20.6.05

A cleptocracia angolana

Imagens de luxo abundante. De damas ostentando as suas vestidos refulgentes, compridos, lantejoulas que brilham sob os holofotes. Respigam a sua grandiosidade no testemunho das etiquetas de afamados costureiros. Os maridos, aperaltados na fatiota ocidental, aparentam mais discrição. Todos se reúnem à volta da mesa, num clube farto em Luanda. Na companhia de duas estrelas do futebol mundial. Apadrinham uma iniciativa de uma “fundação” presidida pela senhora que esposou o ditador angolano. Diz a notícia, uma “fundação” para apoiar os mais carenciados.

O altruísmo é sempre de enaltecer. Ainda mais quando os actos de altruísmo revelam a intenção de ajudar os mais pobres. Altruísmo condoído pelas dores de consciência dos abastados angolanos que fizeram fortuna à sombra de um regime corrompido. Pobres não faltam por aquelas terras de abundância. O problema é a riqueza estar tão mal distribuída. É nestes momentos que me enternecem as análises eruditas dos detractores dessa coisa arrepiante chamada capitalismo. Sempre agarrados ao chavão de que 80% da riqueza é detida por apenas 20% da população. Sentenciam: a riqueza é distribuída de forma desigual, uma tremenda injustiça que mancha o capitalismo.

Pena que estes cultores da antítese do capitalismo (que não se chega a perceber bem que modelo alternativo sugerem) tenham uma visão de um sentido só. Só olham para os países mais ricos, onde o capitalismo atinge o seu expoente máximo. Esquecem-se de estender a sapiente análise a países que aparecem mais abaixo na escala, mas onde há abundância de recursos naturais apropriados por uma escassa elite. Esquecem-se de entrar pela realidade destas cleptocracias, onde as elites votam à escabrosa miséria toda uma população para quem a sobrevivência diária é o grande desafio a vencer.

Os adeptos da alter-globalização nada dizem das cleptocracias onde grassa uma miséria hedionda, onde a desproporção é mais acentuada. Em países como Angola não andará longe da verdade dizer que 99% da riqueza está nas mãos de 1% da população (se formos optimistas). O que é mais grave: uma distribuição iníqua, onde 80% das pessoas têm acesso apenas a 20% da riqueza, existindo casos de pobreza que não atingem a escala de sofrimento generalizado das cleptocracias africanas? Ou a perversão de concentrar quase toda a riqueza num escol de iluminados que a nomenclatura partidária ditou na escala de ascensão das influência e da apropriação de regalias?

É nas cleptocracias que ainda estão por satisfazer, em maior medida, necessidades essenciais para largas franjas dos cidadãos. É aí que campeia a miséria na sua face mais ignominiosa. É aí que se acobertam falsas democracias, reciclagens da queda do muro de Berlim, que exigiu operações de cosmética para a sobrevivência dos regimes cleptocráticos. Com o registo de outra diferença fundamental: nos países onde há capitalismo há um mercado aberto, pleno de oportunidades que estão acessíveis a quem tenha o engenho de transformar ideias em bem-estar. Nas cleptocracias o mercado é uma ficção. É o critério de pertença política (com o auxílio do critério familiar, em muitas casos) que cauciona o acesso às oportunidades. Com muita corrupção à mistura, que desvia ainda mais recursos para as mãos dos endinheirados e influentes membros da cúpula política.

Foi tocante ver as duas estrelas do futebol mundial patrocinarem, com o cunho da sua presença, a incitativa filantrópica da primeira-dama angolana. Sem saberem se é apenas uma forma de lavar uma ínfima percentagem do dinheiro sujo que o ditador angolano vai amealhando nas suas contas detidas em bancos suíços. Com o beneplácito da elite que se banqueteia à mesa do ditador que aumenta o seu pecúlio, nem que para isso continue a mergulhar o povo que governa no mais vergonhoso sofrimento.

Oxalá houvesse meio de sentar criaturas deste jaez no banco dos réus. Julgando-as por serem os primeiros responsáveis pela miséria que abunda nos países que lideram.

(Em Vilamoura)

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