29.6.05

Sindicatos que não pertencem a este tempo

Se a memória não me atraiçoa, um fenómeno interessante repete-se ciclicamente: quando os socialistas abocanham o poder, cresce a contestação social. Para os devidos efeitos, convencionou-se que a contestação social espelha as manifestações de rua organizadas por uma central sindical correia de transmissão de um partido que não chega a representar 10% do eleitorado. Contestação social também é a expressão das greves que defendem os interesses de uns poucos, nem que para tal seja necessário sacrificar uma imensa maioria.

São os socialistas, uma vez instalados temporariamente no poder, que mais têm suportado o desconforto do vozeirão sindical. O que prova como se rompeu a linearidade do espectro direita-esquerda. Ao comparar os índices de contestação social em governos PSD e em governos PS, em teoria seria mais fácil assistir a representações extremadas de protesto com os primeiros. A prática mostra o contrário. Talvez sinal de que os comunistas arregimentados em torno da CGTP estão mais à vontade para morder as canelas dos socialistas, de quem estão teoricamente mais próximos. O assunto podia ser investigado por psicólogos, para descobrirem o complexo que domina esta relação tormentosa entre socialistas e comunistas. Avanço uma hipótese de trabalho: os primeiros desviaram-se da ortodoxia marxista, à qual os segundos ainda dedicam toda a sua fé. Esta é a sua heresia.

Ontem, mais manifestações de rua, com o condão de serem notícia de abertura em noticiários nocturnos. Desde há algumas semanas que a contestação social fala bem alto nas ruas, pela palavra de sindicalistas catequizados, com o beneplácito de políticos que se grudam às manifestações, numa osmose que não deixa perceber onde começa o sindicalista e termina o filiado no partido. Protestam contra as decisões do governo que ameaçam retirar privilégios exclusivos dos funcionários públicos. Pelo caminho, entoam palavras de ordem, cânticos ao jeito das hooliganescas claques de futebol. Ontem ouvi, numa repetição nauseabunda, chamar “mentirosos” aos membros do governo.

Num aspecto estou de acordo com os esmerados sindicalistas: este governo tem tomado decisões que são o contrário das promessas eleitorais que foram o cardápio para a sua eleição. Podemos acusar o governo de ser mentiroso, como fazem os sindicatos de inspiração comunista. Podemos contemporizar, como os apaniguados do partido da rosa, dizendo que a ruptura das promessas se deve ao legado dos governos anteriores. Seja qual for a fórmula, é verdade que o programa eleitoral que levou muitos cidadãos a votarem no PS está a ser incumprido. Mas não será este pormenor que mobiliza os sindicatos para o protesto ensurdecedor.

É intrigante como os protestos revelam uma face escondida que irmana socialistas e comunistas. Estes, sem o confessarem, acabam por se rever nas promessas que levaram o Eng. Sócrates à maioria absoluta. De outro modo, como entender que agora manifestem o seu incómodo, chamando mentirosos aos ministros que defraudaram as suas expectativas? Quem sabe se alguns deles, violando a sagrada disciplina partidária, não contribuiriam para a histórica maioria absoluta dos socialistas…

A essência da questão – porque protestam? Em defesa de regalias iníquas, que favorecem os trabalhadores que menos merecem. Apetece aplicar uma máxima do futebol: benefício do infractor. Esquecem-se que há pessoas que não têm a sorte de trabalhar na administração pública, para quem estas regalias são uma miragem. São os sindicatos, professando teorias que se dizem tributárias do valor supremo da “igualdade”, que na prática desmentem o valor. São economistas que trabalham nestes sindicatos que continuam a debitar uma cartilha económica anacrónica como instrumento de crítica às medidas de aperto orçamental que só pecam por serem escassas e por se enganaram no alvo prioritário (aumentar impostos, em vez de cortar a eito nas despesas).

Tenho que aperfeiçoar o espírito cínico que vai habitando em mim. Olho para este panorama e fico revoltado: pelo tempo de antena dado a sindicatos que representam uma minoria, ainda por cima parasitária; pelos disparates proferidos pela douta palavra de sindicalistas e seus gurus; pela condescendência geral, pois quem se opõe às ideias dos sindicatos arrisca-se a que lhe caia em cima o epíteto de “fascista”. Tenho que levar o cinismo ao máximo, para me rir, rir com gargalhadas sonoras com este espectáculo que lança um fogo-fátuo. E pensar: que continuem assim, os sindicatos. Que permaneçam imobilizados num tempo que pertence ao passado. Quanto mais teimarem em serem como sempre foram, menor a credibilidade, menos os adeptos (basta ver a faixa etária dos manifestantes…). Até que um dia o repto final surgirá pela frente: ou se modernizam e perdem o timbre demagógico e politizado, ou desaparecem.

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