1.6.05

As alminhas nas estradas

Percorrem-se as estradas de norte a sul e, de quando em vez, ao dobrar uma curva mais apertada, na berma aparece uma modesta estatueta com uma santa, decorada com flores que ora estão no pleno do seu viço, ora estão secas pelo calor severo do sol de Verão. O rigor impõe uma nota de correcção: agora, com a moda das auto-estradas e dos itinerários principais que seguem os modelos importados da Europa civilizada, a estatuária das santinhas começa a escassear.

Estas estátuas que parecem venerar uma santa da devoção popular são, afinal, uma dolorosa homenagem prestada a alguém que perdeu a vida ao volante do automóvel, naquela particular curva que atraiçoou uma viagem que nunca chegaria ao fim. Em boa verdade, marcam o final de uma viagem, uma vida tolhida com violência nos destroços do carro acidentado. São as alminhas edificadas pelos familiares que penam a dor da perda do ente querido. Numa homenagem sentida no lugar da primeira sepultura das vítimas do acidente, invocando uma qualquer santa que não pode socorrer a pessoa que viu chegar o fim da linha na curva traiçoeira que não conseguiu desfazer.

Impressiona-me a cadência das alminhas espalhadas pelas estradas. Não que as estradas estejam pejadas com a estatuária que é um misto de devoção religiosa e de sentida homenagem a uma pessoa querida que partiu. Elas aparecem de surpresa: quando as curvas de uma estrada sinuosa se sucedem a um ritmo enfadonho; num cruzamento traiçoeiro que ceifou a vida de um imprevidente que avançou quando não devia. Fico impressionado com a assiduidade com que as pessoas que cultivam as alminhas repetem as visitas ao local, renovando a floreira como sinal de que a pessoa querida ficou bem resguardada na memória intemporal. Impressiona-me, porque regressar ao local onde o ente querido se esvaiu na morte deve ser um momento doloroso, dilacerante.

As alminhas representam uma prática de que me distancio: o tributo às figuras santificadas (quando afinal elas não foram os anjos da guarda que teriam que velar pela vida do protegido); o simbolismo da sepultura onde ficam gravadas as memórias de uma vida perdida (nisto sou adepto da cremação, confesso-me desconfortável com as sepulturas em cemitérios). Mesmo assim não consigo deixar de me impressionar pela persistente coragem de quem cultiva esta particular forma de homenagear as pessoas que partiram do mundo dos vivos. Imagino a dor profunda que as consome, meses, anos depois de ter sido subtraída a vida pela estrada impiedosa, por um outro automobilista inconsciente, pela inépcia do familiar que não soube controlar o seu veículo.

As alminhas semeadas nas bermas das estradas são a primeira sepultura dos acidentados. O local onde a vida se perdeu atrai os condoídos familiares que se desdobram em tributos pessoais pelos dois túmulos que consideram existir: o do local onde se perdeu a vida, e o do cemitério onde jazem os restos mortais. Tudo isto me abala pela atracção da dor que leva estas pessoas a erigir a alminha e a mantê-la com uma religiosidade ímpar. Não duvido dos sentimentos que percorrem o interior destas pessoas. Digo que me arrepia a frequência de cemitérios, e por isso perturba-me saber que há quem cultive a dor redobrada de se deslocar às duas sepulturas da mesma pessoa.

Homenagem? Ou atracção pelo abismo da mortificação pessoal? Como se fosse necessário atravessar a via-sacra do padecimento individual para compensar a brutal perda da vida ocorrida entre a amálgama de ferros em que se transformou o automóvel feito túmulo. A resposta está na subjectividade de quem aprecia as coisas. Os hábitos enraizados levam a pessoa comum a prestar tributo aos mortos que lhe foram queridos de uma forma que talvez nunca tenha feito em vida. Respeite-se o ritual. Repito-o: impressiona-me o ritual, eu que seria incapaz de o cultivar.

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