Foi no sábado, mais um momento de exaltação patriótica: o dia das forças armadas (ou coisa que o valha). Como os cofres públicos estão à míngua, foram parcos e modestos os festejos militares. Os aviões nem sequer levantaram voo para as habituais acrobacias. Para desgosto das hormonas aos pulos dos seus pilotos e para infelicidade das patentes da força aérea, sempre na linha da frente para mostrar a “riqueza de meios”.
Como os cofres do Estado têm os tostões contados, o ministro da tutela teve o discurso pedagógico que se impõe. O discurso da racionalização de meios. A contenção de custos, que já tinha chegado às forças armadas há algum tempo, tem agora nova arremetida. É o país de tanga, agora embuçado por um mais estreito fio dental que deixa quase tudo à mostra…
Na lógica de racionalização de meios e de custos, o ministro da defesa lá concedeu, qual rebuçado para adoçar as bocas dos militares, que as forças armadas ainda têm um papel activo na defesa da independência nacional. A fórmula escolhida não foi a mais feliz. Metendo a seara em foice alheia, o ministro da defesa dissertou sobre a crise orçamental que obriga o governo a fazer tábua rasa das suas promessas eleitorais. No apogeu do discurso pedagógico, o governante sentenciou: a manter-se a crise das contas públicas, é a independência nacional que está em causa. A ambiguidade foi esclarecida com mais ambiguidade, quando veio dizer que estava a falar em sentido figurado!
Ouvi isto em viagem de regresso a casa, depois de uma semana a descansar os neurónios. Em pleno Ribatejo, na monotonia da paisagem e de uma auto-estrada que convida a velocidades proibidas pela sanha persecutória do código da estrada, deitei-me a imaginar o que seria de nós se um belo dia um governante perspicaz decidisse saldar as forças armadas. O momento de fechar as portas para balanço. O governante ideal (que, por o ser, não existe) teria chegado à brilhante conclusão que as forças armadas são um sorvedouro de dinheiro sem que ofereçam contrapartidas que se vejam. Até porque os tempos são outros. De desanuviamento mundial, sem os perigos passados que punham em causa essa vaca sagrada – a soberania, a independência nacional.
O governante ideal teria tentado reconverter as forças armadas a exercícios com alguma utilidade. Esbarrara no orgulho másculo, nas tradições arreigadas de belicismo anacrónico. Não restou outra opção senão colocar as forças armadas à beira do precipício. O governante esforçara-se por mobilizar as forças armadas para actividades úteis. Por exemplo, tirar as tropas dos quartéis, onde passam largo tempo a brincar às guerras, a beber cerveja, em concursos de boçalidade, a consumir avidamente revistas pornográficas. Mandá-las para as florestas, para a limpeza de matas, na prevenção dos fogos de que tanto se fala e que, ano após ano, fica sempre por cumprir. Mandá-las para as florestas, combatendo os fogos. Os meios da força aérea seriam reconvertidos para o auxílio ao apagamento dos fogos.
Um esboço para tentar dar alguma “utilidade social” às forças armadas, um esforço último para a sua sobrevivência. Os militares, remetidos ao reduto das casernas – esse mundo absurdo, enquistado numa caverna desfasada dos tempos que correm –, ter-se-iam recusado. Consideravam humilhantes as novas tarefas. Irredutíveis, lavraram pelo seu punho a sua extinção. Para bem das contas públicas. O erário público agradeceria a folga dada pela desobrigação de verter dinheiro a rodos para umas forças armadas destituídas de utilidade.
Apetece especular: imaginar o que aconteceria se um dia acordássemos e já não houvesse forças armadas – nenhum dos ramos. Dizem os costumes, teríamos a independência nacional em risco. Alguém acredita que, na ausência de forças armadas, os espanhóis – ou outro país – nos invadissem com os seus meios bélicos? Mesmo a marinha, agora fadada para a vigilância marítima, para acções que tentam impedir a criminalidade económica que chega por mar, parece desnecessária. Na semana passada foi encontrada uma lancha recheada de estupefacientes vários, encalhada em Caminha. Quem a detectou não foi a marinha, mais os seus “meios sofisticados”. Foi um pescador amador.
Eis como fica provado que a iniciativa privada se substitui, com eficácia, aos meios do Estado. Com a vantagem que se poupa muito, muito dinheiro. E quando se menciona a poupança de recursos ao erário público, estamos a falar da possibilidade (sublinhe-se, possibilidade) de pagar menos impostos. O nirvana!
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