Nunca pensei algum dia escrever sobre Michael Jackson. É artista que está nos antípodas das minhas preferências musicais. Como se isso não bastasse, destila estranhos tiques, manias inconsequentes, sinais de esquizofrenia que o elevam ao estatuto da anormalidade. As suas patéticas excentricidades colocam-no no pedestal do risível. Será um produto do marketing que amarra um séquito de fiéis seguidores que deliram religiosamente com os discos que o outrora negro publica. E há essa aberração da natureza que é conhecer alguém que mudou de cor, numa espécie de racismo ao contrário.
Nunca pensei que pudesse elaborar o raciocínio que se segue sobre os problemas que Jackson viveu com a justiça. Confesso um preconceito pessoal: pelo que Jackson é, não me move simpatia. Quando rebentou o escândalo que o levou a sentar o rabo no banco dos réus, no meu íntimo cresceu a convicção: “claro que ele é culpado”. Era, como direi, um malvado desejo de o ver a contas com a justiça, a responder no tribunal perante os crimes de que acusado, e que tudo culminasse com a ida para a prisão. A antipatia pessoal levou-me à desfocagem da realidade. Em bom rigor, que conhecimento de causa tinha para formar a convicção de que Jackson era culpado? Daí o preconceito que confesso.
Jackson foi julgado. O júri decidiu absolvê-lo de todas as acusações. Saiu em liberdade e varreu a aleivosia que sobre ele pesava. Fiquei contente? A minha felicidade passa ao lado do que acontece ao Sr. Jackson. Repito: alguma malvadez espontânea dentro de mim sugeria sentença contrária. Mas o tribunal decidiu absolvê-lo. Não vale a pena continuar a alimentar a especulação, com engenhosas teorias da conspiração que apenas arranjam pretextos para a absolvição. Como se, apesar da sentença do tribunal, sobre Jackson continuasse a pesar o juízo dos populares que dele não gostam e que continuam a acreditar que ele fez as coisas tenebrosas de que vinha acusado.
Irracionalmente, gostava de o ver condenado. Mas respeito a decisão do órgão que existe para fazer justiça. Pode-se tentar arranjar mil e uma desculpas que explicam a absolvição. Alegar que, por uma divina coincidência, o sorteio do júri produziu um colectivo formado em maioria por simpatizantes de Jackson. Ou adivinhar que se estivesse sentada no banco dos réus pessoa anónima a sentença seria diferente. As elucubrações podem ir mais longe, entrando no domínio do fantasioso: sugerindo que muito dinheiro correu debaixo da mesa, para jurados e testemunhas que desdisseram depoimentos anteriores. Nada apaga a sentença que absolveu Jackson. A sentença que deve ser respeitada, mesmo por aqueles que muito gostariam de o ver condenado.
Respeitando o sentido da sentença, há uma interrogação a que não se pode escapar: depois de tanto tempo em que a suspeita pairou sobre Jackson, depois de se terem formado convicções de que ele era abusador sexual de crianças desfavorecidas, como limpar a sua imagem? Mesmo saindo em absolvição, há algo que não consegue ser apagado da memória: a imagem chamuscada do artista. Nada pode ser feito para restaurar a imagem que ele tinha antes de ser acusado dos crimes que o levaram a tribunal. São danos irreparáveis. Não há mecanismos que permitam regressar ao tempo em que tinha a imagem imaculada de quem não molestava sexualmente inocentes rapazes.
É difícil ser figura pública nos tempos que correm. A crer na sentença que o ilibou (sublinhe-se este pressuposto, para validar a conclusão que vem de seguida) basta uma orquestração de vontades para queimar a imagem da figura pública. Que tem que se defender em tribunal. Ao arrepio das mais básicas regras do direito, pois sobre ele se impõe o dever de provar a inocência. E, quando o pesadelo termina e o tribunal o absolve, a suspeita de que não se fez inteiramente justiça fica a pairar, impedindo a restauração da sua imagem. Imaginemos que ele é mesmo inocente: como se repara esta injustiça? (O que se aplica a qualquer pessoa que tenha estado nas mesmas circunstâncias de Jackson).
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