A canícula morde com todos os dentes. Cartão de visita do Verão que o calendário anuncia para breve, mas que já se apoderou dos corpos, numa liquefacção difícil de vergar. Com o calor, os incêndios. As imagens de sempre. Florestas feitas num impressionante archote, o desespero das pessoas que ficam sem terras, cultivos, animais e haveres. Bombeiros que não descansam, lutando contra as chamas que dançam de um lado para o outro, empurradas pelo vento seco, alimentadas pelo sol abrasador.
O governo decidiu algo de sensato: durante a época de incêndios está proibido o lançamento de foguetes nas zonas rurais, as mais propensas ao fogo. Lá fica o povo sem o afamado fogaréu que faz as delícias de qualquer romaria que se preze. Não há festança popular que não tenha epílogo no lançamento de abundantes petardos que iluminam a noite com cores multifacetadas, numa coreografia de luz que prende os olhares dos populares ao céu alardeado. Não há festa de Verão que não ribombe na alvorada com petardos ensurdecedores, a lembrar o calendário das festividades.
A tendência para o barulho revela a idiossincrasia popular. Atestando um povo fadado para extremos – melancólicos na maior parte do ano, adormecidos, com predestinação para as tristezas cantadas no fado; mas de súbito dados ao arrebatamento, ao excesso dos festejos, quando o calendário traz a data da festa anual da terrinha. O povo gosta dos rebentamentos que ameaçam furar os tímpanos. O estampido do foguetório matinal, que consiste no pequeno nada de lançar uns petardos bem audíveis que troam no ar, permite compreender o gosto pela flatulência que o povo não desdenha. Ou como os populares se deliciam com as bandas dos bombeiros voluntários que desfilam garbosamente pelas ruas da aldeia, batendo com vigor nos tambores a um ritmo compassado e fastidioso. Estranhos hábitos de melodia! Bizarras tendências musicais que se contentam com umas batucadas repetitivas no dorso dos tambores, levando à exaustão um ritmo que se repete e repete e repete sem fim.
Um povo que gosta de estampidos, de ruído que entra nos ouvidos e os preenche com uma inaudita melodia. Com estes hábitos musicais, não estranha a ausência de tradição na música clássica. Os grandes compositores abundam nos países da Europa central; por cá, são aves raras na fauna artística. Aposto que nos países da Europa central a indústria do fogo de artifício não é próspera como no Portugal dos petardos. Sinal de que a população foi educada, de há séculos, noutros timbres musicais que ultrapassam os rudimentos dos ritmos martelados com a força bruta dos músculos braçais dos valorosos voluntários que empunham os seus pesados tambores. A estética destes povos não se encaixará na absurda barulheira que acorda os noctívagos, com os petardos que ecoam no ar, assustando os desatentos.
Abeira-se o Verão com as vagas de calor. Já com os primeiros incêndios que levantam temor, numa repetição dos anos anteriores. As imagens de mais floresta a arder fazem pensar no restolho que ficou por ceifar, o combustível que ateia os fogos que consomem mais e mais árvores. Vai a mancha florestal desaparecendo nas cinzas que são os despojos dos fogos. Ano após ano, menos floresta e mais desertificação. Fez bem o governo em vedar o lançamento de foguetes que, está provado, tantas vezes são a acha de incêndios que num ápice ficam descontrolados.
Faltam agora as vozes de protesto. Dos que consideram que esta medida está contra uma “tradição popular” – e as “tradições populares” são território enquistado, tabus perenes, inamovíveis! Faltam os protestos da indústria do fogo de artifício, com as usuais lamúrias quando industriais de qualquer ramo vêm numa decisão governamental algo que antagoniza os seus interesses. Lá virá a ladainha do costume: um mar de prejuízos, o fantasma do desemprego e os elevados custos sociais que ele representa, etc., etc. Depois estendida será a passadeira vermelha aos sindicatos: que esta decisão é contraproducente, porque vai empurrar muitos trabalhadores para o desemprego. Para encerrar o rosário das críticas, as criaturas com tendências antropológicas: que isto atenta contra usos estabelecidos há séculos, difama a voz popular, afinal o esteio da democracia. De um passo só, ajuizar a decisão como antidemocrática, porque espezinha os interesses do povinho.
Que o povo se contente com a música pimba que enxameia as festas populares estivais. Não lhes chega para comprazimento da alma? Ou será que à poluição sonora e visual insistem em adicionar a poluição auditiva que, por vezes, tem os danos colaterais na forma de incêndios devastadores?
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