9.6.05

Pecado carnal

Não é isso que estão a pensar…

Circulava pela auto-estrada com alguma velocidade, porque o relógio se tinha adiantado ao compromisso agendado. Dos veículos ultrapassados, um ficou na retina: uma carrinha de transporte de carne porcina. A confissão da infracção ao código da estrada (secção: excesso de velocidade) impediu-me de fixar o nome da empresa proprietária da carrinha. Apenas retive o “salsicharia-charcutaria”. A caixa frigorífica estava decorada de forma sugestiva: um avantajado painel que retratava a carcaça de um porco, carcaça esventrada a meio. Que preenchia a parte traseira da caixa frigorífica. E, em escala ainda maior, o lateral de uma extremidade à outra.

Sou consumidor de produtos que derivam de carne porcina. Salsichas, enchidos vários, a carne em si, são parte da minha dieta. Por enquanto. Porque me choca ver retratado o cadáver do animal numa carrinha que se dedica ao comércio da carne. Poderão erguer o dedo acusador à minha incoerência. Admito mesmo que me acusem de ser hipócrita. Afinal choco-me com a imagem do animal morto, mas delicio-me com o aproveitamento que se faz da carne retirada da sua carcaça.

Os breves instantes que coincidiram com a ultrapassagem da carrinha encheram-me a memória por muito tempo. Levando à reflexão sobre a bestialidade humana. Pondo de lado a incoerência que sobre mim pesa, não consigo perceber de onde vem o prazer dos humanos quando dão de caras com o cadáver de um animal, o mesmo cadáver que vai regalar as papilas gustativas dos espectadores que em breve se tornam comensais. À memória vêm imagens de um ritual consagrado da denominada “cultural popular portuguesa”: a matança do porco. As breves imagens que pude captar em reportagens televisivas, já que nunca aceitei presenciar tal acto de barbárie.

Sou incapaz de perceber o que leva os convivas a cercarem um porco indefeso, assistindo com os olhos esbugalhados de prazer ao facalhão que perfura a barriga do bácoro. Qual o prazer que se pode retirar dos gritos de dor lancinante que o porco liberta, o som gutural que se ouve antes do animal definhar de vez, perante a água na boca que cresce nos convivas, enquanto se ouve no gravador fanhoso uma cassete que reproduz um qualquer rancho folclórico com uma voz feminina esganiçada? A mesma voz esganiçada do porco quando sente a faca perfurar as suas entranhas, com o sangue que jorra abundante e que lhe furta os últimos instantes de vida. Na presença de uma audiência que vibra, aplaude, bate o pé ao som da excelsa música que empastela o éter à medida que a respiração do porco se extingue e começa a pairar no ar o cheiro a queimado que vem da carcaça chamuscada. Um bando de abutres, em nome de um ritual, da tal “tradição” que quando é popular há que não pôr em causa.

A todos os povos os seus rituais. Uns mais estupidificantes, outros sem a mácula da bestialidade. Por cá a matança do povo; do outro lado da fronteira, a turba entusiasmada que delira com o touro que se ajoelha perante o carniceiro toureiro que acabou de lhe espetar a espada da morte na nuca; pela Inglaterra, que se pavoneia como berço da civilização moderna, a absurda caça à raposa. Um pouco por todo o lado, o desporto da caça, na obtusa convicção que é receita necessária para o equilíbrio cinegético.

Desconheço se o abismo pelos maus-tratos a animais sinaliza a crença de que a espécie humana está num patamar de superioridade em relação às demais. Ou se é a consequência do ciclo de vida, da necessidade de sacrificar animais para a subsistência alimentar dos humanos. Apenas digo que as coisas podiam ser feitas de maneira mais discreta. Sem se usar essa necessidade essencial como meio de fazer espectáculo. Quando tal acontece, é a vertente mais grotesca do Homem que vem à superfície.

É nestes momentos que me atormento com a minha incoerência, a hipocrisia que me domina, a gula de que não me consigo desligar. É nestes momentos que mais me apetece ser vegetariano.

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