que se dedica ao comércio da carne. Poderão erguer o dedo acusador à minha incoerência. Admito mesmo que me acusem de ser hipócrita. Afinal choco-me com a imagem do animal morto, mas delicio-me com o aproveitamento que se faz da carne retirada da sua carcaça.

Os breves instantes que coincidiram com a ultrapassagem da carrinha encheram-me a memória por muito tempo. Levando à reflexão sobre a bestialidade humana. Pondo de lado a incoerência que sobre mim pesa, não consigo perceber de onde vem o prazer dos humanos quando dão de caras com o cadáver de um animal, o mesmo cadáver que vai regalar as papilas gustativas dos espectadores que em breve se tornam comensais. À memória vêm imagens de um ritual consagrado da denominada “cultural popular portuguesa”: a matança do porco. As breves imagens que pude captar em reportagens televisivas, já que nunca aceitei presenciar tal acto de barbárie.

Sou incapaz de perceber o que leva os convivas a cercarem um porco indefeso, assistindo com os olhos esbugalhados de prazer ao facalhão que perfura a barriga do bácoro. Qual o prazer que se pode retirar dos gritos de dor lancinante que o porco liberta, o som gutural que se ouve antes do animal definhar de vez, perante a água na boca que cresce nos convivas, enquanto se ouve no gravador fanhoso uma cassete que reproduz um qualquer rancho folclórico com uma voz feminina esganiçada? A mesma voz esganiçada do porco quando sente a faca perfurar as suas entranhas, com o sangue que jorra abundante e que lhe furta os últimos instantes de vida. Na presença de uma audiência que vibra, aplaude, bate o pé ao som da excelsa música que empastela o éter à medida que a respiração do porco se extingue e começa a pairar no ar o cheiro a queimado que vem da carcaça chamuscada. Um bando de abutres, em nome de um ritual, da tal “tradição” que quando é popular há que não pôr em causa.

A todos os povos os seus rituais. Uns mais estupidificantes, outros sem a mácula da bestialidade. Por cá a matança do povo; do outro lado da fronteira, a turba entusiasmada que delira com o touro que se ajoelha perante o carniceiro toureiro que acabou de lhe espetar a espada da morte na nuca; pela Inglaterra, que se pavoneia como berço da civilização moderna, a absurda caça à raposa. Um pouco por todo o lado, o desporto da caça, na obtusa convicção que é receita necessária para o equilíbrio cinegético.

Desconheço se o abismo pelos maus-tratos a animais sinaliza a crença de que a espécie humana está num patamar de superioridade em relação às demais. Ou se é a consequência do ciclo de vida, da necessidade de sacrificar animais para a subsistência alimentar dos humanos. Apenas digo que as coisas podiam ser feitas de maneira mais discreta. Sem se usar essa necessidade essencial como meio de fazer espectáculo. Quando tal acontece, é a vertente mais grotesca do Homem que vem à superfície.

É nestes momentos que me atormento com a minha incoerência, a hipocrisia que me domina, a gula de que não me consigo desligar. É nestes momentos que mais me apetece ser vegetariano.

8.6.05

Povo sem foguetório

A canícula morde com todos os dentes. Cartão de visita do Verão que o calendário anuncia para breve, mas que já se apoderou dos corpos, numa liquefacção difícil de vergar. Com o calor, os incêndios. As imagens de sempre. Florestas feitas num impressionante archote, o desespero das pessoas que ficam sem terras, cultivos, animais e haveres. Bombeiros que não descansam, lutando contra as chamas que dançam de um lado para o outro, empurradas pelo vento seco, alimentadas pelo sol abrasador.

O governo decidiu algo de sensato: durante a época de incêndios está proibido o lançamento de foguetes nas zonas rurais, as mais propensas ao fogo. Lá fica o povo sem o afamado fogaréu que faz as delícias de qualquer romaria que se preze. Não há festança popular que não tenha epílogo no lançamento de abundantes petardos que iluminam a noite com cores multifacetadas, numa coreografia de luz que prende os olhares dos populares ao céu alardeado. Não há festa de Verão que não ribombe na alvorada com petardos ensurdecedores, a lembrar o calendário das festividades.

A tendência para o barulho revela a idiossincrasia popular. Atestando um povo fadado para extremos – melancólicos na maior parte do ano, adormecidos, com predestinação para as tristezas cantadas no fado; mas de súbito dados ao arrebatamento, ao excesso dos festejos, quando o calendário traz a data da festa anual da terrinha. O povo gosta dos rebentamentos que ameaçam furar os tímpanos. O estampido do foguetório matinal, que consiste no pequeno nada de lançar uns petardos bem audíveis que troam no ar, permite compreender o gosto pela flatulência que o povo não desdenha. Ou como os populares se deliciam com as bandas dos bombeiros voluntários que desfilam garbosamente pelas ruas da aldeia, batendo com vigor nos tambores a um ritmo compassado e fastidioso. Estranhos hábitos de melodia! Bizarras tendências musicais que se contentam com umas batucadas repetitivas no dorso dos tambores, levando à exaustão um ritmo que se repete e repete e repete sem fim.

Um povo que gosta de estampidos, de ruído que entra nos ouvidos e os preenche com uma inaudita melodia. Com estes hábitos musicais, não estranha a ausência de tradição na música clássica. Os grandes compositores abundam nos países da Europa central; por cá, são aves raras na fauna artística. Aposto que nos países da Europa central a indústria do fogo de artifício não é próspera como no Portugal dos petardos. Sinal de que a população foi educada, de há séculos, noutros timbres musicais que ultrapassam os rudimentos dos ritmos martelados com a força bruta dos músculos braçais dos valorosos voluntários que empunham os seus pesados tambores. A estética destes povos não se encaixará na absurda barulheira que acorda os noctívagos, com os petardos que ecoam no ar, assustando os desatentos.

Abeira-se o Verão com as vagas de calor. Já com os primeiros incêndios que levantam temor, numa repetição dos anos anteriores. As imagens de mais floresta a arder fazem pensar no restolho que ficou por ceifar, o combustível que ateia os fogos que consomem mais e mais árvores. Vai a mancha florestal desaparecendo nas cinzas que são os despojos dos fogos. Ano após ano, menos floresta e mais desertificação. Fez bem o governo em vedar o lançamento de foguetes que, está provado, tantas vezes são a acha de incêndios que num ápice ficam descontrolados.

Faltam agora as vozes de protesto. Dos que consideram que esta medida está contra uma “tradição popular” – e as “tradições populares” são território enquistado, tabus perenes, inamovíveis! Faltam os protestos da indústria do fogo de artifício, com as usuais lamúrias quando industriais de qualquer ramo vêm numa decisão governamental algo que antagoniza os seus interesses. Lá virá a ladainha do costume: um mar de prejuízos, o fantasma do desemprego e os elevados custos sociais que ele representa, etc., etc. Depois estendida será a passadeira vermelha aos sindicatos: que esta decisão é contraproducente, porque vai empurrar muitos trabalhadores para o desemprego. Para encerrar o rosário das críticas, as criaturas com tendências antropológicas: que isto atenta contra usos estabelecidos há séculos, difama a voz popular, afinal o esteio da democracia. De um passo só, ajuizar a decisão como antidemocrática, porque espezinha os interesses do povinho.

Que o povo se contente com a música pimba que enxameia as festas populares estivais. Não lhes chega para comprazimento da alma? Ou será que à poluição sonora e visual insistem em adicionar a poluição auditiva que, por vezes, tem os danos colaterais na forma de incêndios devastadores?

7.6.05

Quando um ministro tem duas opiniões: a pessoal e a oficial

É o caso que tem agitado as notícias. Freitas do Amaral, num inglês que pouco ultrapassa a escala do macarrónico, disse uma coisa de manhã que foi diferente da que disse à tarde. Não que estivesse em diferentes qualidades quando caiu no alçapão de desdizer o que tinha afirmado em primeiras instâncias. De manhã, na assembleia parlamentar do Conselho da Europa; à tarde, numa conferência de imprensa, acompanhado do ministro dos negócios estrangeiros da Alemanha. Em ambos os casos apareceu como ministro dos negócios estrangeiros da “Portuguese Republic” (com sotaque de canalizador com curso de inglês tirado às três pancadas).

Em bom rigor, nem sequer se coloca a questão de saber em que qualidade as afirmações foram produzidas. Se o senhor é ministro dos negócios estrangeiros da “Portuguese Republic”, que guarde as opiniões pessoais para a intimidade dos seus botões de punho. Não pode é lançar âncora na condição de personalidade que paira acima do comum dos cidadãos para de manhã fazer de conta que não é ministro e à tarde vestir a casaca solene de ministeriável figura. Privilégios de quem se julga um “senador”, com as regalias que o colocam a gravitar acima do comum dos mortais.

Freitas do Amaral não se pode dar ao luxo de opinar, sobretudo quando sabe que existe uma divergência entre a opinião pessoal e a posição oficial da “Portuguese Republic”. Freitas do Amaral, o ilustre académico, pensa que os referendos à Constituição Europeia deveriam terminar, arrepiando caminho a negociações para uma nova constituição. Já Freitas do Amaral, ministro dos negócios estrangeiros, contristado, anuncia que a “Portuguese Republic” está comprometida em honrar o compromisso de consultar os eleitores para medir a aceitação da Constituição. Do alto do seu púlpito, Freitas do Amaral – não interessa se o académico ou o ministro – ajuizou que a divergência entre as suas duas metades não provocaria mossa. Afinal ele é um senador. Um senador pode dizer o que bem lhe convém, como é provado amiúde pelas as baboseiras que se soltam da boca sapiente do senador mor do reino – Soares.

Planando sobre o episódio, apenas a normalidade. Foi a mesma personagem que veio para os jornais declarar juras de fidelidade ao governo do amigo Sócrates, pois só aceitou fazer parte do elenco depois de saber a sua composição. Como quem diz: “ó José (Sócrates), só digo que sim depois de me dizeres quem são os ministeriáveis. Só depois de eu aprovar os ministros é que te dou o meu sim. Não estou para correr o risco de entrar num governo de medíocres”. Daí a famosa tirada, num corredor do parlamento, com a sua voz professoral cheia de certezas: o ruído da oposição é produto de uma inveja sem fim. Inveja de pessoas como Campos e Cunha, Mariano Gago e ele mesmo, em pessoa. Perante as evidências, dá para perguntar: terá Freitas sido o censor de consciência de Sócrates, quando este andou em périplo nos contactos para a formação do governo?

Com esta apetência para flutuar acima da pessoa comum, do ministro comum, Freitas do Amaral rivaliza com Jorge Coelho no insustentável peso de quem aparece fadado para exercer mais poder que o primeiro-ministro. Freitas do Amaral é o único que tem privilégios para puxar lustro à opinião pessoal, quando ela não afina com o diapasão oficial da “Portuguese Republic”. Um verdadeiro primus inter pares! A estrela da companhia.

O capo Coelho, mero coordenador dos socialistas para as eleições autárquicas, anda a percorrer o país, perorando exaltadamente em comícios partidários que embelezam jantares dos militantes, num exercício que marca a agenda do seu putativo chefe, o primeiro-ministro. É interessante ver como um homem que tem o pelouro das autarquias manda no governo, com os assuntos que atira para cima da mesa. Coelho discursa, com a gritaria que se lhe conhece e que leva os fiéis militantes ao arrebatamento, e no dia seguinte lá está um ministro, ou mesmo o primeiro-ministro, a anunciar medidas que vão ao encontro do que tinha sido dito por Coelho. Coincidências que revelam quem manda no país…

A escola Santana Lopes deixou o seu legado de forma indelével. Curioso é o comportamento da imprensa: implacável perante o desnorte do governo de Santana Lopes, complacente com a desorientação do governo Sócrates, que não difere muito na escola do seu antecessor, quando vemos ministros a disparar em sentidos diversos.

6.6.05

Peixes ou pescadores?

Protestam os pescadores de Sesimbra. Marcham contra a ameaça que paira sobre a sua forma de vida, mercê do terreno conquistado por biólogos e ambientalistas que convenceram a Comissão Europeia a pôr um travão nas capturas de algumas espécies piscícolas. A certa altura, as partes desavindas cruzam-se no caminho. Alguns pescadores mais exaltados querem-se travar de razões com biólogos que apareceram nas imediações. Estes, em minoria, impávidos e com o rabo entre as pernas, limitados a um silêncio táctico. Não vá o diabo tecê-las…

Não é a primeira vez que pescadores protestam contra decisões que limitam a sua actividade. Tem sido visível a influência que os ecologistas exercem sobre as autoridades de Bruxelas. Invocam-se estudos científicos que mostram, com a infalibilidade a que os cientistas se arrogam, um cenário catastrófico se a intensidade piscatória de hoje se mantiver pelos dias futuros: muitas espécies começam a escassear, e pode acontecer que elas desapareçam.

Sensível aos apelos dos ambientalistas, a União Europeia limita a pesca para preservar os peixes que estão sob ameaça. Usa a pedagogia: tenta convencer os visados (os pescadores) que a ausência de restrições no presente poderá significar a morte da actividade piscatória num futuro próximo. Os pescadores não se convencem. Desconheço quais as suas motivações: não sei se é oposição por oposição, sem fundamento científico que se jogue contra os estudos dos ambientalistas; ou se há um fundo de razão que os leva a desconfiarem dos que zelam pelos recursos marinhos.

O episódio de Sesimbra mostra como as posições estão extremadas. Não custa a admitir que haja excessos na reacção dos pescadores, que fazem passar a mensagem que muitos deles irão passar fome se for dada razão aos biólogos. Mas também gostava de saber se as posições dos ambientalistas não resvalam para o exagero da causa. Pelos precedentes conhecidos, fico com a ideia que não olham a meios para defenderem a sua dama. Quantas vezes pintam quadros dantescos, sublinhando a necessidade de pôr fim à exaustão de recursos naturais que se deve à pura ganância humana, enfim, ao nefando capitalismo? E quantas vezes vinga a conclusão de que as nuvens não são assim tão negras?

Podem os ambientalistas agarrar-se a um princípio metodológico que os leva ao zelo na defesa das causas. Se não exagerarem na retórica, poucos darão atenção aos problemas que afectam o meio ambiente. Também é verdade que quando mergulham na profundidade deste método, os ecologistas não hesitam em sacrificar o Homem ao ambiente. Descambam na irracionalidade da causa, num dos fundamentalismos da sociedade contemporânea. Passam a imagem de que o Homem está ao serviço do ambiente. Quando deviam educar o Homem para utilizar os recursos naturais de forma racional, convencê-lo de que exaurir os recursos é meio caminho andado para um mundo desértico, um ecossistema que perde a sua identificação, um legado vergonhoso para as gerações futuras.

Desconheço o real estado dos bancos de pesca nas zonas fainadas pelos pescadores de Sesimbra. Não me custa a admitir que poderá haver algum perigo de exaustão das espécies pescadas. Mesmo assim, algo não bate certo. Ou os protestos dos pescadores não se fariam sentir com tanta veemência. Curioso é observar como gente que se afirma na vanguarda do pensamento se embrenha em actos de despersonalização. Para os biólogos, os peixinhos têm mais importância do que as pessoas que vivem do mar. Antes salvar a vida dos peixinhos do mar. O que acontecerá aos pescadores, depois de limitada a pesca, não lhes interessa. Se a miséria aumentar, se a fome grassar entre as famílias dependentes do dinheiro que a pesca proporciona, problemas que lhes passam ao lado.

Adivinho a incoerência de biólogos deste calibre. Afadigados nas causas da alter-globalização, apadrinhando as lutas contra o perverso capitalismo, insurgem-se contra o fast food, contra a comida tradicional que semeia doenças modernas. Como os médicos que fazem campanha contra estes e outros males da saúde pública, e depois são consumidores ávidos de um bom charuto e de um whisky de doze anos, também vejo estes biólogos a aconselharem a degustação de um peixinho grelhado nas esplanadas de Sesimbra…

3.6.05

A democracia está preparada para os referendos?

É engraçado como alguns profetas da desgraça alvitram a crise da União Europeia após o não francês e holandês nos referendos à Constituição europeia. São os mesmos que cantam loas à democracia madura em que vivemos, prova que o eleitorado atingiu a maioridade que cauciona a emancipação dos partidos políticos. Naqueles países, os resultados do referendo não se encaixam no “eleitorado natural” dos partidos que defendiam o sim. Já não é a primeira vez que isto sucede: em 2002 houve um referendo na Suécia, para saber se os suecos estavam de acordo com a adesão à união económica e monetária. Os partidos a favor do sim totalizavam cerca de 80% do eleitorado. O não venceu com 55% – ou seja, os partidos que apenas representavam 20% dos eleitores conseguiram reunir 55% dos votos.

Faz sentido a pergunta: está a democracia preparada para decidir questões importantes através do referendo? São muitos, e importantes, os aspectos que se jogam em sentidos contrários. Os que exultaram com a rejeição francesa e holandesa da Constituição europeia não se cansam de sublinhar que a vontade popular é soberana; que o desfasamento entre a vontade dos partidos maioritários e a vontade popular é sinal de excelência democrática. Não tenho a mesma certeza. Há que terem atenção a complexidade deste referendo. Acredito que referendar a Constituição da União Europeia é uma inutilidade.

Por mais informados que estejam os cidadãos europeus acerca do projecto constitucional, haverá sempre um défice de conhecimento. A culpa está na complexidade da Constituição. Em vez de um texto simples, acessível, com meras linhas de orientação programática, a Constituição ambicionava regulamentar detalhes que estão longe do alcance do braço constitucional. Perdia-se em rodriguinhos que alongavam a Constituição para um número de páginas absurdo. Desmotivando a sua leitura mesmo a especialistas da matéria, quanto mais ao cidadão comum. Por entre o deserto da desinformação generalizada, este foi o povo que, em alguns países, foi chamado à deliberação. Decidir sobre o quê, se não sabem o que estão a decidir? É um referendo para apaziguar a consciência de políticos preocupados com o manto formal da democracia. Dar a voz ao povo sem que o povo saiba sobre o que fala, e o que diz, é falsa democracia devido à decisão enviesada. De uma vez por todas, quando convencer o participante da sociedade que se deve abster de falar quando desconhece o tema em discussão?

O divórcio entre os partidos dominantes e a resposta maioritária da população nos referendos holandês e francês é um fenómeno interessante. Não é a primeira vez que o divórcio acontece: já antes sucedera na Dinamarca, na Irlanda, na Suécia, tendo como pano de fundo referendos sobre a evolução da União Europeia. Será que os principais partidos não conseguem passar a mensagem de forma eficaz? Ou não estará a maioria da população preparada para aceitar os desenvolvimentos da União Europeia, como se os políticos andassem na vanguarda e os cidadãos fossem a retaguarda que se opõe aos visionários que tecem a União?

No meio do desnorte que acentua a crise da democracia (ao contrário do que supõem, vitoriosos, os que rejubilam com a maioria do não nos referendos), uma interrogação a que não se pode escapar: que democracia nos interessa? A democracia representativa de tradição parlamentar, com os desvios adicionados que enfatizam o papel dos governos e a subalternização dos parlamentos? Ou uma democracia directa, como na Suiça, em que os cidadãos são consultados amiúde para decidirem sobre temas que tocam os seus interesses?

Em teoria, simpatizo com modelos que aproximam o poder o mais possível do cidadão. Em teoria, a generalização dos referendos é boa prática, o expoente máximo da descentralização que devolve o poder às pessoas comuns. Mas de utopias está o mundo cheio. Estarão as pessoas preparadas para assumir esta responsabilidade? Ao contrário do que sugerem os exultantes adeptos do não nos derradeiros referendos, creio que estamos longe de atingir a maturidade de cidadania exigível para a disseminação de referendos. Pelo alheamento dos cidadãos em relação à política, pela falta de informação. E, ainda pior, pela informação distorcida que os políticos veiculam durante a campanha eleitoral que antecede referendos.

Aconteceu, nos referendos em França e na Holanda, de ambos os lados da barricada. Com os argumentos demagógicos e falaciosos dos partidários do não, e com a construção de cenários dantescos (não correspondentes à verdade) pelos advogados do sim. Na falsidade da informação colhida está o condicionamento da vontade dos eleitores. Referendos que distorcem a verdade do jogo não podem valer como expressão máxima da vontade popular, porque a vontade é antecedida por um não discernimento popular.

Dar a voz ao povo apenas para respeitar preceitos formais cruciais para se cumprir democracia? Não, obrigado. Mal por mal, antes repousar nas decisões da casta de políticos com toda a sua incompetência e interesses pré-determinados. Mal por mal, antes confiar em poucos que são o espelho do jogo da representatividade democrática do que depender de milhões ignorantes e desinformados.

2.6.05

Caixas de velocidades

Parado no semáforo vermelho, espero autorização para arrancar. Quando a luz verde se acende, embraio, meto a primeira velocidade, desembraio e arranco. Segue-se uma recta que convida a desmultiplicar segunda, terceira, quarta, quinta. Um gesto mecânico para quem conduz. Ponho-me a pensar no número de passagens de caixa de velocidades que fazemos ao longo de um dia passado ao volante. De serem gestos automáticos nem damos conta, como se o braço direito se estendesse na espontaneidade de saber que naquele preciso momento chegou a vez de conjugar a embraiagem com a caixa de velocidades. Uma coreografia sem registo, obrigatória para avançar a marcha.

Numa era em que procuramos ajudas na tecnologia para estimular o comodismo, alguns advogam as vantagens das caixas automáticas. Dizem: é uma condução mais relaxada. O pé esquerdo repousa a toda a hora, sem ser chamado a fazer os movimentos no pedal da embraiagem, que nem existe. A mão direita não tem que se deslocar do volante até à caixa de velocidades, num movimento repetitivo, cansativo.

Do outro lado, os puristas, adeptos do mais convencional que existe na indústria automóvel. Insistem que o prazer da condução é feito de pequenos mas importantes gestos que são o património genético da condução automóvel. Consideram que a alavanca da caixa de velocidades deve ser manuseada com frequência, para sentir o pulsar do motor, para que a condução não se torne monótona. Para os que gostam de velocidades e sensações fortes na estrada, a caixa manual é um must. Entregar-lhes em mão um carro com caixa automática é um acto de castração.

A digressão pelas caixas de velocidades é pretexto para algum disparate. Para pôr em evidência como um tema corriqueiro, mesmo banal, afinal se presta a uma deliciosa especulação de simbolismos. De repente, embrenhado nestes pensamentos que pouco mais são do que vácuos, dei comigo a indagar das virtudes das caixas manuais e das caixas automáticas. Arranjei argumento poderoso para defender as caixas manuais. Mas chamo a atenção às feministas de serviço e aos cultores do pensamento politicamente correcto que o argumentário que se segue é marialva e, quem sabe, tonto.

Assumo a posição de um consumidor de veículos que leva a peito a sua masculinidade. Um macho latino na sua essência consabida – orgulhoso dos atributos másculos, desdenhando as características efeminadas que revelam fraqueza de espírito. Nas suas vistas curtas (e enviesadas), a varonil personagem equaciona a troca de automóvel. Como acha que isto de conduzir máquinas impelidas a motores de propulsão é coisa de macho, terreno onde a intrusão das mulheres é motivo para as mazelas que se vêm estrada fora, tirou as medidas aos atributos do novo automóvel que vai comprar. De um característica não prescinde: uma caixa de velocidades manual.

Na sua cabeça paira a ideia que a caixa manual é o instrumento fálico do automóvel. Garboso da sua masculinidade, cioso dos sinais exteriores que a manifestam, recusa-se a conduzir um carro que seja a negação da masculinidade expressa numa caixa automática. Abjura o argumento de que a condução se torna mais confortável: coisa que abichana a arte do volante. Fiel às tradições do marialvismo, não se imagina a conduzir carro desprovido do seu falo, da sua caixa manual.

Desconfiando das maneiras alternativas de estar em sociedade, suspeita que um carro com caixa automática ilustra a feminilidade de uma coisa que tem tudo de máscula. O carro, o automóvel, o veículo – seja qual for o nome que se lhe dê, é sempre no masculino. Mesmo que se lhe chame “a máquina”, já aqui no feminino, a palavra máquina é a expressão viva do género masculino, pela brutalidade de processos, pela insensibilidade de tratamento, características que se apartam da feminilidade. Rejeita as caixas automáticas: ou porque lhe cheiram à efeminização do carro, território consagrado da masculinidade marialva, ou porque nelas vê um desvio homossexual que também renega.

Regressa ao prolongamento fálico que encontra na manete da caixa de velocidades manual. Como macho que se gaba de o ser, o que pior lhe poderia acontecer seria a castração. Ver-se num carro com caixa automática é sentir-se destituído da orgulhosa marca da masculinidade, a fálica condição que eleva o homem ao estatuto de sexo forte. Um passo breve o separa da sentença: carros com caixa automática ou são para senhoras, ou para homens arrependidos de o serem, ou para homossexuais que assumem a frustração de não serem mulheres, ou para amibas acobertados no comodismo de uma condução sem sal.

Mas também é verdade que esta personagem está rodeada de incontáveis preconceitos que lhe toldam a análise!