Palavras como “pátria”, “país”, “nação” surgem intercaladas com aspas. Já num texto anterior exibi a estranheza por tantos insistirem em escrever “país” com maiúscula. Para manter o raciocínio, as palavras que são sinónimo de “país” levam com as aspas, para se perceber o meu anti-nacionalismo hayekiano, contra a estreiteza do ser que somos – ou deixamos que nos moldem com essa configuração – no viés colectivo que endeusa o “país” a que pertencemos. Na desindividualização do ser, entregue ao sacerdócio dos interesses da “nação”, como se o “pátrio” devir se sobrepusesse ao sentir individual.
O intróito serve de mote para a perplexidade quando deparo com almas caridosas mortificadas pelo o destino do “país”. Discorrem abundantemente sobre as doenças do “país”, necessariamente merdoso. Vituperam a vilania que campeia, que faz dos “pátrios” concidadãos criaturas desprezíveis que empestam a “nação” com a nótula de mediocridade. Mostram a sua preocupação com a desventura “nacional”. Deprimidos com a modorra instalada, instala-se neles a depressão. E como sentem que a agulha não move o palheiro, afundam-se na doença que os corrói – a doença que vem de fora para dentro, o contágio das maleitas colectivas que se apodera dos indivíduos que se oferecem como mártires da idiossincrasia nacional.
Estão na linha da frente, com a sua generosidade colectiva, dispostos a fazer de psiquiatras quando sentam o “país” no divã. Imbuídos de um arreigado espírito “nacionalista” (ou terei de dizer “patriótico”?), os salvadores da pátria dissecam cada milímetro dos tecidos ancilosados da “nação”. Querem extirpar o mal, esperançosos que no mister de psiquiatras que se transmutam em cirurgiões hão-de colocar o “país” na senda de um luminoso destino. Gabe-se-lhes o espírito crítico aguçado. Só não conseguem perceber que andam ao desengano: que o merdoso chão “pátrio” acolhe a estripe do que somos, sem se convencerem que o mal não tem regresso possível.
Os salvadores da pátria escolheram um modo de vida. Mergulham nos vícios colectivos e, sem darem conta, perdem-se no meio da indistinta massa de anónimos. O analista acaba corrompido pelo objecto de análise. Sem darem conta da osmose, perdem a identidade própria, a sua individualidade. Pertencem à mesma gesta indiferenciada que criticam, elos da turba que alimenta a génese da condição medíocre que desdenham. Todo o tempo consumido em abjurações da idiossincrasia “nacional”, num tempo consumido na sempre curta existência própria. São a versão moderna do herói que nas guerras dava o peito às balas, “em nome da pátria”. Com uma diferença: outrora a vã glória de oferecer a vida pela “pátria” merecia a glorificação dos elevados dignitários da “nação”; agora resta-lhes o vasto deserto do não reconhecimento, esse deserto onde a pregação atinge os ouvidos do silêncio que os ensurdece.
Os salvadores da pátria são sucedâneos de cómicos figurantes. Pelo riso que me fazem esboçar quando testemunho a sua condoída parcimónia com os dislates que conduzem a “nação”. Pergunto-me se os salvadores da pátria encontram neste sacerdócio maneira de sacudir de si mesmos desditas pessoais. Não interessa indagar, pois esconsos são esses meandros e é na individualidade do ser – reduto intransponível, pelo decoro – que se irrompe.
Aos salvadores da pátria, uma mensagem: deixem o “país” como está, desenganem-se que o podem mudar. Não o queiram mudar. Em nome de um cinismo militante, que aquece a doce ironia que dá alento aos dias cinzentos, deixem estar o vegetativo “país” imerso na sua vegetativa existência, os residentes atarantados na medíocre forma de ser. A arte da mudança é campo minado por onde passou o arado da desesperança. E se algum dia compreenderem que o moralismo para os outros perde sentido quando sai de si para os demais, quando perceberem que o pessimismo é congénito, terá chegado o momento de desistirem da salvação da “pátria”. Nesse momento terão percebido que se têm que salvar de si mesmos.
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