30.11.05

Quando o politicamente correcto chega à publicidade

O spot televisivo é delicioso, mais pela representação da actriz que satiriza as mulheres que não nasceram com dotes de inteligência. Acontece a toda a gente – homens e mulheres. Talvez a Oni tenha sido infeliz ao escolher o estereótipo da dona de casa desocupada que não se distingue pelos atributos de inteligência. A frase assassina ocorre quando a senhora, atarantada por não perceber a mensagem tão simples que o marido lhe tenta passar pela enésima vez, suplica: “explica-me como se eu fosse muito burra”.

Adivinho a efervescência de feministas militantes, protestando contra a discriminação latente. Não terá sido a Oni inundada de mensagens de indignação, contra a imagem que perpetua uma ideia pré-concebida e errada, a ideia de que a escassez de inteligência abunda para os lados do sexo feminino? Daí que tenha ouvido há dias o mesmo spot numa estação de rádio, agora com os papeis invertidos. (Decerto ficaria muito caro refazer o spot televisivo, com novas filmagens, mais cachets para os actores e todos os técnicos envolvidos. Terá sido mais barato lavar a imagem da Oni com uma nova versão do anúncio apenas destinado a estações de rádio.)

Os consultores de imagem da Oni reflectiram no erro que cometeram com um inocente anúncio que terá motivado a perplexidade dos que ditam os cânones do discurso politicamente correcto? Para evitar danos na imagem, com visibilidade nos gráficos que mostram a evolução dos negócios, terão concluído que a empresa devia limpar a face, eximir-se do ónus que sobre ela pesava, o ónus da discriminação sexual?

Na nova versão do anúncio, é a mulher empreendedora que chega a casa, excitada com a oferta da Oni. É ela que explica ao desocupado e pouco inteligente marido que podem ter televisão e Internet num só pacote a um preço – diz a Oni – imbatível. Na ausência de imagem, resta adivinhar o cenário: o desocupado marido, a braços com as lides da casa, entabulando um carinhoso diálogo com a planta de estimação, é surpreendido com a chegada da sua cara-metade trajando vestes de executiva, pousando a pasta onde repousam importantes documentos que irão dar sustento a muitos subordinados. Agora é ele que escuta, com um misto de incompreensão e de quem está a milhas do discurso, sempre mostrando que não percebe os números que ecoam da boca da mulher. No final do anúncio, é ele que clama por piedade, pedindo à mulher para lhe explicar “como se ele fosse muito burro”.

Darei importância desmedida a um episódio insignificante? Poderão dizer: é só publicidade, nada mais do que publicidade. Ficção pura, e como tal não deve se levada a sério. Discordo: a publicidade é um poderoso veículo de comunicação. Não fosse a publicidade tão importante e as empresas não gastariam rios de dinheiro em estratégias publicitárias para consolidar a sua posição no mercado, aumentar a quota de mercado, ou apenas fidelizar clientelas. A mensagem publicitária é cuidadosamente elaborada, na consciência que ela pode influenciar o público a que se destina.

Anda no ar um perfume do que é politicamente correcto, aspergido pelas sapientes almas que nos educam, com a sua condescendência, para o que deve ser trilhado e o que deve ser evitado. Esse perfume contagia a publicidade. Ela não se pode desviar dos padrões formatados do politicamente correcto. Sob pena de ser a antítese da publicidade, por ser manchada pela ineficácia da retórica que utiliza. E publicidade ineficaz é publicidade suicida, afasta a clientela potencial do produto anunciada, ela que é tão ordeiramente respeitadora dos cânones do politicamente correcto.

Aborrece-me o discurso politicamente correcto por conter as sementes de uma moralidade dominante que se impõe à horda desapossada de espírito crítico. Continuo a acreditar que a única moralidade aceitável é a que cada pessoa edifica em si. Inaceitável é persistir no erro de definir o que é moral e o que se afasta da moralidade, impondo critérios que devem os não proscritos seguir. É que depois há lamentáveis equívocos, incoerências que saltam à vista: como aquele spot a um chocolate que retrata um momento de lazer de um casal de namorados, bosque fora, pedalando na sua bicicleta de dois lugares.

Ele segue no lugar da frente, degustando o chocolate; ela vai no lugar de trás, também saciando a gula com o chocolate. Quando ambos terminam a sua barra de chocolate, e ele repara que só resta mais uma, aproveita a passagem debaixo de uma árvore traiçoeira para, propositadamente, provocar a queda da companheira, que ia desatenta e não reparou na árvore com o galho rebaixado. Só para que ele pudesse açambarcar sozinho o chocolate que restava. Mensagem: o culto do egoísmo puro, o que contrasta com os lugares-comuns da solidariedade, da partilha, do respeito pelos entes queridos, lições dos cânones do politicamente correcto. Ou será que o politicamente correcto recomendava o comportamento do egoísta?

29.11.05

Violência, globalização e modelo social europeu – as pontes

Ontem participei num debate em que se discutia a relação causal entre globalização e violência: será a violência – terrorismo ou violência urbana – uma consequência da globalização, urdindo uma massa de descontentes que expressam a exclusão através de meios violentos? Será a violência, em si, uma expressão da globalização, espalhando-se por todo o mundo, de braço dado com o fenómeno da globalização que cresce de intensidade?

No debate, o recente episódio de violência em França concentrou a atenção. Ensaiei uma interpretação político-económica dos acontecimentos. Uma interpretação alternativa, assumindo que o mainstream, por cá e no estrangeiro, alinhavou uma teoria que denunciava o capitalismo selvagem e a globalização desenfreada como culpados da violência. Não quis entrar pelos meandros sociológicos do problema, por mais interessante que fosse questionar as abundantes teorias que tentaram justificar os actos de violência. Com a minha interpretação alternativa procurei rejeitar a ideia de que a maldita globalização se sentava no banco dos réus por mais um desmando do mundo.

Escudei-me em dois argumentos. Primeiro, vi neste fenómeno o preço que a Europa paga pelo falhanço das suas políticas de ajuda ao mundo subdesenvolvido. Relembrei o fardo do passado que pesa sobre os ombros dos europeus. Sobretudo dos que têm a História manchada por uma colonização nada exemplar. E de como isso seria suficiente para inscrever a ajuda ao desenvolvimento como prioridade de acção. A intensidade e a eficácia ficaram aquém do desejado. Tanto que os países ajudados continuam mergulhados no subdesenvolvimento. Tanto que a pobreza continua a causticar as populações nativas, que encontram na emigração a solução final em busca de algum bem-estar.

Especulei: fosse eficaz a ajuda ao desenvolvimento dos países europeus e decerto os fluxos migratórios não teriam a mesma intensidade. Nem existiram os problemas de assimilação que agora se identificam. Parece que os europeus foram apanhados numa ratoeira que eles construíram ao longo do tempo: como enriqueceram tanto, são a terra prometida para os excluídos do bem-estar material; e o insucesso da ajuda ao desenvolvimento acentuou as assimetrias, levando à saída em magotes para os países europeus.

O segundo argumento foi o que desencadeou polémica. Diagnostiquei a falência do modelo social europeu como sintoma da erupção de violência em França. Ofereci este argumento em antinomia com a ideia dos que acusam a globalização como fautora de todos os males do mundo, e inevitavelmente da violência de rua em cidades francesas. Para estes, os acontecimentos mostram que estamos carentes de mais welfare state. Contestei a linha de raciocínio. Intui que a violência teve lugar no coração do modelo social europeu, num país que, mau grado a ambiguidade no acolhimento a imigrantes, sempre se distinguiu pelos benefícios generosos do sistema de protecção social. Diz o adágio que quando a esmola é muita, o pobre desconfia. Apetece adaptar o adágio ao contexto: quando a esmola é muita, a insatisfação não se apaga e a mão continua estendida a clamar por mais esmola (descontado o exagero da comparação entre os benefícios de segurança social e a esmola).

Em nome de a honestidade intelectual, confessei influências filosóficas e políticas que inspiram a preferência por um modelo liberal. Sem que daqui se pudesse concluir qualquer simpatia pelos Estados Unidos – pois que o liberalismo que defendo, nestas matérias, vai bem além do sistema menos intervencionista dos Estados Unidos. Admiti que o meu diagnóstico se podia confundir com um wishful thinking pessoal, um vaticínio que traduz preferências pessoais. Sem que a objectividade fosse beliscada, quando nos é dado a observar o que se passa em países como o Canadá e o Reino Unido, onde o modelo social europeu está ausente e existe uma notável assimilação das comunidades imigrantes.

Na análise de fenómenos sociais, o analista toma o lugar do médico que diagnostica os sintomas de uma doença. Nesse papel vejo a Europa dentro de um espartilho que a asfixia, sem se dar conta da maleita. Quando o modelo social europeu se põe em funcionamento, é a imagem de uma sociedade que carece de uma entidade superior pronta a mostrar um sentimento protector, diria paternalista. Há algo de irresponsabilidade individual no modelo social europeu. Não terá a violência nas cidades francesas sido uma manifestação de irresponsabilidade individual? Não há, entre os que vasculham fundamentos para mais Estado social, razão para invocar a obrigação do Estado promover uma política de emprego para ocupar os quase 25% de desempregados entre os jovens imigrantes em França? Como se, com uma varinha mágica, o Estado pudesse inventar empregos.

Por mais que custe aos adversários dos que não gostam do modelo social europeu, do outro lado do Atlântico há bons exemplos a seguir. Basta que se dispam de preconceitos e aceitem que os Estados Unidos não são o demónio propalado pelos argutos defensores da “alter-globalização”. Não tenho a mínima simpatia pelos Estados Unidos, devo dizer. O que não me impede de admitir que um modelo social menos generoso é mais eficaz para os desprotegidos. Basta comparar taxas de desemprego, a dificuldade com que se deparam os desempregados na Europa e a facilidade com que os desempregados do outro lado do Atlântico encontram empregos. Pudesse o paternal Estado diminuir de tamanho e deixar que o mercado funcionasse, e talvez alguma desta violência não teria acontecido. Mas, já sei, isto é apenas uma especulação!

28.11.05

Crucifixos e escolas

Fobia regulamentadora sem cessar. A negação da tolerância verte-se de uma e mais outra intervenção de quem tem o poder na mão. É o paraíso dos engenheiros sociais, crentes que no alto da sua infalibilidade resguardam o segredo de uma poção mágica que dirime conflitos entre grupos. Onde põem a sua milagrosa mão, espalham as sementes de um terramoto. Ficam as coisas piores após a sua, afinal, falível intervenção.

Uma associação qualquer que zela pela não discriminação religiosa protestou contra a afixação de crucifixos em determinadas escolas da zona norte. Consta que a lei obriga a retirada dos crucifixos, ou outros símbolos religiosos, sempre que ofendam as convicções de alguém, e que esse alguém reclame contra a sua existência. Ironicamente, a tal associação, constituída contra a discriminação religiosa, nem sequer terá dado conta que estava a propor um acto de discriminação religiosa…

Sinto-me à vontade na matéria, pelo agnosticismo angustiante. Não estou em defesa da igreja católica, nem da perpetuação da sua influência junto das pessoas que têm a liberdade de afirmar a sua crença. Já tive ensejo de exercer a cáustica crítica contra algumas orientações de hierarquia eclesiástica. Se fosse agora o momento, estaria a escrever sobre a patética decisão de vedar o acesso ao sacerdócio a homossexuais. O que está em causa é o espartilho de certas consciências bem pensantes, sempre na linha da frente contra a abusiva presença da igreja católica na sociedade.

São os que se emproam de atributos tolerantes e agendam como prioritária a não discriminação entre as igrejas. Às vezes confundem a sua linha de acção com a defesa de um Estado laico, totalmente separado das religiões, quaisquer que sejam. Escudam-se na Constituição, que vinca com clareza a separação entre Estado e igreja – coisa nunca conseguida, em mais uma demonstração de como as leis dos homens esbarram nos costumes que uma maioria desses mesmos homens se habituou a cultivar (basta lembrar a “obrigação” da bênção bispal em solenes cerimónias que pontuam inaugurações de obra pública). Aos fautores da não discriminação religiosa – que se confundem com militantes detractores da igreja católica, sempre à espreita de mais um texto beato de João César das Neves para soltar a sua língua afiada – falta um senão de grande importância: saberem ser tolerantes.

Agarram-se à tábua de salvação que é o passado escuro da igreja católica. Invocam a inquisição, as perseguições religiosas, um passado de privilégios, a cumplicidade com déspotas. Sublinham como a igreja católica tem sido um expoente de intolerância. E depois de tanta ênfase nestes vícios, cometem o mesmo pecado. Exibem a mais lamentável intolerância, esboçam manobras que projectam cercear direitos aos católicos. Perturba-me este tipo de comportamento: aos desmandos do passado responde-se com intolerância hoje, como se o clima de conflito latente tivesse a arte de resolver problemas. O pior é a moralidade triunfante de quem enche o peito de razão ao vergastar a igreja, denunciando os seus pecadilhos, para logo de seguida os imitar.

Sou agnóstico. Mas não tenho problemas em estar num local onde esteja afixado um crucifixo. Nem me ofende visitar uma mesquita, ou assistir a um casamento protestante, ou jantar em casa de uma família hindu observando os preceitos religiosos que antecedem a refeição, ou respeitar o credo hebraico. Agora que tanto se fala de um conflito de civilizações, e que se projecta esse conflito como um choque de religiões, é intrigante como, a uma escala menor, resumida ao território de um pequeno país, se encontra uma representação desse tipo de conflito.

Há quem tente impor soluções que agradam a minorias, desprezando o sentir das maiorias. De regresso à proibição dos crucifixos nas escolas: olhando ao contexto (o norte do país, onde as convicções religiosas são mais arreigadas), não é delírio adivinhar que uma esmagadora maioria de alunos e famílias é católica. Será maior o sacrifício de cercear o direito à expressão religiosa desta maioria, ou não atentar à sensibilidade de uma minoria que não se revê no catolicismo?

A orgia das proibições é o abismo por onde se atiram, de cabeça, os engenheiros sociais que têm em mãos os cordelinhos do país. Uma espécie de bebedeira constante, a atracção pela proibição como exibição da sua tão grande autoridade. Um sucedâneo do “complexo da farda” que caracteriza os polícias. Desfile constante de intolerância, espezinhando sem cessar a liberdade individual.

25.11.05

As certezas de João Carlos Espada

Quando leio o Expresso tenho garantido um momento de humor sublime nas crónicas semanais de João Carlos Espada. Há quem lhe tenha colado o rótulo de pateta, quando Espada se deixa levar pelos devaneios de quem se gaba de ser membro de um típico English club, onde é proibido ler o jornal sem o blazer vestido, onde se toma chá às cinco da tarde, onde se cultiva o gentlemenship, enfim, uma aristocrática forma de vida. Antros de conservadorismo, estes clubes têm uma política muito selectiva de admissão. Espada é um herói a dobrar: se nem entre os ingleses é tarefa fácil ser aceite como sócio de um destes clubes, homérica é a missão de um português que conseguiu abrir a porta da entrada.

Outras vezes, Espada delicia-nos com as suas memórias de longas conversas com vultos da filosofia e da ciência política – Popper e Dahrendorf são os mais citados. Espada é um eleito pela convivência prolongada com estas eminências pardas. E parece-me tresmalhado na sua terra, tantos os sinais de maior identificação com os usos e costumes do Reino Unido.

Estes atributos incomodam alguns dos detractores de Espada. É verdade que o professor de ciência política da Universidade Católica se põe a jeito para figura apatetada. Em mim não traz incómodo, pois não consigo deixar de esboçar um sorriso quando leio algumas das suas crónicas. É uma espécie de João César das Neves sem o cutelo do fundamentalismo religioso. Até devia nutrir simpatia por João Carlos Espada: ele afirma-se liberal dos sete costados. Não consigo: este é um liberalismo transviado, um “left liberal” que cultiva o mais puro objectivismo. Uma das suas batalhas é o relativismo, que ataca de forma impiedosa.

Na última crónica no Expresso, Espada enfatiza duas das coisas mais equívocas que, na minha modesta maneira de ver, empestam o mundo em que vivemos: a apologia do “centrão” político e o dogmatismo dos imperativos categóricos.

O cronista ensaia o enésimo elogio a Blair, o fundador da terceira via socialista – como se alguma vez um socialista pudesse conviver com liberalismo…Espada solta da cartola a apologia do centro: “o centro é (…) o vasto conjunto de pessoas que não hipotecaram o seu voto para sempre a um partido ou a uma ideologia determinada. O centro é (…) o vasto conjunto de pessoas que não vota ideologicamente, mas caso a caso. E julga cada caso nos seus próprios méritos. (…) Umas vezes julga bem, outras vezes julga mal. Mas tende a julgar menos mal”.

Nas entrelinhas, uma mensagem sublime: os eleitores que fogem do centro não têm o discernimento dos centristas, talvez uma inteligência diminuída. E ficamos a saber algo que é surpreendente para um professor de ciência política: as ideologias não contam, apenas o pragmatismo. Há uma outra forma de qualificar este voto do grande centro: o voto oportunista. Que, no caso da paróquia onde vivemos, é causa dos sucessivos equívocos que nos têm empurrado para a cauda do pelotão. Para mim, este centro é o cinzentismo. A acomodação. A percepção de uma bipolarização que encurta as possibilidades de escolha. Uma bipolarização perigosa, porque as diferenças entre os rivais (que protagonizam o espectro bipolar) diluem-se na retórica. O centro, este centro, é uma doença que condena os centristas a uma existência vegetativa. A modorra intelectual.

Por entre as tiradas que me trazem um fartote de gargalhadas, Espada consegue, a espaços, irritar-me. Sobretudo quando escreve coisas que, no seu douto entendimento, não são passíveis de contestação. As verdades insofismáveis. Não há surpresa nesta conduta, pois Espada é um feroz adversário da teoria da relativização. Ele acha que o relativismo é um cancro da civilização que tanto preza. Prefere uma teoria que objective tudo, que trace o caminho para um pensamento que, se não é único, anda lá próximo.

É por isso que escreve “(…) quando toda a gente sabe que os EUA (…) são um dos países mais livres do mundo” e assevera que “as pessoas sentem que existe uma ameaça islâmica” (destaques meus). “Toda a gente”, “as pessoas” – como quem diz, 100% da opinião é condizente com o mundo visto pelos olhos do Prof. Espada. Confusão de preceitos: o mundo tal e qual aparece na cabeça do Prof. Espada não é o mundo visto pelos olhos de “toda a gente”. Há dissensões, por mais que isso custe à mente abrilhantada de Espada. Tomar a parte pelo todo é um lamentável engano, uma maneira de distorcer a opinião seguidista que se revê nas posições de Espada.

Os imperativos categóricos causam-me espécie. É certo que todos temos as nossas ideias. Na dialéctica das ideias, há a recusa das que são diferentes das que cultivamos. Ora isso não pode ser confundido com uma postura que dá como incontestáveis as certezas de que nos achamos possuídos. Como se outras ideias não existissem, ou a existirem sejam tão absurdas que merecem ser ridicularizadas. Quando vejo os fautores dos imperativos categóricos na sua pesporrência, apetece-me enfileirar do outro lado, do lado que antagoniza as ideias dos que patrocinam os imperativos categóricos.

24.11.05

O dilema da desidentificação colectiva

Seria incapaz de me fazer sócio de um clube que me aceitasse como tal, Grouxo Marx.

Há momentos, que se prolongam no tempo, em que apetece não sair do perímetro que se encerra dentro de mim. Momentos em que não me revejo em nada do que me rodeia. Ausente a atracção por fenómenos de massas. Um refúgio numa solidão de mim mesmo, como se a pertença a grupos fosse um exílio para dentro do meu eu. Não me identifico com o país, com os partidos, com agremiações da mais variada índole, com movimentos culturais, com religiões. Sem que soem as sirenes, porque não sinto que a bússola perdeu o norte, ou que esteja possuído pela desorientação dos sentidos que clama por introversão.

Em tempos de afastamento temporário para longínquas paragens, em que mergulhei numa solidão exigida pelo trabalho intenso, tirei as dúvidas. O meu país não é Portugal. Não é com os “portugueses” que teço os sinais de pertença. Esses sinais estão na família e nos amigos – um património incalculável, o meu verdadeiro “país”, se quiser encontrar sinais de identificação pessoal.

Preso às garras do individualismo metódico, por influências filosóficas que se foram arreigando, cresce o afastamento de grupos. A começar pela identificação nacional. Descrente na agregação forçosa que cimenta a lealdade nacional, como se cada cidadão estivesse obrigado a entregar-se nos braços do destino da nação. A bandeira não diz nada, o hino é uma melodia agreste ao ouvido, os versos uma sequência de frases sem sentido, evocativas de uma história que já foi feita e não volta a acontecer, a lembrança de uma gesta com têmpera bem diferente da que temos agora. E quando dia após dia a decepção – se é que ainda há lugar há surpresa da decepção… – toma conta de mim, por mais um desmando de governação, por mais uma impensável exigência burocrática que leva tempo, dinheiro e paciência, apetece-me a condição de apátrida.

A desidentificação instala a alergia a pertenças. Há preferências culturais na música, na literatura; movimentos estéticos e filosóficos que não renego. E, no entanto, incapaz de fazer parte de movimentos que cultivem o gosto comum dos seus membros. Estranhamente, quando leio ou ouço argumentos dos tais com quem partilho preferências, saltam em catadupa razões para desmontar as ideias veiculadas. Num rápido assomo de desidentificação, quando afinal algo me liga pela identidade de preferências estéticas.

Outro exemplo. Num país consumido pela omnipresença do futebol, não consigo escapar às preferências clubistas. Sem me enclausurar nos fervores exacerbados da pertença clubista, que isso de doenças inveteradas tem o condão de levar, mais tarde ou mais cedo, à condição de paciente de um qualquer médico. Costumo ver na televisão os jogos da minha equipa. Quando as coisas não correm bem, dou comigo a torcer pelo adversário, só para poder assumir um tom crítico e emproar a moralidade sentenciadora: “o rumo está errado, o caminho escolhido devia ser diferente”.

Sintomático da aversão por pertenças colectivas é o diagnóstico dos adeptos dos grandes clubes. Olho para o benfiquista: o paradigma do bom pai de família, ou não fosse esta a imagem incutida desde há muito, para arregimentar a legião de adeptos do clube. Incomoda-me a retórica de “maior clube do mundo” que os dirigentes, uns atrás dos outros, não se cansam de apregoar para consolidar uma grandeza fátua. Os adeptos do rival do norte, o exemplo acabado do fanatismo irracional, com exuberâncias radicais que os levam a praguejar impropérios contra o inimigo lisboeta, os incendiários que tomam o lugar dos fundamentalistas da coisa futebolística – uns verdadeiros talibãs adaptados ao contexto. Na irracionalidade da clubite exacerbada, levam a palma aos demais no seguidismo cego ao líder que personifica o que há de mais detestável.

Por contraponto com o rol de defeitos dos adeptos dos clubes rivais, sinto o espírito apaziguado ao saber que os adeptos do meu clube não são nada disto, que são matéria bem diferente, para melhor. Seria um sinal de pertença, um oásis que se distingue no longínquo firmamento, uma pista para me retirar da desidentificação colectiva que se apoderou de mim. Falso alarme: basta a ida a um estádio para ver o meu clube (coisa rara) e sentir como são, em carne e osso, os que têm em comum o gosto por aquelas camisolas. E sair do estádio com uma vontade enorme de deixar de pertencer àquele clube, por causa dos adeptos.

23.11.05

Educação sexual fora das escolas, já (2)

O fio condutor com o texto de ontem: o conselho directivo de uma escola em Vila Nova de Gaia suspendeu duas alunas que cometeram o pecado de se beijar em público.

Os zelosos burocratas não perceberem o acto ridículo que ampliou algo que, decerto, queriam silenciar. Eis como os agentes educativos estão tão distantes da preparação adequada para serem os pedagogos da educação sexual. O que se passou em Gaia é (adivinho) a amostra representativa do país real. Expondo estes astutos pedagogos a um terrível paradoxo: o enorme hiato entre a predisposição para ensinar teoria e os seus comportamentos, tão longe da teoria disseminada.

Para ajudar à missa, comentadores de gabarito encontraram no episódio o ensejo para ensaiar a mais abjecta moralidade: “há coisas que se fazem em casa e não se fazem na rua, à frente de toda a gente. (...) Falar de descriminação (sic) sexual e de autoritarismo a propósito deste caso será, portanto, mais do que um exagero, um disparate”, José António Saraiva, Expresso de 18 de Novembro de 2005.

Esta é a prova da reprovável reacção desabrida ao beijo lânguido de duas estudantes que não tiveram vergonha da sua homossexualidade. Concordo: há coisas que se fazem em casa que não se fazem na rua. O decoro é o obstáculo à exportação de comportamentos. O que falta ao director do Expresso é admitir que não o incomoda um beijo lânguido entre dois potenciais juvenis consumidores do “Morangos com açúcar” se o beijo for trocado entre pessoas de sexo diferente. Se forem do mesmo sexo, entram na categoria “coisas que se fazem em casa e não se fazem na rua”.

É com estes passos em falso que a extrema-esquerda que faz o contra-ponto da moralidade vai engrossando a sua voz. Obstruídos pela canina fidelidade a antiquados quadros mentais, os moralistas do outro lado dão trunfos para o agigantamento dos arautos da nova moralidade. Em vez das aves de arribação andarem, em bicos de pés, a mostrar as avenidas da nova moralidade que rompe com tabus, como seria importante olhar para as desigualdades sem aproveitamentos políticos. Onde entra o bedelho da política, sempre interesseiro, ressente-se a causa alegadamente servida.

Os moralistas que se ofendem com um beijo ternurento de duas adolescentes ficam boquiabertos com a ousadia. Devem pensar que se trata de uma provocação, um atentado aos costumes. Ou receiam que pais zelosos venham erguer o dedo contra os olhos fechados, caso eles estivessem fechados, do conselho directivo da escola. Receiam que essas coisas se contagiem, trazendo para a homossexualidade mais adolescentes formatados para a heterossexualidade. Nas escolas, passeiam-se alguns pedagogos que punem o que a lei não proíbe. E se a lei não proíbe a homossexualidade, ela é permitida. Quando a lei não proíbe, é permitido. Os obtusos pedagogos que se candidatam a ensinar os segredos do sexo nos bancos da escola são os mesmos que se emproam na superioridade moral de censurar quando a lei não proíbe.

Este é o escol dos iluminados que plana acima da lei. Chamam a si a responsabilidade da educação sexual. Mesmo que, em termos de padrões sexuais, acicatem a desigualdade. Como quem acha que pode olhar de cima para baixo para a legalidade que só os outros, os ensinados, devem cumprir. É nas escolas que começa o indigno costume de ensinar valores que não acariciam quando chega a sua vez de os provar. É nos bancos da escola que se ensina o valor da igualdade, levando os ingénuos estudantes no engodo do que não existe – a igualdade. Mas são os pedagogos, quando exibem a sua indignação perante a afronta de um beijo entre duas homossexuais, que espezinham o valor cantado em loas.

Não me apetece confiar em que ostenta a moralidade bafienta, nos que pregam uma coisa e praticam outra bem diferente. No passo descompassado em que são apanhados, desnuda-se a incapacidade para ensinarem os segredos do sexo?

22.11.05

Educação sexual fora das escolas, já (1)

É congénita a desconfiança de pedagogos. Os arautos da vanguarda pedagógica, sempre excitados por arrojadas reformas curriculares, sempre desejosos de moldar – formatar, diria melhor – as criancinhas arrastadas para os bancos da escola, sem tugirem. As mentes altivas das ciências educativas, que não hesitam em fazer dos alunos as cobaias de eternamente fracassadas experiências de ensino. No rescaldo, vegetando na cauda do pelotão, amputamos a qualidade da massa cinzenta futura. Sem que alguém tenha a coragem de varrer a gesta de iluminados pedagogos do ensino, pelo menos para benefício da sanidade mental de alunos e pais.

Anda por aí uma comissão a perorar sobre a inclusão de educação sexual nas escolas. Não estou a par dos pormenores, mas creio que se trata de meter a disciplina naquilo que na minha época se chamava ensino secundário. A ideia terá a sua lógica: o sexo mortal, com a terrífica expansão da sida, cauciona a escola a exercer um dever de cidadania, a educar as crianças para uma sexualidade segura. Aposto que a justificação não se fica pelos preceitos da prevenção. O pragmatismo fala alto, quando estudos mostram que a sexualidade é precoce nos adolescentes mal saídos da meninice. E sobre as coisas importantes da vida, lá está a escola para educar.

Não tivessem os agentes educativos fraca reputação, agrilhoados que estão a uma qualidade duvidosa, a ideia seria merecedora de um aplauso. Mas quando lembro os viés que me tentaram impor na escola, com as lições distorcidas da história – a cartilha marxista bem arreigada – ou a literatura seleccionada com critério, colocando no altar autores simpáticos à intelectualidade de portas abertas aos ventos de Moscovo, suspeito das intenções destes esmerados engenheiros sociais.

Estes pedagogos têm um poder desmesurado, pois moldam os adultos de amanhã. Dir-me-ão que os adultos de amanhã têm livre arbítrio para recusar a oferenda, e podem navegar para águas diferentes das insidiosamente impostas pelos modelos escolares. Contraponho: poucos terão o rasgo de se desviarem dos padrões estabelecidos. Para quantos não será mais cómodo aceitar os quadros mentais veiculados pelos educadores? E para quantos mais – decerto muitos mais – não há sequer alternativa, por falta de informação ou mera passividade, às verdades insofismáveis contadas na escola?

De regresso à proposta de educação sexual. Encaro-a com o mesmo cepticismo com que olhava para a optativa religião e moral. Se já me inquietam as verdades necessárias adquiridas na escola, mais me preocupo com as ambições de ousados pedagogos ao quererem entrar em registos da intimidade dos alunos. Não lhes basta a formatação do pensamento, na domesticação dos cérebros do amanhã. A novidade está em ensinar o que há de mais relevante na sexualidade.

Contudo, a sexualidade não objectivação. Concedo: há um mínimo que se submete à pura objectividade. Um domínio descritivo, a anatomia e a biologia da reprodução, os cuidados de prevenção para não fazer do sexo uma aventura pelos corredores da morte. A ficar-se por aí, a educação sexual restringe-se a um par de horas. Ora como os excelsos pedagogos estão a congeminar coisa de maior extensão (ou não fosse educação sexual uma disciplina autónoma), entramos na matéria lodosa dos comportamentos sexuais. Aí soam as sinetas da inquietação. A paternidade confere uma dimensão de proximidade ao problema. Preocupa-me o buraco negro de saber que algures no futuro um(a) excitado(a) docente irá ensinar à minha filha os rudimentos da sexualidade. Prefiro que sejam os pais, cá por casa, a fornecerem a informação adequada. Confio mais no pai e na mãe do que em obscuros militantes da engenharia social sentados no deleite da cátedra escolar de educação sexual.

A intrusão na esfera individual das pessoas instala-se desde a mais tenra idade, para que achemos que este sucedâneo de paternidade faz parte da ordem natural das coisas. Qualquer dia teremos pedagogos na peugada de um novo filão – como devem os alunos tratar os pais, por exemplo. O mais elementar é escusar a interferência, declinar a pusilânime condescendência de nos tratarem como seres atrasados. A escola tem o seu lugar recomendável. Não para a educação sexual.

Comecei por escrever este texto com um mote: o burburinho numa escola de Vila Nova de Gaia, onde duas alunas, apaixonadas uma pela outra, tiveram a ousadia de se beijar em público, a que se seguiu uma áspera reprimenda do conselho directivo. Voltarei ao tema amanhã.

21.11.05

“Senhor da guerra”: os embargos de armas deviam ser proibidos…



O filme “Senhor da guerra” retrata as negociatas de um traficante de armas que fareja os locais onde fervilham sangrentos conflitos, alimentando os teatros de guerra com a mercadoria que vende ilegalmente. A história de um ucraniano (Yuri Orlov), refugiado em Nova Iorque da miséria e da inexistente liberdade da União Soviética. Narra o rasgo para um negócio amoral, mostrando como o protagonista teve que abdicar de padrões éticos para agigantar o seu negócio.

Com a queda do comunismo chegou a oportunidade de ouro para Orlov. Percebeu que a desagregação do império soviético ia expor um colossal arsenal. O caos instalado tornava mais permeáveis a subornos os militares responsáveis pelas armas nos países que estiveram na órbita soviética. Orlov aproveita-se da oportunidade para prosperar com levas de armamento para países de duvidosa reputação, atendendo aos cânones bem pensantes da ordem internacional. Fez-se amigo de sanguinários ditadores africanos, na Libéria e na Serra Leoa. Negociou com ditadores sul-americanos, que pagavam os favores das armas ilegais em carregamentos de cocaína.

Orlov enriqueceu com o sangue derramado pelas armas que viajavam com a sua guia de marcha. Não se apoquentava: para apaziguar a consciência, dizia que alguém teria que fazer o negócio. Elaborava teorias com uma frieza notável, desapossadas de piedade: as armas, um meio de defesa que os detentores usam contra aqueles que os atacam. Mesmo na desproporção de meios, e quando o atacante espezinha indefesas minorias, o traficante de armas mantinha a teoria: não fossem as armas e os sanguinários ditadores seriam apeados do poder. O seu lema: há uma arma por cada doze habitantes do planeta; o grande desafio é saber como podemos armar as outras onze pessoas.

Nem na Libéria, onde um tresloucado líder armava um exército de crianças, nem aí Orlov se comovia com as atrocidades das suas armas. Apenas contava o vil metal, a abastança material suja do sangue vertido pelas balas que perfuravam corpos de inocentes e menos inocentes. O traficante era perseguido por uma zelosa brigada que fiscalizava os embargos de armas aos países proscritos pelas autoridades dos Estados Unidos. Para onde fosse, Orlov tinha à perna um agente especial que tudo fazia para abortar negócios e capturar o traficante. Pelo meio, a sugestiva complacência de uma alta patente do exército dos Estados Unidos. Encontros secretos, chamadas telefónicas em linhas codificadas, apenas uma imagem oblíqua do tronco profusamente medalhado do militar de alta patente que cobria as actividades de Orlov. Finalmente capturado, o traficante seria libertado depois da intervenção deste alto dirigente do exército.

O filme informa os espectadores: baseado em factos reais. Já se sabe que na sétima arte a realidade se mistura com a ficção, não se percebe onde termina uma e começa a outra. O filme é um paraíso para os que tecem inextricáveis teorias da conspiração acerca dos Estados Unidos, essa potência do mal. Não contribuo para o peditório, apesar de ser muito crítico em relação à hipócrita diplomacia norte-americana. E, em vez de engrossar o coro de protestos que aponta o dedo acusador à dissimulada postura dos Estados Unidos (alimentam embargos de armas mas, debaixo da mesa, facilitam o fluxo para os países proscritos), um argumento mais importante: estes embargos são a negação do seu objectivo oficial.

De que serve proibir a venda de armas em zonas onde são cometidas as maiores atrocidades? Apesar do embargo, as armas inundam esses locais. Diria: isso acontece por causa do embargo! Por maior que seja o activismo das brigadas que zelam o respeito do embargo, quem o decreta esquece-se que é nas maiores proibições que se abrem as oportunidades para os mercados negros, prósperos e incontroláveis.

Através do embargo atinge-se o contrário do pretendido. Se as transacções legais de armas com os locais inscritos na lista negra do embargo fossem possíveis, seria mais fácil controlar quem vende a quem. E seria mais fácil exercer a duvidosa moralidade internacional, sempre manchada pelo estigma dos telhados de vidro, da impossibilidade de qualquer país atirar a primeira pedra – não vão os despojos cair em cima de si mesmo.

Estou a defender o comércio de armas com países que as usam de forma indiscriminada, num grotesco atropelo dos direitos do homem? Não é disso que se trata. Já tive a oportunidade de mostrar o meu desprezo por qualquer tipo de arma, e de como me gabo de nunca uma arma de fogo ter passado pelas minhas mãos. O argumento é em defesa da clareza. É imperativo afastar a ambiguidade dos embargos. Porque há países fora da lista negra que não são exemplares no manuseio de armamento. E porque o embargo, destruindo um mercado cristalino, alimenta ainda mais o obscuro tráfico de armas.

18.11.05

O segundo fôlego dos “casamentos reais”

No nascimento de uma infanta (ou coisa parecida) em Espanha, o “pretendente ao trono” português lembrou-se de produzir soltura opinativa. A infanta espanhola, ao que consta, poderá estar na primeira linha da sucessão dinástica. A Constituição do país do lado terá que ser mudada para expurgar o anacronismo da sucessão limitada a varões. O que terá sido suficiente para acalentar os sonhos da cómica figura que ainda acredita que um dia há-de subir ao trono.

Ele, que se faz passar por “D. Duarte Pio de Bragança” – numa demorada mania das figuras reais, que se dão a conhecer com uma tipologia de nomes que os diferencia da populaça – alinhavou a boda real, numa união ibérica que faz lembrar a ocupação espanhola entre 1580 e 1640. Agora quem fornecia a matéria masculina eram os lusitanos, limitando os espanhóis à consorte feminina. Como os laivos de exclusão sexual ainda permanecem vivos entre os cultores da coisa monárquica, o inimitável Pio de Bragança congeminou o secreto plano de unir os dois países pelo matrimónio de conveniência com a chancela das duas casas reais. Com uma cajadada, dois coelhos a eito: a destituição da república em Portugal, a iberização imposta com o cunho da figura masculina vinda de Portugal.

Só faltou alguém explicar a “sua alteza” que deu um passo em falso na concepção do secreto plano. Supôs que os “súbditos” portugueses estão com a bússola afinada para a monarquia, o que está longe de coincidir com a realidade. “Dom” Duarte insiste em viver num casulo feito de nuvens onde só ele consegue pousar, uma realidade virtual que só tem um habitante: ele mesmo. Acaso fosse monárquico, andaria a contas com uma terrível angústia existencial: a fraca figura que se oferece como pretendente a uma coisa inexistente – o trono real.

A proposta de Pio de Bragança retoma os casamentos de conveniência monárquica, nas ancestrais alianças entre casas reais que perduravam a mão dominadora destes regimes feitos de iluminadas figuras. São inúmeros os exemplos de casamentos acertados entre reis e rainhas de diferentes monarquias, combinações que envolviam filhos de tenra idade, prometidos uns aos outros ainda na idade dos cueiros, quando nem sequer soletravam uma tão importante palavra: “sim”. Os casamentos reais são o paradigma da subjugação do indivíduo, de como o destino lhes era traçado sem eles sequer esboçarem o entendimento do acordo.

Quando dessem conta do que lhes tinha sido reservado por pressurosos e egoístas progenitores, tarde demais para dizer não. Presos aos destinos da casa real, aos interesses supremos do país cujos cordelinhos iam herdar quando o progenitor finasse, os jovens príncipes e princesas eram adolescentes manietados, impedidos de soltar afectos. Corações prometidos, vedada a vontade própria, encurralados nos casamentos de conveniência, nem que no matrimónio se unissem duas pessoas sem identificação recíproca.

Amores de fachada – se é que se pode sequer mencionar a palavra “amor” em casos destes. Ou o amor idílico pela causa de servir o reino, como se tal coisa existisse. No restolho dos casamentos fabricados pelas casas reais europeias, um legado de infidelidades, de haréns permitidos ao suserano, com o consentimento necessário da rainha esposada, no obrigatório acto de resignação. Ao rei tudo se permite. O povo, esse, é que deve juras de fidelidade quando embarca na aventura do matrimónio.

O tempo cresceu, as mentalidades evoluíram, muitos países deslaçaram-se das monarquias. Noutros, a tradição – ou a simples aquiescência popular – caucionou a permanência das monarquias. Com a condição de se modernizarem, um pouco apenas, na ilusória ideia de que há traços de modernidade nas monarquias. Como se “monarquia” e “hodierno” não fossem palavras antónimas…Sinal dos tempos, os eleitos da realeza começaram a cair de amores por súbditas (e súbditos) do povo, desobedecendo à tradição que obrigava à consanguinidade monárquica. Plebeus e plebeias começaram a entrar no escol das casas reais. Os afectos tinham sido admitidos na vida própria dos prometidos ao trono e séquito familiar.

Todo o tempo tem o seu contrário. Todo o tempo encaixa as correntes que vêm no sentido contrário da maré. Pio de Bragança, distraído ou apenas deslocado do tempo, recuperou o anacronismo dos casamentos de conveniência. Interessante seria pesquisar os órgãos de comunicação social do país ao lado, para ver o tratamento noticioso dado à ideia mirabolante de Pio de Bragança. Posso arriscar falar de cor, mas aposto que não houve vivalma a perder tempo a noticiar semelhante tontice.

17.11.05

A falácia dos estereótipos

Quantas vezes, prisioneiros dos quadros mentais, abreviamos análises para o atalho da conclusão precipitada sobre a pessoa que surge por diante? A tentação de rotular pela sua aparência, pelo comportamento superficial (ou pelos tiques sociais), é uma armadilha traiçoeira. Contra mim falo, também arrastado para esse lodaçal pelo instinto que comanda os sentidos.

No ano passado apareceu uma professora nova. Loura espampanante, a entrar na meia-idade, exibindo trejeitos de dondoca. Distinguia-se pela classe do que trajava, pela pose senhorial, pela distância que cultivava. Quando a vi pelas primeiras vezes encaixei-a na gaveta das “tias burguesas com elevadas aspirações sociais”. Construí uma expectativa. Que não era boa, pela demissão dos afectos pessoais quando as senhoras daquela classe, cheias de vacuidade, estão no ponto de mira.

De pessoas com quem já falei acerca da professora, nem a mínima expressão de simpatia por ela. As motivações da aversão, sempre as mesmas: a pose de tardia estrela da moda, o distanciamento que se confunde com tratamento impessoal, mas sobretudo a aparência exterior que traz aos olhos dos “julgadores” alguém que está deslocado do contexto. São os estereótipos em todo o seu vigor. Não será por coincidência que sempre a vi desacompanhada. As poucas pessoas que a cumprimentavam faziam-no por dever de educação. Poderá dela transparecer uma gélida aparência que não convida ao “estreitamento de relações” (ou ao convívio, num enlevo mais prosaico).

Nunca tive uma conversa com ela. Cumprimentamo-nos com cordialidade, é tudo. E, no entanto, perturba-me saber que carrega o rótulo de futilidade, afinal a imagem de marca das “tias burguesas com elevadas aspirações sociais”. Que interessa o currículo académico, as habilitações, as características pessoais que lhe franquearam a entrada no corpo docente? Por cima dessa avaliação objectiva, espreitam os quadros mentais rígidos que, maquinalmente, conduzem às catalogações imediatas. A etiqueta colocada é a maior das barreiras mentais para conhecer as pessoas como elas são na sua essência – e não como mostram pela aparência.

Também há o caso daquele professor, impecavelmente apessoado, visto no imaginário dos alunos como personagem sensaborona, cinzenta, reservada ao seu estreito cubículo profissional – uma espécie de Cavaco sem aspirações políticas, sem atracções keynesianas, com melhor aspecto e sem problemas de dicção. E de como traz a surpresa quando se discute música e poucos conhecem as suas referências musicais, ou quando se fala dos aspectos corriqueiros da vida e tomam conhecimento da sua visão libertária. Ou quando um aluno, pela aparência (caindo na contradição) seguidor dos folclóricos movimentos da alter-globalização, concluiu no final de uma conversa que, pela deambulação filosófica por que ambos andaram, eram mais as coisas em comum do que as divergências. Apesar do “ar conservador” do seu interlocutor, na confissão do aluno. Que admitiu que a forma de vestir do professor era uma barreira que ele edificou imediatamente, algo que no início o inibiu.

As reservas mentais vindas da estreiteza de todos nós, quando somos empurrados para os estereótipos, são um alçapão que esconde pessoas interessantes com as quais julgamos não haver identificação. O mais interessante é notar que os preconceitos visuais tanto partem das mais boçais figuras que planam nas ruas, como das elites que se dizem descomprometidas com o preconceito.

Um exemplo: há mais de dez anos, saí de uma aula terminada às dez da noite para um concerto de música alternativa, algures no centro do Porto. Sem tempo para me desfazer do “uniforme” profissional, foi com alguma perturbação inicial que entrei na sala e reparei que era olhado de cima a baixo pela pequena multidão. Notando que alguns não conseguiam disfarçar o seu incómodo pela chegada de alguém vestindo fato e gravata. Porque os professores não têm que ser todos feios e porcos, como é vulgar na vanguarda europeia do ensino superior.

Talvez esteja errado: nos alvores das verdades incontestáveis a que estas elites culturais se arvoram, as suas exibições de discriminação baseadas na aparência exterior (que não se identifica nos seus próprios sinais identitários) não podem ser engavetadas na categoria dos preconceitos. Porque preconceitos, só os outros os têm…

16.11.05

Os salvadores da “pátria”

Palavras como “pátria”, “país”, “nação” surgem intercaladas com aspas. Já num texto anterior exibi a estranheza por tantos insistirem em escrever “país” com maiúscula. Para manter o raciocínio, as palavras que são sinónimo de “país” levam com as aspas, para se perceber o meu anti-nacionalismo hayekiano, contra a estreiteza do ser que somos – ou deixamos que nos moldem com essa configuração – no viés colectivo que endeusa o “país” a que pertencemos. Na desindividualização do ser, entregue ao sacerdócio dos interesses da “nação”, como se o “pátrio” devir se sobrepusesse ao sentir individual.

O intróito serve de mote para a perplexidade quando deparo com almas caridosas mortificadas pelo o destino do “país”. Discorrem abundantemente sobre as doenças do “país”, necessariamente merdoso. Vituperam a vilania que campeia, que faz dos “pátrios” concidadãos criaturas desprezíveis que empestam a “nação” com a nótula de mediocridade. Mostram a sua preocupação com a desventura “nacional”. Deprimidos com a modorra instalada, instala-se neles a depressão. E como sentem que a agulha não move o palheiro, afundam-se na doença que os corrói – a doença que vem de fora para dentro, o contágio das maleitas colectivas que se apodera dos indivíduos que se oferecem como mártires da idiossincrasia nacional.

Estão na linha da frente, com a sua generosidade colectiva, dispostos a fazer de psiquiatras quando sentam o “país” no divã. Imbuídos de um arreigado espírito “nacionalista” (ou terei de dizer “patriótico”?), os salvadores da pátria dissecam cada milímetro dos tecidos ancilosados da “nação”. Querem extirpar o mal, esperançosos que no mister de psiquiatras que se transmutam em cirurgiões hão-de colocar o “país” na senda de um luminoso destino. Gabe-se-lhes o espírito crítico aguçado. Só não conseguem perceber que andam ao desengano: que o merdoso chão “pátrio” acolhe a estripe do que somos, sem se convencerem que o mal não tem regresso possível.

Os salvadores da pátria escolheram um modo de vida. Mergulham nos vícios colectivos e, sem darem conta, perdem-se no meio da indistinta massa de anónimos. O analista acaba corrompido pelo objecto de análise. Sem darem conta da osmose, perdem a identidade própria, a sua individualidade. Pertencem à mesma gesta indiferenciada que criticam, elos da turba que alimenta a génese da condição medíocre que desdenham. Todo o tempo consumido em abjurações da idiossincrasia “nacional”, num tempo consumido na sempre curta existência própria. São a versão moderna do herói que nas guerras dava o peito às balas, “em nome da pátria”. Com uma diferença: outrora a vã glória de oferecer a vida pela “pátria” merecia a glorificação dos elevados dignitários da “nação”; agora resta-lhes o vasto deserto do não reconhecimento, esse deserto onde a pregação atinge os ouvidos do silêncio que os ensurdece.

Os salvadores da pátria são sucedâneos de cómicos figurantes. Pelo riso que me fazem esboçar quando testemunho a sua condoída parcimónia com os dislates que conduzem a “nação”. Pergunto-me se os salvadores da pátria encontram neste sacerdócio maneira de sacudir de si mesmos desditas pessoais. Não interessa indagar, pois esconsos são esses meandros e é na individualidade do ser – reduto intransponível, pelo decoro – que se irrompe.

Aos salvadores da pátria, uma mensagem: deixem o “país” como está, desenganem-se que o podem mudar. Não o queiram mudar. Em nome de um cinismo militante, que aquece a doce ironia que dá alento aos dias cinzentos, deixem estar o vegetativo “país” imerso na sua vegetativa existência, os residentes atarantados na medíocre forma de ser. A arte da mudança é campo minado por onde passou o arado da desesperança. E se algum dia compreenderem que o moralismo para os outros perde sentido quando sai de si para os demais, quando perceberem que o pessimismo é congénito, terá chegado o momento de desistirem da salvação da “pátria”. Nesse momento terão percebido que se têm que salvar de si mesmos.

15.11.05

Onde fica o poder das ideias?

Absurda, a guerra comercial que a Europa comprou à China. Por um lado, a China é um parceiro comercial cuja grandeza não pode ser menosprezada. Sem contar com a elevada capacidade negocial da diplomacia chinesa. Por outro lado, na União Europeia permanecem activas bolsas de resistência à liberalização do comércio de têxteis. São os interesses afectados pela abertura do mercado europeu às exportações chinesas. Nada que fosse surpresa para os industriais europeus. Estava tudo programado nos acordos que previam para 1 de Janeiro de 2005 a liberalização de trocas comerciais entre a China e a União Europeia (no domínio dos têxteis).

As autoridades europeias têm sido sensíveis à pieguice dos industriais do sector. Manobras dilatórias, "cláusulas de salvaguarda", etc. – o que mostra a face obtusa de uma União Europeia que rivaliza, no pior, com os Estados Unidos: só interessa a abertura de fronteiras quando favorece as exportações; quando a entrada de concorrentes estrangeiros implica a perda de privilégios dos industriais europeus, há que fechar as fronteiras. No ar fica a imagem de uma Europa batoteira, incapaz de cumprir os compromissos internacionais que firmou. Uma Europa mais preocupada com os interesses minoritários de uns (industriais do têxtil), fazendo tábua rasa dos interesses maioritários de outros (os consumidores: a entrada de têxteis chineses soa a poupança de recursos pelos preços mais baixos a que os poderiam adquirir).

Depois de alguns meses de acalmia – a última revoada noticiava milhões de soutiens chineses que, armazenados, ansiavam por adornar os seios carenciados das europeias – nova incursão. É compreensível que os chineses queiram o cumprimento dos acordos. E quando reclamam o acesso ao mercado europeu, lá se soltam da casota os mais imprestáveis representantes da indústria têxtil. Desdobram-se em argumentos ilógicos para justificar as restrições adicionais às exportações chineses. Sem perceberem que a pressão sobre políticos de fraca têmpera (porque não sabem resistir à pressão) corporiza a mais lamentável manifestação de como somos educados a honrar compromissos. Pois se os acordos internacionais, assinados pelas autoridades, são postos em banho-maria, porque não há-de o cidadão comum copiar o comportamento?

Ao escutar as declarações de um dos porta-vozes da indústria têxtil, sou de repente assaltado por uma dúvida existencial: e se acaso fosse convidado para ocupar o lugar de uma destas criaturas? Há uma explicação para o auto-teste. Por convicção ideológica e deformação profissional estou nos antípodas do que é defendido pela associação que representa os interesses têxteis. A convicção ideológica, por ser um obstinado “ultra-liberal”, para quem qualquer intervenção estatal ressoa a efeitos perversos de bem-estar. E por deformação profissional: quando ensino Economia Internacional assumo a postura “ultra-liberal” e não me coíbo de ventilar a ideia de que a liberalização do comércio internacional é melhor que os obstáculos colocados pelos países, independentemente da motivação que os leva a erigir os obstáculos.

Daí o putativo dilema, para medir o pulso à integridade do escriba. Para saber até que ponto a força das ideias e a verticalidade de que ele se reclama são poderosas ao ponto de afastar os ameaçadores ventos do pragmatismo. Aqui a dúvida é entre continuar fiel às ideias, manter a coerência com o discurso aos alunos (e, não conseguindo fugir às responsabilidades pedagógicas, não me demito de um exercício de sensibilização da cidadania dos alunos); ou deixar-me de requintes ideológicos, espantar o fantasma das utopias, deixar vir à superfície o pragmatismo. Pragmatismo que faria supor uma tentadora remuneração fazendo lobbying em favor dos industriais do ramo.

Não sou advogado do lírico princípio do “amor e uma cabana” como factor de realização pessoal. Tenho os meus pecadilhos consumistas, a ambição de melhorar o bem-estar familiar. Sei que não é de vento que se alimentam as ilusões. Seria suficiente para vacilar, numa báscula entre a prisão da coerência ideológica e a tentação do pragmatismo? Nos últimos dias, nos tempos mortos, dei comigo a meditar no assunto. Para concluir que não seria capaz de aquietar a consciência se deixasse vencer o vento do pragmatismo. Ingénuo, decerto. Mas incapaz de negar o que tenho vindo a dizer à minha audiência restrita durante anos a fio. Incapaz de mergulhar na incoerência. Incapaz de ferir a consciência. Para isso, ia para político.

14.11.05

Efeitos especiais – o fim do cinema?

Hoje vamos ao cinema e são tantas as vezes em que uma enxurrada de efeitos especiais nos entra pelos olhos. Em sacrifício da história que se banaliza perante o império dos efeitos especiais, hoje mais ainda em moda pelas facilidades que os computadores proporcionam. A interrogação: serão os filmes abastardados pela invasão dos efeitos especiais? Ou é apenas um modismo – como tantos, temporário – que vinga na arte cinéfila?

Quando o realizador estica o cordel para o lado dos efeitos especiais, o prejuízo sente-se no argumento. A capacidade narrativa fica prejudicada pelas doses avantajadas de efeitos especiais. Quanto mais não seja, pelo tempo útil que os efeitos especiais consomem. Segundos, minutos – e quantas vezes longos monólogos de artes especiais que tratam de conferir um nota de espectáculo puro ao cinema – em que a história fica suspensa do desenlace dos efeitos especiais postos em acção pelos computadores. No fim, espreme-se o fruto e saltam uns parcos pingos de sumo. Filmes pouco sumarentos de argumento, cheios de embelezamento fictício feito de efeitos especiais que prendem a atenção.

Discutir a proeminência dos efeitos especiais na filmografia contemporânea é um terreno movediço. O pântano da subjectividade. Há os que vão ao cinema pela pura diversão. Não lhes interessa captar qualquer mensagem. Querem passar uma hora e qualquer coisa de puro divertimento. Para eles, filmes cravejados de efeitos especiais são o nirvana. Do outro lado, os que privilegiam o argumento, a mensagem captada ao longo de um filme. Para os puristas do cinema de culto, para os que elegem a cinematografia agregada à arte da narrativa, os efeitos especiais que enxameiam os filmes são uma degenerescência, uma subversão da arte que cultivam.

Por vezes assisto a filmes que têm a sua dose de efeitos especiais. Como em tantas coisas na vida, construir um mundo feito de extremos leva a análises excessivas. Ou seja, há efeitos especiais e efeitos especiais. Há filmes que são apenas efeitos especiais, sem qualquer fio condutor que permita distinguir um argumento, ou com uma história fraca que aparece subjugada ao monopólio dos efeitos especiais. E há filmes que giram em torno de um argumento e utilizam efeitos especiais como manobra de suporte, não como esteio principal. Não vou exemplificar porque a memória para nomes de filmes é terrível. Consigo-me lembrar de filmes que se encaixam nos dois arquétipos, só não consigo recordar os nomes.

Uma excepção: Matrix (todos os filmes da sequência). O exemplo acabado do filme em que abundam efeitos especiais, mas onde é notória a preocupação em fazer passar uma mensagem. Aliás, numa certa densidade narrativa, o espectador é apanhado no meio de dois fogos: ao correr do filme, é convidado a equacionar as suas certezas. Regressa atrás e tem que reconstruir o seu entendimento da história, pois novos dados exigem a reinterpretação do argumento. Sem cair em exageros – lembro-me de Eduardo Prado Coelho, com excitação, ter inquirido se a confusão entre o real e a ficção, a principal marca distintiva de Matrix, não seria imagem fiel do mundo em que vivemos – o filme é uma das poucas excepções em que existe uma combinação equilibrada de efeitos especiais e capacidade narrativa. Ainda que, nas sequelas do filme, se note um descuido na filtragem dos efeitos especiais, com alguns exageros característicos do entusiasmo dos técnicos de manipulação de efeitos especiais.

Quase sempre, os efeitos especiais emprestam uma dimensão fantástica ao cinema. Servem para mostrar uma realidade que não existe. Mostram desafios absurdos da física. São a porta por onde entram humanos transformados em super-homens. Os efeitos especiais são a adulação da tecnologia avançada que também chegou à arte cinéfila. Sacrificando os filmes que contam histórias de pessoas normais, vidas corriqueiras, na simplicidade das coisas que sabemos que se passam a toda a hora.

Se é possível pensar em dois pólos contraditórios – filmes que cultivam a arte da narração e filmes poluídos por excessos de efeitos especiais –, e se partir do pressuposto que os primeiros ilustram a essência do cinema (tradicional, se quiserem), o império dos efeitos especiais contradiz o cinema humanizado e mostra o cinema fantástico e irreal. No fim de contas, uma correia de transmissão de um certo modo de vida contemporâneo: a apetência pelo imaginário, que pulsa com intensidade quando é elevada a insatisfação com a vida real.

No rescaldo, um atentado ao cinema. A informática aumenta a qualidade do produto. A mesma informática é a génese de efeitos especiais que deixam boquiabertos espectadores enterrados na cadeira do cinema, a mesma informática que leva ao extremo o irrealismo dos efeitos especiais. Desumanizando o cinema, transformando-o num espectáculo, destruindo o que o cinema tem de arte.

11.11.05

Geração MTV

Lisboa nos desígnios divinos, escolhida para a cerimónia de entrega dos “MTV awards”. Razão para uma multidão de adolescentes e já-não-tão-adolescentes fervilhar de ansiedade, na esperança de um contacto visual com o artista que preenche os sonhos que têm tanto de beleza como de impossibilidade. Por uns dias, os holofotes do mundo estiveram direccionados para Lisboa. Para enobrecimento do brio pátrio, mesmo dos que são alheios à manifestação e enchem o peito de orgulho porque Lisboa aparece, por uns dias, no mapa do mundo.

Tivemos direito ao glamour da indústria musical que tem acolhimento na MTV (ou lhe dá razão de vida, numa roda dentada onde causa e efeito se confundem em osmose). O apanágio do entretenimento cheio de tiques norte-americanos – apesar dos galardões serem entregues pela MTV Europe, prova de como os norte-americanos não se cansam de tentar colonizar a Europa. Muito show off, muita luz que em feixes cintilantes se deslocava de cima para baixo, em busca de efeitos visuais estonteantes. Coreografias estudadas ao milímetro, dir-se-ia que os bailarinos estavam presos entre si por invisíveis cordéis que os compassavam ao milésimo de segundo. Os artistas principais, saídos do seu casulo deificado, com a pose distanciada de quem alcançou os píncaros da fama, mais as excentricidades que o deixam de ser pelo estatuto em que foram investidos.

Muito o papel de embrulho que envolve o evento. Aliás, a impressão que o acontecimento tem mais a ver com as carradas de papel de embrulho com que o produto é vendido do que com a sua substância. Muito pouco de música, muito mais de imagem meticulosamente tratada, de comunicação bem planeada para arregimentar mais fiéis, a garantia do sucesso comercial que enche os bolsos de editoras e artistas, com a conivência de estações de rádio e de televisão que formatam os gostos musicais à medida das prioridades negociais das editoras. A bitola da qualidade desce a um nível indizível. Em bom rigor, não é de qualidade que se alimenta a indústria – antes de êxitos que se consomem com voracidade, quantas vezes remetendo ao anonimato artistas que outrora foram êxitos retumbantes sem sequência.

Os adolescentes e já-não-tão-adolescentes são o público-alvo, operam a iníqua redistribuição de riqueza. Eis um case study para os saudosos do esqueleto marxista: como o capitalismo, na figura da indústria musical, impõe o enriquecimento dos mais ricos (as editoras multimilionárias e os artistas que acumulam êxitos) a expensas da imbecilezação de acéfalos adolescentes e já-não-tão-adolescentes que ficam em pulgas para ver, nem que seja ao longe, na porta do hotel, os heróis em carne e osso. Os órfãos da tralha marxista podem apontar a dedo o caso da indústria musical que alimenta o espírito MTV como paradigma da injusta redistribuição da riqueza. E prometer, em programas eleitorais, que a MTV deixe de chegar aos lares.

Ouve-se falar da geração MTV como se fosse fenómeno inaudito. Ideia errada. A geração MTV é uma réplica actualizada das adolescentes dos anos sessenta que consumiam com avidez os êxitos dos Beatles. Então como agora desfaziam-se em gritinhos histéricos – ainda que os desfalecimentos públicos sejam coisa banida do léxico da actual geração MTV, mais senhora de um auto-domínio que as adolescentes dos sixties não possuíam. Fechem os olhos: ouçam uma reportagem em torno dos Beatles, tomem atenção à gritaria como pano de fundo; continuem de olhos fechados, agora no take dois, a mesma gritaria que ensurdece quando os artistas do momento entram em cena na MTV. De olhos fechados, é impossível distinguir a gritaria de agora da gritaria de outrora. Gritaria à mesma, a chancela para a admiração nutrida pela horda de fãs de um artista. Quanto mais os gritos, e quantos mais estridentes, sinal de que o artista do momento é arrebatador junto da audiência.

O auge da gritaria: há tempos, reportagem que antecipava a borbulhagem à flor da pele quando os artistas reputados dessem à costa na Lisboa das sete colinas. Um casting organizado por um dos patrocinadores – a minha operadora de telemóvel. O critério de escolha era quem mais alto conseguia berrar. Os candidatos eram convidados a encher os pulmões e deitar cá para fora, prolongadamente, toda a fúria do mundo com o vozeirão com que foram agraciados pelo aleatório factor divino. Os que carimbassem os decibéis mais elevados tinham a passadeira estendida para o espectáculo, como vozes de fundo da gritaria encenada. E deve ser uma arte tão complexa que o júri viajou de Inglaterra para apreciar os dotes de vozearia dos adolescentes e já-não-tão-adolescentes lusitanos.

Lição de vida: emoções exteriorizam-se em gritos, como se em turba regressássemos a uma animalesca forma de convivência nos grunhidos histéricos que se soltam.

10.11.05

Na gotejante ingenuidade: porque somos corruptos?

Uma saborosa discussão com alunos. Um grupo com maturidade acima da média, olhando para a fraca gesta acabada de sair dos cueiros da adolescência. E muita descrença na terra que os viu nascer, no sistema político, na classe de políticos que se esgadanha para tomar conta do poder.

Numa lúcida revolta, alguns exibem uma insatisfação sustentada. Não estão descontentes por desconhecimento. Nem sequer por ser a mais cómoda posição que podem assumir no anonimato de um cordato rebanho que se limita a cumprir deveres que se dizem cívicos. Dois deles insurgem-se contra a militância abstencionista. Entendem que há aí uma corrupção adicional do sistema já de si apodrecido. São os desistentes que em nada contribuem para mudar o rumo. Preferem a pedagogia do voto em branco. É a melhor manifestação de protesto contra a incapacidade regente, sem se excluírem do regime com tantos defeitos que, contudo, continua a ser o menos mau de todos os regimes.

Sem forçar a nota – porque abstencionista convicto não me confessei – tento-lhes abrir outra janela de entendimento: que a abstenção não pode ser vista de forma tão lapidar. Há quem se abstenha por insatisfação, como há quem esteja voluntariamente à margem do sistema, ou os que preferem passar o dia na praia sem que o ócio lhes perturbe a consciência por não terem satisfeito deveres cívicos. Os meus interlocutores mantêm o cepticismo: insistem que a abstenção é uma demissão de responsabilidades. Que os que fogem das urnas perdem legitimidade para protestar contra os devaneios da governação. Por se auto-excluírem, dizem, perdem o direito de opinar.

Não contrariei o radicalismo que cavalgava à solta. Para que não percebessem que um dos seus professores representava algo que eles criticam com empenho. Não receava ficar prisioneiro de um dilema de consciência: achar que a minha omissão era a uma auto-castração, impedido que estava de confessar a abstencionista condição. Não para que os alunos não levassem da sala uma decepção da minha pessoa. Deixei-me levar pela omissão para manter viva a chama da discussão que nos entretinha.

Pergunto-lhes: o que mais os desgosta? Resposta pronta de um deles, subscrita por quase todos os outros: a corrupção. De quem chega ao poder e se aproveita da sinecura para engordar o património. E de quem se abeira dos detentores do poder e lhes acena com dinheiros sujos que são a caução para regalias que, de outro modo, seriam inacessíveis.

Retenho a fonte das preocupações. E deixo-me guiar por uma ingénua torrente, para perceber o que leva tantas pessoas a mergulhar na pérfida corrupção. Admito que as generalizações são terreno minado: há quem exerça o poder como se fosse um sacerdócio, afinal a obrigação natural de estar ao serviço de quem é governado, não a corruptela de usar o poder em proveito próprio. Ademais, as suspeitas de corrupção raramente passam deste estado: terreno movediço, em que muito se sabe sem ser possível provar. Logo permitindo exageros: quantas vezes se coloca na barca da suspeição quem lá deve estar e quem, por antipatia pessoal, acaba por lá ir parar?

Na deriva ingénua, pergunto-me que maleita se apodera dos detentores do poder quando, chegados ao poder, se deixam corromper. Como se um estigma pesasse sobre o exercício do poder, pelas tentações que oferece a quem o detém (um peculato de oportunismo) e pelas sinuosas manobras de aliciamento de quem beneficia de decisões tomadas pelas esferas do poder. No rescaldo, um sombrio quadro: governa-se para clientelas que corporizam escassas minorias, quantas vezes em sacrifício dos interesses da maioria da população. Corrompendo o mandato confiado aos detentores do poder no momento da eleição. É um golpe de estado na representatividade. Quem os escolhe é posto de lado pela tentação do dinheiro fácil acenada pelos poderosos interesses que não olham a meios para alcançar objectivos.

E as coisas podiam ser de outra forma? Que milagrosa receita para limpar este vírus que ensombra o poder, que cultiva a insatisfação que cresce com o passar do tempo? Sem solução à vista, num exercício de pessimismo sobre a natureza humana. Nos momentos em que as tentações fortes pesam sobre a cabeça, poucos os que não sucumbem à passadeira da corrupção. Para uns, o mero exercício do poder que traz até a si uma corte disposta a fazer correr muito dinheiro debaixo da mesa, ou a jogar favores que trazem outras delícias. Para outros, o simples apelo das vantagens materiais que o dinheiro a rodos alimenta.

Algures no labirinto da ingenuidade em que me quero perder, uma intenção: a de andar longe destes corredores fétidos, para não ter que me provar quando a tentação da corrupção batesse à porta. De fora, sei da minha integridade. Uma vez lá dentro, até que ponto seria fácil manter-me arreigado aos princípios? Prefiro o crivo da ingenuidade.

9.11.05

Pura economia - o mundo é assim tão diferente para ricos e pobres?

Vi este cartoon no blog “Pura Economia” e pus-me a pensar: para as duas personagens retratadas – um próspero empresário e um operário – os planos serão oblíquos, como se os sinais da economia favoráveis para o primeiro tenham uma conotação negativa para o segundo? E também dei conta de um aforismo que estigmatiza a profissão de economista, dizendo o povo que onde há dois economistas há pelo menos três opiniões diferentes.

Os olhos podem ver a mesma coisa de forma diferente. Reparando no cartoon, operário e empresário estão em planos diferentes, fazendo com que a mesma curva, retratando a conjuntura económica, tenha diferentes significados para ambos. Esta é a mensagem do cartoon. Bem a jeito da retórica de quem ainda acredita na argumentação marxista de que as relações antagónicas entre oprimidos e opressores são a essência das relações em sociedade. Por cá temos os habituais defensores da cartilha. Os que professam a mensagem de que “a direita” tem um cadastro histórico de pilhar os interesses das classes desfavorecidas, num contraste que se aprofunda ao longo da história: os ricos cada vez mais ricos, os pobres cada vez mais pobres.

A história e os factos desmentem o catastrofismo. Apesar do hiato profundo que ainda separa países ricos de países subdesenvolvidos, os pobres têm acesso a coisas que lhes estavam vedadas no passado. Corro o risco de ser acusado de medir a felicidade pessoal pela capacidade de consumo das pessoas, mas os devaneios consumistas infiltraram-se por todo o lado, atingindo toda a gente – mesmo os que professam a moral anti-consumista mas não resistem aos prazeres de requintes burgueses que desmentem uma retórica que não passa de pregação teórica.

Quando ouço argumentos que trilham o modismo militante da anti-globalização, do anti-capitalismo, interrogo-me se os devotos da causa têm uma noção aproximada do que significam os chavões que embelezam protestos impregnados de folclore. Terão a consciência do que seria o mundo que renegasse o “perverso” capitalismo? Conseguem adivinhar os efeitos devastadores de propostas demagógicas como a taxa Tobin?

Por cá, os clérigos da “alter-globalização”, recolhidos no Bloco de Esquerda, lembraram-se de gastar rios de dinheiro num outdoor que enxameou as ruas, clamando por um “imposto sobre as grandes fortunas”. A vacuidade da proposta desnuda-se na antecipação dos seus efeitos: a mais que certa fuga das grandes fortunas para locais mais simpáticos quando chegasse o momento de aplicar impostos. Sempre teríamos a honra de encabeçar a vanguarda, com semelhante imposto revolucionário. Nem que o seu pecúlio fosse pouco mais que zero, por debandada geral das grandes fortunas para outras paragens. Quem seria prejudicado? Decerto não as “grandes fortunas”, mas os pobrezinhos que seriam favorecidos por uma redistribuição que não chegaria a funcionar.

Esta é a imagem fidedigna que desmente a diabolização do “grande capital”. Pode o grande capital ter apenas o fito do lucro, essa coisa terrível que desumaniza os seus detentores, tão sórdida que leva os capitalistas a espezinhar os mais básicos direitos dos trabalhadores. No auge de uma grande teoria da conspiração, os capitalistas querem-nos colonizar através de hábitos de consumo que vão levando o escasso rendimento. Depois banqueteiam-se nos lucros que extraem à custa da dependência consumista da turba, e não partilham esses lucros com os trabalhadores que lhes produzem os bens de consumo. O corolário: o que é bom para eles é mau para todos os demais, para os que vivem à míngua, enfeudados na ditadura do consumo.

Estes profetas da desgraça não compreendem que o consumo de muitos traz boas notícias para outros tantos, os que encontram emprego nas fábricas que produzem aqueles bens de consumo. Com o efeito terapêutico de muitas dessas fábricas se instalarem em países subdesenvolvidos, desbravando novas oportunidades para povos mergulhados na mais profunda miséria. No fundo, uma forma de operar a redistribuição da riqueza entre países ricos e países pobres, sob a batuta do consumo que, afinal, é profilático. E se uma das suas bandeiras é a redistribuição da riqueza, que percebam que mais lucro para uns poucos há-de significar mais bem-estar para a maioria.

Afinal o que é uma grande ilusão é a ideia de que o operário e o capitalista estão sempre em planos diferentes. Podem partir de posições desniveladas, que se hão-de manter. Mas o que é bom para o capitalista não é sinónimo de coisa nefasta para o operário. Já o contrário é verdadeiro: um lucro menor, mau para o detentor do capital, há-de ter efeitos negativos na esfera do operário.

A grande teoria da conspiração, apenas um pretexto para arregimentar fiéis preconceituosos. A inveja da abastança alheia cega muitos.

8.11.05

Hipocrisia ambiental, desatino governamental

Governos de falinhas mansas tentam convencer os governados à socapa. Titulam-nos com estúpidos, analfabetos ou, no mínimo, desatentos. Governos deste jaez estão condenados ao maior dos bocejos, a indiferença que premeia a incompetência e o oportunismo. De nada adianta protestar na praça pública – por tanto haver quem o faça, e de tanta causa ilegítima se apregoar bem-falante, que evitar a comparação conduz ao atinado silêncio.

Governo que usa a maioria absoluta para desdizer promessas que seduziram quem o alcandorou aos umbrais do poder. Uma atrás da outra, as promessas vão sucumbindo perante a hipocrisia de quem prometeu sabendo de antemão que não podia cumprir. A desonestidade de quem tantas promessas inscreveu no cardápio que foi isco para fiéis militantes, incautos e desesperados que viram no descabelado anterior primeiro-ministro razão suficiente para mudar a cara do poder, sem mexer na essência. Vendedores de banha da cobra, sem a retórica anestesiante do antecessor Guterres, com um pragmatismo que, bem escorrido, apenas soa a retórica inconsequente.

Prometeram: os impostos não aumentam. Li algures que, trocadas as voltas à reengenharia fiscal do orçamento para o próximo ano, lá virá mais carga fiscal depauperar os bolsos da nossa existência. Onde não restam dúvidas de impostos onerados é para os compradores de automóveis. Luxo corrosivo, mais caro ficarás. Na persistente sanha persecutória: quem compra automóvel tem o propósito de entupir as entradas das cidades, num conluio com psiquiatras que exercitam a psicanálise colectiva aos atormentados pelo stress das intermináveis filas à porta das grandes urbes. Para as mentes iluminadas que se sucedem nas finanças e para zelosos e cinzentos funcionários que puxam pela imaginação para descobrir mais factos passíveis de tributação, o automóvel é um luxo. Eis a súmula do “Estado ladrão”.

Aumentar o anacrónico e ilegal imposto automóvel é uma inqualificável hipocrisia. Primeiro, por promessas espezinhadas que arregimentaram votos. A confiança de quem colocou a cruz nos socialistas está a ser defraudada: a governação é feita do contrário das promessas que tantos mobilizaram. Segundo, burocratas de serviço, nautas do fisco e políticos oportunistas clamam que não há subida do imposto automóvel. Na sua retorcida retórica, apenas foi adicionada ao imposto automóvel uma “componente ambiental”. Para que os gases que os automóveis expelem quando os condutores pisam no pedal direito seja sentido como um fardo nas carteiras. É o império do “poluidor-pagador”, tão do agrado dos adeptos do ambientalismo.

Pelo meio, ninguém encosta à parede os que estão transitoriamente com os cordelinhos da governação (a não ser as minoritárias, inaudíveis vozes que representam fabricantes e comerciantes de automóveis). Ninguém denuncia a dissimulação de mascarar a subida de um imposto com um “complemento ambiental” que é mais um imposto. Somos uma terra onde comprar automóveis é cada vez mais um pecado. Heresia que se paga com uma factura fiscal que nos coloca num pedestal entre os parceiros europeus. Daquelas tabelas que só nos enchem de orgulho se forem viradas de cabeça para baixo.

Zénite do oportunismo, puxando lustro à sensibilidade ambiental, virão governantes e burocratas num exercício de malsã pedagogia: quem compra automóvel deve ser co-responsabilizado pelos danos no meio ambiente. Gente tão ciosa da “justiça social” e da “proporcionalidade” para penalizar os mais afortunados pela abastança não percebe que o imposto ambiental é uma falácia. Todos os compradores levam pela mesma medida, ainda que sejam díspares as quilometragens anuais e as emissões de gases tóxicos para a atmosfera.

Duas propostas, num raro laivo construtivista. A primeira: penalizem ainda mais o consumo de automóveis, incentivando a populaça – dos carroceiros aos endinheirados – a frequentar transportes públicos. Na antevisão de um dantesco entupimento dos transportes públicos, para desnudar a incapacidade do Estado. A segunda: se querem vestir a capa de “amigos do ambiente”, estimule-se a compra de veículos híbridos (que combinam motores de combustão com motores eléctricos), através de isenções fiscais. E se acaso alguém quiser saber porque nessa altura burocratas amigos do erário público e oportunistas governantes passariam a assobiar para o lado (da segunda proposta), forneço uma pista: o mal que ela faria ao pecúlio público, forçando mais contenção despesista, em suma, a um oásis chamado “menos Estado”.

No inebriado caldo destes “engenheiros sociais”, resta a pergunta: onde fica o exílio?

7.11.05

Para compensar

o escrito anterior. Ouço (e tenho a desagradável sensação de ver) este jovem, líder da juventude do CDS-PP (ou do PP, ou do CDS, ou lá como isso se chama), emproar-se na qualidade de testemunha dos “jovens de direita”. (Para justificar o não apoio ao grande Messias que se apresta a levar a palma das presidenciais). E apetece-me entregar nos braços da extrema-esquerda.

Os motins em França (ou de como não consigo ser de esquerda)

Já lá vão onze noites consecutivas de terror nas ruas de cidades francesas. Nos areópagos do politicamente correcto, dançam teorias que passam ao lado do essencial: a culpa é de nós, que acolhemos mal os emigrantes; da deriva liberal, qual dose de arsénico que tem vindo a matar aos poucos o modelo social europeu; da presença da polícia que estimula reacções violentas em quem se sente acossado; a eito, da maldita globalização, que enriquece uns poucos enquanto vai remetendo à pobreza aviltante cada vez mais gente.

Que se diga que o ministro do interior, Sarkozy, reagiu com a delicadeza de um elefante em loja de porcelana, é um argumento aceitável. O ministro protestou contra a violência gratuita e disse que era necessário “limpar a escumalha”. O que serviu para alimentar a escalada de violência. E também serviu para se misturar as causas e as consequências: Sarkozy foi infeliz com aquelas palavras, para mais numa sociedade que tem resvalado para a xenofobia (numa linha de fronteira muito ténue entre a xenofobia e o tradicional chauvinismo francês). Mas a violência gratuita vem de trás. É certo que se generalizou a toda a França depois da boutade de Sarkozy, mas a violência já tinha sido ateada antes.

Por aí já andam em bicos de pés inefáveis criaturas que vêm nestas manifestações um retomar do Maio de 68. Como se as coisas fossem comparáveis; como se as razões dos protestos fossem as mesmas. Percebe-se o enlevo lírico de quem ficou órfão de referências: se não se agarram às paredes da nostalgia, acabam mirrados nas ideias que sempre vindicaram e que têm sido campo de sucessivos insucessos. O que lhes interessa é desculpabilizar os comportamentos de quem tem semeado a violência cega e gratuita. A culpa está a montante: nas discriminações que os emigrantes sofrem, nas expectativas não satisfeitas quando chegam a França, na exclusão social. Eis os pretextos para aceitar a violência que brutaliza tudo e todos, indiscriminadamente. Se os jovens que espalham o terror queimam carros, vandalizam lojas, atacam inocentes – nada disso interessa perante a “grandeza” da causa que os mobiliza.

É a miopia intelectual. A sociedade francesa não é o sétimo céu do acolhimento a estrangeiros. As medidas recentes que levaram à discriminação de muçulmanos, ainda ciosos de símbolos que identificam a sua pertença religiosa, são criticáveis. O que não se pode é caucionar a violência como arma de arremesso, como se os actos de violência resolvessem os problemas destas pessoas. Creio que terá o efeito contrário: acicatar ódios, extremar posições, semear ainda mais violência (basta ver que já se formam brigadas civis para defender a propriedade dos vândalos que andam à soltam), enfim, fortalecer a imbecil extrema-direita de Le Pen.

Vejo os esquerdistas militantes, saudosos do Maio de 68. Vejo-os preocupados, mas acima de tudo excitados com os tumultos. Vejo-os tentar justificar os desmandos. Estendem o braço magnânimo, e chegam a legitimar a violência. E dá-me pena que não sejam eles a sofrer na carne as consequências da violência estúpida que cobriu a França de lés a lés. Quando os oiço a dissertar no conforto da distância do palco da violência, como gostaria que os seus carros tivessem sido vandalizados pela turba selvática, que os seus comércios tivessem ardido por entre os cocktail molotov arremessados pelos jovens em fúria. E depois gostaria de os ver, com a mesma tranquilidade, a legitimar a violência sem sentido.

Vergonhosa reacção de quem procura encontrar um sentido para os motins que puseram a França em estado de sítio. Mostra como estes sectores não respeitam o direito de propriedade. Melhor: como espezinham o direito de propriedade alheio, porque o seu é sagrado. Mais importante do que saber se há razões fortes que justifiquem (ou até legitimem) a violência, é olhar para as vítimas inocentes dessa violência – os que encontram os seus haveres destruídos pelas chamas ateadas pelos cocktail molotov.

Só falta aos inenarráveis legitimadores dos motins dizer que os franceses estão a ter o que merecem: pelo detestável chauvinismo que abre as portas à xenofobia e à exclusão dos emigrantes, pela escolha de um presidente e de um governo de direita. Não o dizem, mas aposto que os nostálgicos do Maio de 68 pensam nisto, num sucedâneo de “justiça divina” feita pelas próprias mãos dos que sofrem a discriminação. Se acaso tivesse dúvidas se serei de esquerda, momentos destes seriam suficientes para me situar fora desse quadrante.

4.11.05

À atenção dos garanhões de serviço em discotecas: a lei proíbe sexo com menores de dezoito anos

Já não fico surpreendido com as arremetidas legislativas que investem sobre tudo e mais alguma coisa. Nos tempos que correm, tudo se regulamenta. Desde os aspectos mais importantes às coisas mais comezinhas, tudo à atenção de um zeloso legislador que está atento aos fenómenos sociais e que cuida de afirmar a autoridade do seu patrono, o Estado. Com a adesão à União Europeia, a fobia legislativa vem de fora para dentro, das instituições da União para os países que a compõem. Mostrando a cara mais antipática da integração europeia.

A proibição de sexo com menores de dezoito anos tem a marca registada das intervenções legislativas das instituições com sede em Bruxelas. Consta que a intenção é reforçar a protecção de menores que, neste mundo selvático, ficam à mercê dos desmandos sexuais de perversos adultos. Daí a proibição de relações sexuais com menores de dezoito anos. Suponho que esta medida tenha algo de discriminatório: ou porque veda as relações sexuais entre maiores e menores de dezoito anos, permitindo-as entre menores de idade – numa exclusão dos maiores de idade que parece intolerável; ou porque impede que os menores tomem conhecimento dos prazeres do sexo, seja com pessoas que podem votar, seja com outros menores. Não cheguei a perceber se a intenção desta investida legislativa se encaixa na primeira ou na segunda hipótese.

Seja como for, há algo de escatológico na arremetida regulamentadora da União Europeia. Costumo dizer aos meus alunos que a elevada produção legislativa das instituições da União se assemelha a uma diarreia legislativa: abundante, inútil, incómoda. A bizarra ideia de perfurar a intimidade das pessoas – maiores e menores de idade – com uma medida que tece as teias do que é autorizado e proibido em termos de comportamentos sexuais é a imagem de uma inadmissível intrusão na individualidade das pessoas.

Podem-me dizer que a medida pretende proteger ingénuos adolescentes que se expõem às diatribes de experimentados adultos. Mais importante é a dimensão castradora da legislação. Um esteio de castração sexual. Seja dos menores, que podem ter o discernimento de querer experimentar pessoas mais idosas como meio de alcançarem a maturidade; seja dos maiores de idade, que sucumbem às delícias de corpos adolescentes. Até porque agora as meninas (restrinjo o objecto ao que me interessa) são fertilizadas com doses avantajadas de fermento, fonte de crescimento precoce. O que podem fazer os galãs seduzidos pela inocência perversa de juvenis personagens? Antes de consumar o acto, devem pedir o bilhete de identidade às suas “vítimas”?

Sim, falo de “vítimas”, porque a inovação legislativa que ameaça cair sobre nós parece tomar a árvore pela floresta. Numa absurda generalização, as mentes brilhantes que congeminaram a regulamentação acreditam que todo o sexo entre menores e maiores ilustra uma posição desigual. Os adultos são o lobo mau que leva as adolescentes no engodo, elas são as vítimas que ficam presas nas garras dos predadores. Estranha forma de encarar o sexo. Quem inventou esta regulamentação deve ter traumas sexuais mal resolvidos.

Na reafirmação da vertente escatológica da medida, há outro aspecto que me intriga: como pode ser fiscalizada a proibição de sexo com menores? Na suposição de que o fruto proibido é o mais apetecido, e que os instintos carnais de jovens e viçosas adolescentes e de adultos libidinosos superam a penalização da provação legal, esta lei arrisca-se a ser como tantas outras – proibições desrespeitadas a toda a hora, sem que o escrupuloso Estado-polícia possa restaurar a legalidade. Será que vão ser criadas brigadas de higiene moral para fiscalizar, em todos os cantos, quem mantém relações sexuais com quem, e se elas são permitidas aos olhos da zelosa lei?

Avizinham-se tempos difíceis para os garanhões que vagueiam, com felinos instintos, por bares e discotecas, lançando o isco a ingénuas adolescentes. Hormonas fermentadas, alçapão para incómodas visitas a esquadras e processos intentados com o fito de levar os galãs a temporadas atrás das grades. Aos jovens, sexualidade adiada por decreto!

3.11.05

Estão os homossexuais “in”?

O trauma não sarado: retomo o texto de anteontem, regresso ao programa televisivo que mascara brutos exemplares do machismo lusitano em adocicados, gentis, “fashionable” homens. Dei comigo a pensar: por que insondáveis mistérios terão os responsáveis pelo formato televisivo achado que uma pandilha de efeminados gays seria a chancela para a transformação de candidatos disformes em perfeitos exemplares do que está na moda?

Duas hipóteses, uma simpática para a causa homossexual, outra com contornos homofóbicos. Primeira hipótese: a síntese de que os homossexuais têm uma espécie de sensibilidade feminina que os predispõe para tarefas para as quais os homens com apetência heterossexual não estão fadados. Segunda hipótese: o canal de televisão foi no engodo do politicamente correcto, contribuindo para o peditório da “normalização” da homossexualidade. Mas, ao querer passar a imagem de que ser homossexual é tão natural como ser heterossexual (asserção que tem a minha concordância), embrulhou o programa num molde que expõe os homossexuais ao ridículo (pelo menos os que ali dão a cara). Um pouco por culpa das abichanadas figuras escolhidas para o programa, pois resvalam para os tiques excessivos que levam tanta gente a parodiar a sua opção de vida.

Não são as intenções dos mentores do programa que me interessam. Quero perceber porque motivo é passada a imagem de que um grupo de gays tem os predicados ideais para transformar a imagem de uma abrutalhada figura que, antes de se entregar aos cuidados dos terapeutas de imagem, destila mau gosto por todos os poros. Não haverá homens sem sexualidade alternativa com qualidades para saber o que está na moda? Estarão os heterossexuais aquém dos padrões da estética aceitável? A mensagem do programa é a de que os heterossexuais estão “fora de moda”, que só os homossexuais reúnem aquele predicado.

Seria bastante para discutir mais uma ramificação da tenebrosa discriminação positiva que, no fundo, enclausura numa armadilha os paladinos da mirífica igualdade. Dando de barato que todos somos iguais – truque de retórica que acalenta uma ilusão que mobiliza ideologias bem comportadas – no final descobre-se que há quem seja mais igual. Desfazendo o mito da igualdade.

Não é pela epistemologia da igualdade que quero descobrir o fio à meada. Apenas atestar que se queremos, heterossexuais de gema, estar no grito da moda, que nos entreguemos aos cuidados de apaneleirados consultores. Como se fossem divinas figuras que, do alto da sua efeminada sensibilidade, com os trejeitos das femininas figuras que gostariam de ser, estão empossados na suprema arte do bom gosto. Eles, melhor que ninguém, sabem como combinar diferentes peças de roupa, sabem que mobiliário que se compagina com o binómio proprietário-habitação, sabem como compor o penteado, sabem quais são as boas maneiras à mesa, ensinam os truques do “estar bem” numa cerimónia solene. Os que optaram pela heterossexualidade, desprovidos destas qualidades. Selvagens que necessitam de domesticação operada por estes consultores do “bien-être”.

Ou isto, ou a estação televisiva que se aproveitou da onda de “banalização” da homossexualidade (especialmente da masculina, porque a feminina parece andar arredada desta moda, para desgosto de homenzarrões que têm fantasias com lésbicas…) para expor uma pandilha de folclóricos adeptos da alternativa sexualidade. Mau serviço à causa homossexual: pelas tristes figuras dos exemplares expostos, pela vulgarização (coisa diferente da banalização) da homossexualidade. E porque, com formatos destes, a homossexualidade há-de continuar a ser motivo de desprezo para grande parte da população que não resiste a atirar piropos aos espécimes que representam a causa.

Esta é a imagem de um estranho mundo a preto e branco: de um lado, os heterossexuais, alijados de bom gosto, das boas maneiras, da boa educação, mister da embrutecida sensibilidade masculina; do outro lado, homossexuais dotados de uma sensibilidade feminina, cultores de tudo aquilo que falta aos homens que gostam apenas de mulheres. Como gosto de ver o mundo no esplendor da sua policromia, só posso desdenhar do quadro a preto e branco que exibições do género nos legam.