21.6.05

Quinze anos mudam muita coisa

O tempo é balsâmico. Soberano de si mesmo, nele germina a mudança. Com os ponteiros do relógio que batem sem cessar, sedimentam-se as alterações que fazem de nós pessoas diferentes das que conhecemos outrora. A amplitude da transfiguração varia. Mas tenho a impressão que o fenómeno toca a todos, mesmo aos que, orgulhosos, querem mostrar resistência à erosão do tempo.

Há momentos em que se exige um mergulho no passado, numa viagem pelo empoeirado livro das recordações assimiladas. Para fazer um balanço do que mudou com o hiato decorrido. Foi assim que me lembrei da passagem de ano de 1982 para 1983 (se a memória não me atraiçoa). Uma das mais bizarras passagens de ano de que me recordo. Eram anos de efervescência na música moderna portuguesa. Começavam a gotejar novos grupos, novas sonoridades, uma tentativa para partilhar o código genético de novas vagas musicais que percorriam o mundo, com a inspiração dominante da música anglo-saxónica. Os UHF eram figura emblemática da nova corrente musical. Naqueles anos consumia UHF com avidez. Com o entusiasmo próprio da adolescência, os ouvidos não se cansavam de escutar pela enésima vez o vinil dos UHF, que se ia desgastando com a insistência.

Corria o Dezembro já avançado quando um amigo, também cultor dos UHF, me disse que o grupo vinha fazer um concerto ao vivo no Porto. Convém esclarecer que nesses tempos escasseavam eventos do género. Não havia um mercado de espectáculos ao vivo no domínio da música moderna, como hoje acontece. Quando sabíamos de um destes espectáculos era como se nos dessem uma iguaria que só podíamos degustar a espaços. Daí a excitação. Havia um senão a vencer: o concerto dos UHF estava enquadrado no réveillon organizado pelo partido comunista, célula local. No pavilhão do Académico do Porto. Aliás, existia outro senão: a primeira parte era reservada a Paulo de Carvalho, “grande artista”.

Sendo então um anti-comunista primário, foi um enorme elefante que tive que engolir ao tomar a decisão de partilhar a passagem de ano com uma multidão de fiéis camaradas da causa comunista. Hesitei. Decidi abdicar das antipatias ideológicas, dando vencimento ao apelo que vinha do interior e que convocava o espírito para as sensações fortes da música ao vivo dos UHF. Numa escala de prioridades, essa era a determinante. Tão forte que bastava para suportar a companhia dos camaradas do partido comunista e a música inenarrável de Paulo de Carvalho.

Um salto no tempo, até 1997. A coincidência agendou um concerto ao vivo dos UHF para o Algarve, numa discoteca onde fui com um grupo de amigos, numa noite de Maio. Fomos apanhados de surpresa, já a banda estava em palco preparada para os primeiros acordes. Em contraste com o que tinha acontecido quinze anos antes, não era entusiasmo que se apoderava de mim. Apenas desconfiança de que o espectáculo ia ser uma lamentável exibição. Uns UHF desfigurados, de que apenas restava o resistente líder, um homem que devia ter a sensatez de perceber que a veia inspiradora já há muito o abandonou. Dez minutos mais tarde, ninguém – nem mesmo eu e o amigo que me tinha acompanhado naquela passagem de ano em finais de 1982 – conseguiu suportar a performance sem sal de uma banda moribunda.

Passamos pelo tempo com a marca indelével do que somos. O tempo, esse, vai desgastando as pedras que calçamos. Fazendo de nós pessoas diferentes. Os anos acumulados são o património da mudança que toma conta do horizonte. Muda-nos, na convenção estabelecida que vamos crescendo com o tempo que prossegue a sua marcha imparável. E nesse tempo muita coisa se transforma, o que acalenta ainda mais o terreno da mudança. Sobretudo quando por entre os escombros do tempo, há transformações que caminham em sentidos divergentes. Uma atrela-se à outra fazendo extremar os riscos da mudança. São encruzilhadas que apartam as pessoas por caminhos que contêm os seus opostos. Aos mistérios do tempo, reservada a chave que guarda o segredo: haverá um momento em que os caminhos divergentes se voltam a tocar?

(Em Vilamoura)

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