24.6.05

O estigma de Carrilho

“Quem não quer ser cordeiro não lhe veste a pele”. Um adágio popular, no espírito de contradição da figura de Manuel Maria Carrilho. Investido na condição de máximo expoente da elite intelectual, deve vituperar adágios populares. Nisso estou de acordo com ele. Mas como hoje é dia de S. João, e na festa do povo se convencionou que o povo há-de ter sempre razão (pelo menos quando convém…), lembrei-me daquele ditado popular para reflectir o dilema existencial do filósofo Carrilho que se decidiu travestir em político.

Conta a tradição que no dia de S. João se fazia a chacina de cordeiros, para gáudio da horda que via na degustação do animal um traço simbólico das festividades. Em Carrilho vejo a mesma chacina, auto-infligida, é certo. Foi Carrilho que quis vestir a pele de cordeiro. Foi ele que se foi pondo a jeito da devassa, do chiste, da paradoxal imagem que cultiva – aquela aura de ser bem pensante, na vanguarda do bom gosto, mas ao mesmo tempo prenhe de clichés que o colocam no universo do kitsch. Carrilho era um académico reputado. Tinha atingido a cátedra, o topo da carreira académica, ainda jovem para os padrões actuais e para o contexto da carreira. Quis penetrar o universo da política, dando azo a ambições irreprimíveis. Está no seu direito. Ao fazê-lo, passou para o terreno do mediatismo. Expôs-se aos olhares curiosos que adejam a classe política. Quis vestir a pele do cordeiro, e agora anda a ser tosquiado. E tanto se pode sair bem (se ganhar a corrida para a câmara de Lisboa), como ser degolado (se perder, pondo fim a uma “promissora” carreira política).

Carrilho é daqueles políticos que não esconde as ambições vastas que povoam o seu espírito. Nada me move contra pessoas ambiciosas. É sinal de vitalidade, portas entreabertas a espíritos inventivos benéficos para os próprios e para a colectividade. Exaspera-me, isso sim, os que vivem presos aos excessos de ambição e se deixam inebriar pelo perfume da inevitabilidade da sua pessoa. Reproduzem o mundo com o fiel da sua lente: sem eles o mundo é banal; com o seu inestimável contributo, o mundo é um lugar melhor para se viver. São os eleitos de uma gesta de privilegiados fadados para o império do poder. Ainda que tenham que espezinhar os que se atravessam no caminho e ousam desafiá-los. É aqui que o perigo entra em rota de colisão com estas personalidades: não hesitam em recorrer a todos os meios para atingir os fins.

No lançamento da candidatura de Carrilho à autarquia de Lisboa, um filme patético deu brado: a consorte e o rebento apareciam, numa espécie de vídeo familiar, dando provas do previsível – o apoio ao “chefe de família”. Até o pequeno infante, ainda a desbravar o fascinante reino das palavras, já soube esboçar “papá” quando a mediática consorte o interrogou sobre o melhor candidato à câmara de Lisboa. Patético e piroso, para dizer o mínimo. E por mais que os apoiantes da figura (e o próprio, pelo seu punho) tenham tentando lavar a face do candidato, esgrimindo argumentos que tornam aceitável o aproveitamento do meio familiar como arma de campanha, não fico convencido.

Do alto da sua sabedoria, Carrilho e apaniguados esforçam-se por ir ao baú das recordações e mostram como outros políticos se rodearam da família em acções de campanha. Falham o alvo. Os candidatos estão no direito de decidir se devem expor a família ou não. Mas quando tentam passar a mensagem de que até uma criança com pouco mais de um ano apoia a candidatura do pai, passa-se do enternecedor para o absurdo. Entramos no campo da manipulação pura e dura, mostrando que quem o faz não olha a meios para atingir os objectivos. No caso, o vídeo é um instrumento de uma estratégia de “política cor-de-rosa”, como se fosse importante cativar as preferências dos eleitores dados aos aspectos mundanos da vida. Como se fossem os aspectos cor-de-rosa da vida do candidato a afirmar a qualidade do seu projecto. É o nivelamento por baixo, vindo de alguém entretido com o culto da personalidade, na vereda percorrida para mais alto voos (alguém se convence que Carrilho quer ficar pela câmara de Lisboa?).

Na memória guardo as palavras ditas num discurso solene, em Inglaterra, por um adepto dos servidores da causa pública. O orador aplaudia a coragem dos que se expõem perante os olhares indiscretos do público. A sua tenacidade era elogiada, porque há a necessidade de alguém se sacrificar quando se coloca ao serviço do público. Nos dias que correm, o preço mais elevado a pagar é a exposição pública, quantas vezes a devassa da vida pessoal, a perda desse bem tão valioso chamado anonimato. Eu não tenho uma visão tão romantizada. Não vejo os servidores da causa pública como ascetas que abdicam da sua vida. Antes, pessoas que através do serviço público servem interesses privados – os seus e do séquito adjacente. Para alguns, a exposição pública não é uma maleita. É o afago supremo de um ego que vai além da existência pessoal.

Lembro-me, outra vez, do elogio solene aos devotos servidores da causa pública. Fosse tão ingénuo como o orador e apetecia perguntar: o que leva Carrilho, afamado académico, reputação irrepreensível, a prescindir da tranquilidade da vida de académico numa transferência para o bulício da vida política? Que cálculos terá feito para concluir que é compensadora a troca de uma vida sossegada por outra em que é alvo constante da chacota, da perda do valioso bem que é andar na rua sem ser reconhecido?

(Em Vilamoura)

3 comentários:

Anónimo disse...

Completamente de acordo contigo meu caro felino.
A tendência para a celebridade fácil nesta sociedade consumista é como que um vírus, que nem os intelectuais conseguem escapar.
A ideia do génio desconhecido é algo que se perdeu pela mediatização forçada da politica e de todos os sectores em geral.
Resistir à exposição familiar, no caso particular da política é sinónimo de carácter e de não cedência ao pseudo marketing político, no que ele tem de pior.
É a chegada dos "plebeus" ao universo político;a falta de tradição e de princípios de exemplo rigídos de integridade faz com que o nivelamento seja feito por baixo, degrau a degrau numa espiral descendente que envergonha o país, que nos envergonha a todos.
A celebridade fácil e fútil é um prémio para os pobres de espírito, que nela investem todas as suas energias e recursos.

Boas Férias

PVM disse...

Bem-vindo de regresso aos comentários, Carter!
Consegues sintetizar a mediocridade que nos invade por todos os poros. E que vem de todos os quadrantes. Quando não são os oportunistas da política, que nunca sairiam da cepa torta a não ser no jogo mesquinho do carreirismo político, são estas “personalidades” de elevada estaleca intelectual. Ainda hoje, ao almoço, via imagens da criatura em causa, acompanhada da sua cara-metade mediática e de um cantor que é ministro da cultura do Brasil. É a pose que enoja, típica que quem fita quem o olha e interroga com o olhar: “digam lá se não sou o mais inteligente, o mais bem vestido, o gajo da minha idade que conseguiu abocanhar uma starlete deste calibre, o mais elegante, o mais, o mais, o mais (até à exaustão)”.
O homem, por ser catedrático da filosofia, terá desencantado a cartilha socrática do antigamente e pensa-se o dono da república amesquinhada em que estamos espraiados. Era capaz de apostar que, apesar do chorrilho de piroseiras e dos atropelos à inteligência dos outros, este homem vai longe na carreira política. Não estranharia, daqui a algum tempo, vê-lo em Belém ou em S. Bento.
Paulo Vila Maior

PVM disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.